A história da humanidade tanto individual quanto coletiva sempre oscilou entre a guerra e a paz. Guerra e paz significam aqui o conflito entre as forças em nós que cruelmente ou sutilmente eliminam os que se interceptam em nossos caminhos e as forças que tentam de alguma maneira pacificar nossas incursões violentas para eliminar o outro diferente de mim. A guerra representa as forças destrutivas e a paz representa as diferentes forças de controle social e pessoal para evitar ou restaurar as conseqüências da violência que nos habita.
Através da violência contra os outros tenho a impressão de dominá-los, de enfim submetê-los á minha vontade ou de afastá-los de meu caminho. Embora o outro e os outros sejam fundamentais para minha sobrevivência como espécie, os outros também atrapalham minha liberdade de dirigir minha história conforme meus instintos e minha vontade. Avançar sobre meu semelhante como um animal faminto faria com outro que deseja devorar não parece ser permitido nos códigos de culturais que ao longo de milênios foram se estabelecendo nas mais diferentes culturas e das mais diferentes formas. O controle à nossa violência e crueldade potencialmente inata e socialmente desenvolvida é parte de nossa educação. Por isso as sociedades humanas criaram formas de controle da animalidade em nós; tentaram humanizá-la, civilizá-la a partir d e formas variadas provenientes da diferença racional que temos em relação aos animais. E isso é a tal ponto verdade que quando alguém comete atos de brutalidade chamamos esse individuo de animal ou dizemos que tal ação é desumana. É como se a maldade ou a violência não fossem humanas, não fossem a marca de nossa animalidade, de nossa finitude e falibilidade. De fato, não deixamos de ser animais da espécie humana, mas a nossa animalidade humana é perfectível através de nossa capacidade de nos recriarmos e reinventarmos sempre de novo nossa vida. Fazemos história porque somos perfectíveis, isto é, construímos cultura em torno de nossa animalidade diferente dos outros animais, criamos instituições perfectíveis e ajustadas às necessidades atuais das diferentes culturas e da convivência global, inventamos coisas, afirmamos de diferentes maneiras nossa liberdade e criatividade. E também aperfeiçoamos em nós as expressões de nossa violência originária. Ser perfectível não é ser perfeito, mas é ter a possibilidade de modificar comportamentos, é ter a liberdade de escolher caminhos que favoreçam a vida de muitos.
A religião apresenta-se oficialmente como uma força social pacificadora muito embora a violência já estivesse desde os nossos primórdios presente em nossa história religiosa. Basta que nos lembremos, por exemplo, da inveja entre os deuses do Olimpo, sobretudo na sua relação entre si e com os seres humanos. Da mesma forma na tradição do Antigo Testamento muitas vezes Deus aparece como ciumento de outras divindades e capaz de castigar e até de matar aos que prestam cultos a deuses estrangeiros. E o Novo Testamento é marcado pela perseguição e violência religiosa contra Jesus de Nazaré, violência que termina com a morte na cruz. A luta entre os deuses e a luta dos homens por seus deuses é tão velha quanto a História humana. A violência é o ingrediente que perpasse essas relações. Nesse particular é bom que nos lembremos que nossos deuses embora diferentes de nós, são a nossa imagem e semelhança. Seus modelos de ação, de certa maneira são o espelho do que gostaríamos e faríamos por nós.
Por essa razão não creio que a religião estaria totalmente isenta da prática da violência. Há uma violência própria das religiões especialmente na sua luta contra o que considera violência ou pecado nas suas diferentes manifestações. A religião aparece como uma instituição de antiviolência ou de controle da violência e, nesse sentido ela é igualmente constituída pela violência. O outro lado da violência não é necessariamente a paz, a concórdia ou o amor, mas pode ser outra forma de violência.
O estado das religiões no século XXI não está fora dessa estrutura de violência e antiviolência que assinalei. Se olharmos os programas religiosos das televisões abertas no Brasil, veremos o espetáculo das cruzadas contra o demônio, da expulsão do maligno dos corpos acometidos por doenças, do comando dado aos espíritos do mal de se dobrarem ao nome de Jesus. Há uma violenta guerra santa sem necessariamente usar armas de guerra. A violência é clara nas formas sutis permitidas pelos meios de comunicação e pelo mínimo de bom senso exigido dos pastores exorcistas.
Outra guerra santa se dá nas instituições políticas dos estados teocráticos e democráticos. No estado democrático, por exemplo, a liberdade de culto introduz diferentes formas de violência religiosa que se manifestam através das muitas pressões feitas pelos políticos às instancias de governo e à sociedade civil. A ideologia religiosa nas suas diferentes expressões quer influenciar o poder público naquilo que aparece a ela como o bem do povo. Em nome de Deus ou em nome de Jesus querem influenciar nas questões relativas especialmente à sexualidade como se fossem especialistas no conhecimento da vontade divina sobre esses assuntos.
