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SOBRE JANELAS E NEVOEIRO
Ano 1 - Nº 1
Outubro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
O Movimento Ecumênico num mundo fragmentado


Participantes da 9ª Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas,
realizada em fevereiro de 2006, em Porto Alegre (RS).

Por: Zwinglio M. Dias

Depois de mais de meio século de significativa incidência na vida de suas igrejas-membros e de importantes contribuições para e promoção da justiça e a preservação da paz, em diferentes situações e contextos do mundo contemporâneo, o Conselho Mundial de Igrejas viu-se afetado pelas profundas mudanças que marcaram a sociedade humana nas últimas décadas. Numa tentativa de interpretar este processo Konrad Raiser, ex-Secretário Geral do Conselho, em seu livro “Ecumenism in Transition”, refere-se a esta crise como uma expressão de mudança do paradigma ecumênico vigente até o final da década dos oitentas, resultado, evidentemente, da crise maior experimentada pela sociedade mundial com o fim da maior parte das experiências socialistas e o triunfo do capitalismo em sua formulação neoliberal.

O arrefecimento das utopias gerou uma situação geral de desconcerto que levou as igrejas a uma atitude mais cautelosa em relação a seus compromissos intereclesiásticos. Marcadas por disputas internas de variado tipo e que, em muitos casos, têm que ver com os compromissos assumidos por seus empenhos ecumênicos, as igrejas diminuíram a intensidade de seus envolvimentos com a causa da unidade na medida em que estes pudessem afetar seu equilíbrio institucional. Dado o fato de que o Conselho Mundial de Igrejas é um organismo das Igrejas cujo pulsar reflete necessariamente o pulsar de suas Igrejas-membros, embora tenha desenvolvido uma dinâmica própria e se institucionalizado teórica e praticamente, a vontade ecumênica destas veio a tornar-se decisiva e não permitiu que sua autocompreensão como um Conselho de Igrejas, consolidada nas décadas anteriores tivesse continuidade. Assim, as ambigüidades experimentadas pelas Igrejas refletiram-se no interior do CMI mudando-lhe a configuração e o ritmo de sua incidência no processo de desenvolvimento da causa ecumênica.

Como a proposta ecumênica não cai pronta dos céus, mas é resultado do compromisso dos cristãos e suas instâncias organizacionais no interior das sociedades humanas, tentaremos, nos parágrafos seguintes, elaborar algumas linhas de força ético-teológicas que podem nos ajudar a repensar os novos desafios que se colocam para a reconfiguração do movimento ecumênico no contexto destes tempos de globalização perversa e desigual que nos toca viver.

Os Desafios do Contexto Atual

Ao analisar as razões que deram origem à, em muitos sentidos, caótica situação contemporânea que experimentamos, o geógrafo Milton Santos, numa penetrante descrição das condições da sociedade atual, chama a atenção para o fato de que “nos últimos cinco séculos de desenvolvimento e expansão do capitalismo, a concorrência se estabelece como regra. Agora, a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque chega eliminando a compaixão. A competitividade tem a guerra como norma. Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar. (...) Ora, é isso também que justifica os individualismos arrebatadores e possessivos: individualismos na vida econômica (a maneira como as empresas batalham umas com as outras); individualismos na ordem da política (a maneira como os partidos freqüentemente abandonam a idéia de política para se tornarem simplesmente eleitoreiros); individualismos na ordem do território (as cidades brigando umas com as outras, as regiões reclamando soluções particularistas); também na ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o outro como coisa. Comportamentos que justificam todo desrespeito às pessoas são, afinal, uma das bases da sociabilidade atual.” (Santos: 2001, 47).

Talvez, mais do que em outros períodos da experiência humana, pelo menos no interior da chamada cultura ocidental, nunca tenha sido tão grande a busca pelo sentido da vida, ou seja, a necessidade, profundamente experimentada, de uma explicação para a condição de impermanência que nos caracteriza como humanos, e que relutamos em aceitar. Esta situação que, remotamente, tem uma de suas origens na instituição do patriarcalismo e, mais recentemente, na operacionalização dos supostos valores gerados a partir da revolução industrial e tecnológica, do século XVII para cá, que deram forma à civilização moderna, está dominada por uma racionalidade que não consegue satisfazer as carências de sentido de transcendência dos humanos. “A civilização que construímos na esperança de que viesse a constituir para todos nós um lugar de bem-aventurança, até hoje só conseguiu mostrar a sua impossibilidade. A libertação dos humanos, a fraternidade universal, a paz comum, a felicidade, aparecem cada vez mais como frutos proibidos ao paladar humano. São bens dos quais a humanidade como um todo está infinitamente longe de poder desfrutar.”(Nogueira: 1978, 13) Os humanos, hoje, são seres solitários, dispersos no anonimato dos imensos conglomerados urbanos, desenraizados e sós.

