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SOBRE JANELAS E NEVOEIRO
Ano 1 - Nº 1
Outubro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Juventude: além da criminalidade


Jovens protagonizando sua história: Joseli Rosa, coordenadora do Projeto Juventude Ação de Minas Gerais.

Por: André Moysés Gaio

É recomendável que qualquer debate em que a juventude se torna objeto de estudo e reflexão deve ser iniciada pelo esclarecimento sobre dificuldades conceituais sobre se tal recorte é valido, na medida em que o conceito de geração está envolvido em perigosa imprecisão ou esclarecer se estamos apenas nos movendo em um campo utilizado pelas campanhas de marketing para criar novos consumidores, abordagem igualmente perigosa.

Escrever sobre a condição juvenil pode resultar em um texto em que a pluralidade de sujeitos poderá ser sacrificada pela opção de privilegiar identidades, apagar diferenças importantes. Não são poucos os diagnósticos produzidos sobre a nova condição juvenil que acentuam existir traços comuns, não obstantes as dimensões de espaço, tempo e cultura entre os jovens nascidos no início da década de 1990(geração y) em qualquer lugar do planeta.

Não pretendemos fazer uma discussão conceitual sobre as questões acima mencionadas, mas problematizar a recorrência de certa literatura que apenas aborda a nova condição juvenil e sua relação eletiva com a criminalidade e a violência.

JUVENTUDE E MORATÓRIA SOCIAL


No início da década de 1990, o panorama do crime no Brasil foi profundamente alterado pela conjunção de duas práticas criminosas altamente letais: a disseminação do tráfico de drogas e do tráfico de armas. Tais práticas foram e estão sendo responsáveis pela média de 40 mil homicídios por ano, além de milhares de mutilados. Entre as muitas peculiaridades desta rotina de insegurança e pânico social, gostaria de sublinhar aquela que me parece ser uma das mais importantes e é também a que motiva este pequeno artigo: o alto percentual de jovens que morrem e que matam.
A literatura sobre a criminalidade chama a atenção para o fato de que o crime é democrático, isto é, atinge todas as classes sociais, todos os gêneros, todas as etnias, todas as gerações; todavia, no Brasil, o perfil dos atingidos pelo homicídio e pelos crimes violentos é menos democrático, particularmente devido à alta concentração de criminosos e vítimas na faixa etária compreendida entre 15 e 24 anos de idade.
Os jovens agressores e vítimas são, predominantemente, portadores de atributos que produzem o crime: baixa renda, baixa escolaridade, família desestruturada (freqüentemente monoparentais), ausência de perspectivas para se integrar ao mercado formal de trabalho. Muitos daqueles que pesquisam o tema da criminalidade no Brasil, especialmente a presença do jovem como protagonista e vítima, destacam a conexão entre o crime e a nova condição juvenil, desenvolvida nos marcos do que chamamos de moratória social.
O conceito de moratória social procura destacar a ausência de respostas positivas do mercado e do Estado para a juventude no contexto do fim da ética do trabalho como organizadora da identidade e como fonte de realização e gratificação pessoal. A condição juvenil era marcada (no Brasil até a década de 1980) pela existência de um circuito tradicional: família, escola, emprego. Tal circuito determinava, entre outras coisas, a passagem do adolescente para a vida adulta, na medida em que o emprego dava a ele uma identidade e uma autonomia frente à família.

A destruição de milhões de empregos, a redução drástica dos salários, a criação de um amplo mercado informal, produziram não apenas uma nova pobreza, mas destruíram, com espantosa rapidez, os valores que estruturaram o mundo moderno. O fim do circuito tradicional acima mencionado refere-se tanto ao prolongamento quanto à modificação interna de cada um de seus componentes.

A moratória social prolongaria a juventude até depois dos 30 anos, permitindo o desaparecimento da infância e a precocidade da adolescência. Como o trabalho não mais gratifica e não produz identidades positivas, a nova condição juvenil encontra apenas no consumo a fonte de referências positivas. As transformações na família e na escola contribuem para gerar descrédito nos símbolos que antes eram considerados como fonte de autoridade (a paternidade, o saber, a religião e as leis).

A nova condição juvenil, nos marcos da moratória social, ensejaria o aparecimento de jovens com forte autonomia pessoal (uso indiscriminado do tempo livre) e que buscariam a multiplicação de experiências vitais. Na nova condição juvenil, o futuro e o passado deixam de ser dimensões importantes e a ênfase reside apenas na felicidade da sensação. O novo jovem tem necessidade de reconhecimento, visibilidade, auto-estima e expressão.

A nova condição juvenil é enfocada por certa literatura como absolutamente avessa à participação política e, portanto, pouco sensível para engajar-se em questões sociais, como fizeram as gerações pretéritas. A nova condição juvenil proporcionaria um amadurecimento precoce na vida sexual e afetiva, mas ela se caracterizaria por dificultar o amadurecimento de uma consciência política, especialmente porque o individualismo e o ceticismo seriam dados constitutivos da mesma.

A NOVA CONFIGURAÇÃO FAMILIAR


A transformação da estrutura familiar, que apresenta ritmos e configurações distintas em diferentes países, vem recebendo contribuições importantes da literatura nas áreas de Sociologia, Antropologia, Direito, Psicologia e Serviço Social, particularmente quanto a certas modificações que podem estimular algumas disposições dos jovens para a prática de atos delinqüentes. A ênfase recai na problematização da família monoparental , especialmente ao baixo potencial de supervisão das crianças e adolescentes, o que significaria deixar que outras estruturas sejam responsáveis pela socialização dos mesmos. A ausência de confiança dos pais em seus próprios valores e experiências como válidos para o mundo em que seu filho vive reforçaria uma tendência do jovem a buscar fora da família os estímulos para a criação e desenvolvimento de seus valores.

