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SOBRE JANELAS E NEVOEIRO
Ano 1 - Nº 1
Outubro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
África – de onde se vê o mundo? Coalizão Ecumênica para o Fórum Social Mundial de 2007

Ao se chegar em Nairóbi, no Quênia, alguns incautos, como eu, ficam a pensar nas colinas do Kilimanjaro. Fui informado que é um mal-entendido comum. Afinal, fomos habituados com a filmografia americana a pensar no Kilimanjaro ao se falar da Costa Oriental da África. Exceto porque as colinas das neves eternas encontram se na Tanzânia, país vizinho do Quênia. Fui convidado a partilhar as experiências que o Processo de Articulação e Diálogo (PAD) e o Fórum Ecumênico Brasileiro (FE-Brasil) tiveram durante algumas das edições do Fórum Social Mundial. O Conselho Pan Africano de Igrejas (All African Council of Churches) e a Caritas Internationalis marcaram uma Consulta para a preparação da participação ecumênica no Fórum Social Mundial em 2007.

Esta resposta produzida pela sociedade civil mundial é uma das experiências mais fascinantes deste início do século XXI. Iniciamos o século com a crise das ideologias, com a queda do muro de Berlim, com os vaticínios do fim da história, da vitória do Capeta Capital, como já denunciava o profeta Gentileza. Nas palavras de Viviane Forrester, era o momento do pensamento único. Na contra marcha vários grupos sociais se articulavam para indicar que aquele não era o único rumo possível. As ações de Seattle e Genova foram indicativas desta procura por alternativas. O volume de manifestações fez acontecer no ano 2001, em Porto Alegre, uma resposta que é um desafio: outro mundo é possível!

O Fórum Social Mundial (FSM) nasce como uma resposta desafio às situações limite geradas pelas práticas conduzidas pelas doutrinas neoliberais – com toda a desfaçatez, de serem geradas no Primeiro Mundo para serem aplicadas no Terceiro Mundo (apesar da geopolítica ter sido alterada). O FSM terminou por gerar um movimento prático e teórico que tem sido identificado como alteromundismo. Um elemento simbólico importante foi a contraposição a Davos. O Fórum Econômico de Davos é uma reunião na qual os representantes dos Conglomerados Transnacionais mais importantes se reúnem. São aqueles que pensam definir os destinos econômicos de todo o Planeta. Justamente, é na contramarcha que se insurge o FSM, como uma manifestação que indica o interesse da sociedade civil mundial em participar da construção e da direção do próprio destino, da multidão, como falam Negri e Hardt, numa alusão a um novo tipo de bloco histórico. Trata se de uma grande tentativa de criar uma nova forma do controle do sociometabolismo do Capital. Ao invés do controle capitalista, o controle social – para retomar idéias de István Mezaros.

A experiência da formação de uma presença articulada e internacional da Coalizão Ecumênica nasceu da identificação desta necessidade. De fato, o FSM como manifestação da sociedade civil exigindo outros rumos para a mundialização, mostrou a insatisfação com o pensamento único e a ditadura mundial do Neoliberalismo. A partir da primeira edição do FSM, em Porto Alegre, Brasil, 2001, havia uma presença ecumênica dispersa. Somente no FSM de 2003, também em Porto Alegre, houve a construção de um processo que passou a ser reconhecido como Coalizão Ecumênica – uma iniciativa em vista de uma presença sistematicamente organizada da família ecumênica durante o FSM. Entre 2003 e 2006 articulou se uma presença ecumênica mais sistemática.

Em 2002, apreciou se detidamente a necessidade de uma presença ecumênica mais sistemática no FSM. Para oferecer testemunhos dos esforços de igrejas, conselhos de igrejas, organismos ecumênicos e do diálogo religioso, em vista de outro mundo possível, no qual todas as mulheres e todos os homens tenham vida, e a tenham em abundância. Algumas iniciativas foram realizadas. Primeiramente, partiu se da articulação nacional que já existia no Brasil. Esta articulação era o Fórum Ecumênico Brasileiro (FE-Brasil). As organizações deste Fórum decidiram dialogar com o CMI, que tinha assento no Comitê Internacional do FSM, para articular uma presença integrada à própria metodologia do FSM.