Querem influenciar, barganhar, comprar e vendar posições e favores em torno a uma visão da sexualidade humana tornada questão política e religiosa. Não hesitam em usar meios fraudulentos e violentos para fazer valer posições discutíveis e que acabam favorecendo a mentira e um dogmatismo tacanho e ignorante.
Mais uma vez é preciso lembrar o quanto a violência se inscreve nas instituições da religião ou nas instituições políticas dirigidas por ideologias religiosas. A questão é como viver de forma diferente minha ou nossa opção religiosa? Como não fazer dela uma arma de eliminação do outro e de suas opções de vida? E, nesse sentido, será que a proclamação da laicidade do Estado resolveria o problema da violência religiosa na política?
Muito embora a declaração da laicidade do Estado seja uma aquisição importante da democracia ela se vê acuada pelas subjetividades religiosas incapazes de pensar o bem comum fora daquilo que interessa à sua doutrina e instituição religiosa. Afirmam a laicidade na teoria, mas não a vivem na prática. Acentuam-se as diferenças e ao mesmo tempo se quer eliminá-las através de posturas dogmáticas legitimadas por uma interpretação religiosa sobrenatural da vida. Um estado laico deveria ser um estado onde os deuses não justificassem as políticas, onde não se tomassem decisões por vontade dos deuses e de suas leis, mas pela necessidade de cuidar e respeitar as muitas vidas. Entretanto, no Brasil tal aspiração parece ser quase impossível dada a formação cultural religiosa do povo brasileiro ainda bastante religiosa dualista, emocional e hierárquica. No fundo estamos sempre opondo os direitos democráticos aos direitos divinos como se os divinos fossem superiores aos nossos e como se tivéssemos fácil acesso a eles através dos ensinamentos religiosos. Não se percebe a imposição de um modelo antropológico filosófico a partir do qual se acredita que o mundo sobrenatural é que dirige a cultura, a natureza e a vida das pessoas. Apesar dos avanços da racionalidade política estamos ainda numa espécie de pré-história quando se trata da política cotidiana ou quando se trata das relações políticas entre os povos. O grande desafio está em tentarmos nos aproximar uns dos outros num aprendizado de escuta e solidariedade. Esse desafio está de certa maneira na contracorrente dos ideais da cultura capitalista em seu desenho atual assim como das religiões monoteístas que formaram nossa tradição. O caminho a ser percorrido é ainda muito longo para que cheguemos a alguns acordos básicos. Mas, é preciso começar a dar passos nessa direção para que não destruamos ainda mais o mundo de valores que sustenta a nossa vida.
Por isso acreditar na superação da violência através das religiões é apenas um sonho talvez possível para bem poucas pessoas. Creio que as religiões deveriam converter-se para acolher o fato de que suas crenças, doutrinas e práticas devem submeter-se aos desafios e as necessidades das pessoas na história presente. Cada religião deveria cessar de ver seu modo de vida e suas propostas como as melhores para todo mundo. Aprender a acolher nossa limitada visão do mundo, nossa ignorância em relação a tantas coisas, nossa incapacidade de fazer o bem que queremos é um renovado convite que a Vida nos faz. Afinal a Vida humana não é maior do que o sábado? E os lírios do campo não continuam ainda desafiando nossa compreensão da vida e abrindo-nos para seus mistérios? E não somos todos pecadores necessitados de misericórdia e amor?
Os conflitos humanos não são resolvidos pela religião. O que os acalma e tranqüiliza por lapsos de tempo é a acolhida da singela beleza a vida, o gesto amigo inesperado, a mão estendida para ajudar-nos a sair do buraco. Sem resolver nenhum problema a religião pode apenas nutrir a esperança de um amanhã melhor ou convidar-nos a sermos bons uns para com os outros porque esta é condição para nossa sobrevivência como espécie. Pode igualmente nos congregar para celebrar a vida, para encontrar caminhos de respeito à criação e para nos consolarmos mutuamente quando necessário. É de fato muito pouco, mas é um pouco significativo visto que acalmar nossos medos, nos consolar e convidar a nos aproximarmos do outro, minha imagem e semelhança é fundamental para a nossa sobrevivência. O outro paradoxalmente objeto de meu amor e objeto de meu ódio é o objeto de todas as religiões e instituições sociais. Essa é nossa condição e nossa situação. Por mais que queiramos mascarar essa realidade e fugir dela fazendo de conta que uma religião vinda dos céus ou das profundezas da terra tem a chave e as soluções para nossos problemas não conseguiremos avançar um palmo na conquista de nossa liberdade. Não é para ajudar-nos a ser livres que criamos as religiões? Livres de nossos medos, de nossas escravidões, de nossa crueldade, de nossa ganância e livres até da própria religião quando ela se torna o contrário do que dela esperamos.
Ivone Gebara
Julho 2011