A escola, outra instituição que poderia prover os jovens através de variados expedientes, de informação e segurança, é vista como incapaz de competir com os meios de comunicação de massa e da mídia eletrônica na produção de valores.

Os pares das crianças e adolescentes tornam-se os principais agentes produtores de valores e outros estímulos para a criação de uma cultura própria e que, progressivamente, volta-se contra os valores dos pais e mesmo contra as figuras de autoridade dos mesmos. A construção do self juvenil, portanto, está destinado a gerar uma imagem paterna ligada à incapacidade de transmitir experiências e valores válidos e importantes para que o jovem possa se sentir seguro e confiante frente aos desafios impostos pela realidade, pelas relações que o mesmo possa estabelecer com pessoas e instituições, relações essas que podem ser conflituosas e desafiadoras.

Alguns autores apontam outros condicionantes, além da ausência de supervisão, fruto da família monoparental e do fracasso da escola para que se crie uma cultura juvenil distinta, qual seja, a transferência da resolução dos problemas vividos pelos jovens para especialistas (médicos, assistentes sociais, juízes, pedagogos etc). Tais especialistas são vistos como mais capazes de promover intervenções bem sucedidas para resolver os variados problemas dos jovens no curso de suas vidas; todavia, a criança e o jovem, sabendo que tais especialistas apenas dirigem suas atenção para os problemas apenas porque são pagos para isso, recusariam o estabelecimento de uma relação de confiança com o mesmo e, por isso, fracassariam como substitutos dos pais.

A perda de confiança na capacidade dos pais para proverem segurança e bem-estar de seus filhos, particularmente pela queda da renda e precariedade dos empregos, produziu uma nova origem, uma corrosão na confiança dos mesmos na importante tarefa de criar seus filhos. A figura materna, principalmente, é a atingida.

A atuação do Estado


É muito recente a preocupação dos Estado (União, Estados membros e Prefeituras) com a elaboração de políticas públicas e sociais destinada aos jovens e as poucas iniciativas ainda carecem de avaliações mais fundamentadas. A literatura sobre o tema é consensual quanto à avaliação sobre as origens das políticas existentes, sempre enfatizando a relação entre juventude e criminalidade e propondo ações que visam proteger o jovem de situações de risco, de violência e exposição às drogas. Os programas, invariavelmente, consideram que a freqüência à escola e um emprego (precário) podem proporcionar ao jovem a criação de um maior capital cultural e estimular a auto-estima que deverão ajudá-lo a se integrar na sociedade.

As iniciativas advindas do mercado são quase inexistentes e os jovens são apenas tratados como consumidores e o consumo é difundido como o caminho para que eles sejam pessoas descoladas, inteligentes e antenadas com a contemporaneidade; para isso, o mercado, se serve de algumas criações artísticas e estéticas genuínas dos jovens, destituindo as mesmas de qualquer conteúdo social crítico e transformado-as apenas em objetos de consumo.

Protagonismo vicário


A visão do jovem como apenas alguém que poderá de envolver com a criminalidade e com as drogas e, portanto, como um bandido em potencial, ou a literatura que incorpora a noção de moratória social que analisa o jovem em sua relação com o mercado em um contexto que o transforma simplesmente em problema social grave, são obstáculos que podem nos impedir de ver qualquer positividade na vida, nas ações e criações da juventude. Despolitizada, narcisista, individualista, cética, violenta, drogadiça, a nova condição juvenil acumula estes e outros adjetivos que a aprisionam em estereótipos que reclamam apenas o controle social para uma “geração perigosa”.

Quando as declarações oficiais afirmam que os programas sociais devem observar o jovem como protagonista dos mesmos e sujeito de seus direitos, quando os agentes do Estado desenham programas apenas para inseri-lo adequadamente no mercado, criam-se situações que desmotivam o jovem na medida em que sua situação de vulnerabilidade não é modificada e abalam a sua identidade porque nenhum símbolo ligado a ele (linguagem, estética e criações) é incorporado como essencial na elaboração e aplicação dos programas.

A ausência do Estado e do mercado como instâncias produtoras de novas e positivas identidades para a juventude pode incentivar o tráfico de drogas e armas a surgir como alternativa. O jovem é recrutado pelo tráfico porque esta atividade produz renda, poder, autoridade, experiências vitais, auto-estima, identidade, bem sabemos; todavia, a sociedade brasileira naturalizou esta saída como sendo a única que o jovem encontrou e, portanto, a imagem do jovem como sendo violento se afirma como a única identidade possível para todos que têm entre 15 e 25 anos.

O desafio é multiplicar as imagens das inúmeras e generosas manifestações de vitalidade, solidariedade, criatividade e desejos legítimos que encontramos na nova condição juvenil e, ao mesmo tempo, lutarmos para que as políticas sociais incorporem as dimensões supracitadas como essenciais a fim de que as mesmas estimulem a autovalorização, a cidadania e o acesso a bens sociais para a juventude brasileira.

1 - Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. Mestre em Ciência Política e Doutor em História Social. Último livro: Modernismo e Ensaio Histórico (Editora Cortez)

2 - É a família liderada e economicamente sustentada apenas pelo pai ou pela mãe.