Por meio de contatos diretos e indiretos entre a coordenação do FE-Brasil e o CMI, e destes com o Comitê Internacional do FSM, foi articulada a presença ecumênica numa das ações coletivas do FSM, um Painel. Introduziu se um tema caro à família ecumênica: a superação da intolerância. Deste modo, durante 2003, obteve se a participação de Geneviéve Jacques no Painel sobre Intolerância. Houve uma celebração na Igreja Evangélica de Confissão Luterana central de Porto Alegre. Nela foi identificado o conjunto dos participantes da família ecumênica (agências ecumênicas, organismos ecumênicos, conselhos e igrejas) que estava presente durante o FSM. A participação ecumênica foi manifesta durante a Caminhada de Abertura do FSM. Além disso, o Comitê Local Inter-Religioso, uma articulação existente em Porto Alegre, manteve uma Tenda das Religiões. Houve também um evento paralelo de diálogo entre as religiões, que ocorreu numa instituição metodista.

Aquela experiência fortaleceu a idéia de um testemunho ecumênico no FSM de 2004, que se deu em Mumbai. Ficou ao encargo do Conselho Nacional de Igrejas da Índia esta articulação. Naquela ocasião conseguiu se a participação de setores da Igreja Católica conjunta aos demais membros da família ecumênica. Foram realizadas Oficinas conduzidas pelo CMI, dentre as quais uma sobre Intolerância Religiosa. Houve várias oficinas conduzidas pelas agências ecumênicas e por organizações ecumênicas e igrejas indianas, sobretudo em solidariedade com os dalits. Foram articuladas diversas presenças coletivas. O FE-Brasil enviou uma delegação com sete integrantes, dois dos quais foram financiados por meio de recursos nacionais. Dentre as contribuições do FE-Brasil as duas que se destacam são: a participação na oficina conduzida pelo FSM sobre a luta por superação da intolerância religiosa; e a publicação no Brasil dos significados da experiência desta participação.

Em 2005, o FSM retornou a Porto Alegre. Novamente, o FE-Brasil articulou se. Desta vez, procuramos tornar ainda mais orgânica a presença e o testemunho ecumênico no Fórum. A construção da metodologia que criava os territórios sociais do FSM nos fazia pensar em como participar ativamente nestes territórios. Havia três esforços que confluíram. Primeiramente, o FE-Brasil e o CMI tinham interesse numa presença articulada que indicasse a importância da abordagem ecumênica para a abordagem em direitos humanos. Em segundo lugar, havia no Brasil – e de fato ainda existe – o Processo de Articulação e Diálogo (PAD) entre as agências ecumênicas e suas organizações parceiras no Brasil. Este PAD seria um espaço de diálogo sobre a conformação das políticas da cooperação internacional. Entretanto, encaminhou se, também, como um espaço de diálogo sobre a promoção e o monitoramento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais (dhesca). Além disso havia as discussões da Aprodev (Associação das Agências Protestantes para o Desenvolvimento) sobre a abordagem em direitos humanos e a ação das agências. O que nos conectou ao processo do Caucus Internacional de Direitos Humanos, e permitiu que se construísse uma presença articulada das duas famílias durante o FSM: a ecumênica e a da defesa dos direitos humanos.

Esta confluência fez com que a APRODEV estimulasse, no Brasil, um seminário para a eleição dos temas que seriam comuns à presença ecumênica durante o FSM 2005. Resultaram deste Seminário os temas ‘Intolerância Religiosa’ e ‘Direitos Humanos e Mobilizações Sociais’, constituído duas Tendas, nas quais se realizaram diversas discussões.

Conseguiu se, por meio da participação do CMI no Comitê Internacional do FSM, abrigar estas iniciativas no território social dos Direitos Humanos. Também logrou se alcançar a existência de um território das religiões, no qual mantivemos uma Tenda Ecumênica.

Todas estas conquistas implicaram em um grande esforço logístico. Mantivemos um Comitê Nacional executivo coordenado pelo Rev. Francisco de Assis, do CECA, que funcionava em Porto Alegre. Este Comitê foi responsável por, antes do FSM, fazer com que se tornassem conhecidas as atividades que seriam desenvolvidas pela família ecumênica, bem como receber informações das ações que seriam desenvolvidas pelo Caucus de Direitos Humanos. Fazer com que estas informações circulassem. Assegurar que a família ecumênica pudesse usufruir da infra estrutura de hospedagem e transporte durante a realização do FSM.

Durante o FSM, este Comitê nacional em Porto Alegre organizou uma celebração para a família ecumênicaque aconteceu uma vez mais na igreja central da IECLB. Articulou a manutenção e o funcionamento da Tenda Ecumênica como ponto de encontro, espaço para lançamento de publicações, uso de internet, etc.

Na abertura do FSM a família ecumênica participou articuladamente na Caminhada. Procurou se, também, fazer com que ocorressem atos simbólicos em favor da Paz, com repicar de sinos e uso de roupas brancas.

O funcionamento e a participação nas Tendas do CMI e do Caucus de Direitos Humanos com o PAD teve um bom funcionamento e uma participação razoável para a magnitude do evento. Houve ainda a importante contribuição das agências ecumênicas alemãs com a discussão sobre obrigações extra-territoriais no campo dos Dhesca. Toda esta articulação teve um custo de funcionamento bastante razoável. E os frutos foram bastante profícuos: fortalecimento do enfoque em direitos humanos, fortalecimento do enfoque teológico-ecumênico nas abordagens em direitos humanos das agências ecumênicas e suas parceiras, fortalecimento das redes nacionais.

Este esforço por uma presença coletiva e orgânica da família ecumênica sofreu uma interrupção durante o ano de 2006. Isto decorreu sobretudo da concentração de esforços em função da IX Assembléia do CMI. Isto implica termos poucas informações das diversas presenças dispersas que certamente ocorreram em Caracas, Bumako e Dakar.

Agora AACC/Caritas estão responsáveis pela continuidade deste processo orgânico. É neste sentido que o FE-Brasil se sente muito solidário em poder partilhar esta experiência e quer aprender com os companheiros africanos um modo africano de tornar presente a experiência, o serviço e o testemunho ecumênicos no FSM. A consulta ecumênica africana, realizada em agosto, foi mais um passo nesta direção. O Conselho Pan Africano de Igrejas (AACC) conseguiu articular se com a Caritas Internationalis e promover um processo de ampla participação. A perspectiva é muito semelhante a que tivemos nas outras edições do Fórum: tornar patente a contribuição ecumênica em vista de outro mundo possível.

Esta nova edição do FSM quer articular não apenas temas. Pretende se que lutas e estratégias de ações coletivas, em favor de outro mundo possível, possam estar conectadas. A noção básica é que o passo atual necessário é tornar planetária as articulações e lutas. Neste sentido, o elemento geopolítico é fundamental. Os africanos tornam isto bem claro. Falaram com muita propriedade durante a Consulta que a África é o lugar de proposição, de afirmação – é o não-carente. Desde a perspectiva da Mama África, a Terra Originária, a fons vitae do ser humano, até a noção da exploração que transferiu corpos, sangues, corações e mentes que tornaram possível o enriquecimento do Ocidente. A África é a fonte da riqueza Ocidental, por isto está expoliada.

Todas as questões africanas são urgentes: processos de paz e reconciliação, sustentabilidade ambiental e humana – nos universos urbano e rural, a questão climática, os potenciais problemas de futuro, como a moratória geracional e a presença letal e cataclísmica da pandemia da AIDS. Da Consulta emergiram vozes que identificavam a possibilidade de solidariedade Sul Sul que o FSM abre. As pessoas de Nicholas Othieno, Margaret Mwaniki e Canon Gracie, responsáveis por aquela articulação tornaram a Consulta Ecumênica um sucesso. Havia a presença de 11 países da Costa Oriental africana. Aliás, uma das dificuldades de articulação de todo o continente são os diferentes interesses do Norte da África e da região Subsaariana. As distâncias e os custos são muitas vezes impraticáveis. Ainda assim, o FSM 2007 deverá contar com uma participação de 60 mil pessoas.

No Comunicado Final do Encontro se diz: A África contribui de forma descomunal para o enriquecimento global; econômica, social e culturalmente, durante séculos, até mesmo às expensas do povo africano. A África permanece a mãe da Humanidade. A instituição familiar africana oferece oportunidades e valores para um mundo no qual a instituição familiar está em colapso. Assim como Jesus Cristo, Senhor e Salvador, procurou e encontrou refúgio na África, o encontro do FSM na África contribuirá para uma melhor África e um mundo melhor. Cremos que a instituições familiares e comunitárias africanas oferecerão valores para ações sociais no mundo que visem um outro mundo possível. Nós, a plataforma ecumênica em vista do FSM, nos comprometemos a agir inspirados pela Palavra: Abra a boca, julga retamente e faze justiça aos pobres e aos necessitados! (Pr 31: 9).

Jorge Atílio Silva Iulianelli, doutor em Filosofia, coordenador dos programas Trabalhadores Rurais e Direitos e Ecumenismo, Diálogo e Formação de KOINOINA.