O filósofo italiano U. Galimberti atribui esta situação de vazio, de solidão e de abandono à totalização da linguagem da ciência e da técnica que, ao produzir modificações irreversíveis na relação humanos-natureza, mas sem assumir nenhum tipo de responsabilidade com relação ao significado da vida humana, por ser em si mesma uma linguagem parcial, porque delimitada pelo método e pelo objeto, plasmou uma civilização tecnológica sem nenhuma visão de mundo e nenhuma consideração pelo humano a não ser em termos de uma perspectiva utilitarista. Com isso a ética perdeu sua força humanizadora como norma determinante e como fundamento de certezas coletivas. (Galimberti: 2003, 307).

Num dos fragmentos de suas “Cartas da Prisão” D. Bonhoeffer afirmava, com ênfase e lúcida determinação, a natureza histórica da Igreja ao dizer ela é um “pedaço do mundo”. Ou seja, que ela reflete em suas entranhas, em seus comportamentos, em sua maneira de ser, as condições próprias da vida sócio-cultural na qual se encontra inserida. Daí as contradições que marcam sua presença no interior da sociedade e que a dilaceram entre o imperativo da fidelidade a sua vocação originária e às solicitações, aparentemente, irresistíveis que lhes são dirigidas pela ideologia dominante da sociedade.
Nos parágrafos seguintes procuraremos assinalar algumas dimensões teológicas constitutivas da comunidade dos seguidores de Jesus que, embora presentes em nossas formulações teológico-doutrinais, permaneceram congeladas numa significação histórica que não mais corresponde às novas situações que hoje experimentamos e, por isso, perderam sua força anti-sistêmica e sua capacidade de reconstrução da esperança.

A Igreja Cristã como espaço de compartilhamento da vida.

Os primeiros cristãos, aqueles e aquelas nascidos a partir da experiência de transbordamento de sentido que foi o Pentecostes, entenderam e, mais do que isto, sentiram profundamente em suas vidas o significado da proposta existencial de Jesus a ponto de iniciar uma nova experiência de convivência baseada na explicitação da misericórdia e na realização da justiça. Num texto admirável sobre a compaixão Leonardo Boff, dentre outras coisas nos chama a atenção para o significado da misericórdia no contexto da tradição judaico-cristã. Segundo este autor, a palavra misericórdia corresponde à hebraica “rahamim” e significa “ter entranhas e com elas sentir a realidade do outro, especialmente de quem sofre. Significa, portanto, con-sentir mais do que entender e mostrar capacidade de identificação e com-paixão com o outro. A misericórdia é considerada a característica básica da experiência de Jesus de Nazaré. Ele experimentou e anunciou um Deus Pai cuja misericórdia não tem limites: ‘dá o sol e a chuva a justos e injustos’ e não deixa de amar os ‘ingratos e maus’. Ele é o Deus misericordioso com o filho pródigo, com a ovelha tresmalhada, com a pecadora pública. É um Pai com características de Mãe.”(Boff: 1999, 127) A comunidade cristã dos primeiros tempos se caracterizou por tentar plasmar, de forma concreta, estes valores presentes no testemunho de vida de Jesus. Foi uma comunidade inclusiva onde todos compartilhavam tudo. Por isso mesmo foi uma comunidade contra-cultural, pois vivia os valores essenciais do Reino e não aqueles da sociedade onde se encontrava inserida. Mas, não foi, por isso, uma comunidade de costas para a realidade de seu tempo. Ao contrário, vivia na partilha da vida como expressão de testemunho da ressurreição do crucificado. Na medida em que todos tinham tudo em comum a ressurreição de Jesus ganhava realidade no meio da sociedade judeo-palestina e da oikoumene helênica.

Podemos afirmar que inclusão e solidariedade ativa foram as suas marcas essenciais. Estava aberta a todos, e não apenas aos judeus. Como sabemos, não foi fácil para esses primeiros seguidores de Jesus superarem os preconceitos etnocêntricos de que também eram vítimas. A batalha cultural-ideológica entre cristãos judaizantes e cristãos gentios foi dilaceradora e fez sangrar a unidade então em construção.

Nossas igrejas hoje padecem de problemas similares. Herdamos um modelo eclesiológico de características exclusivistas, que não admite a diversidade, a diferença, e que, por isso, se fecha sobre si mesmo negando-se a abertura aos demais que lhe possibilitaria perceber o que Deus está fazendo no mundo por outros caminhos e outras experiências humanas de transcendência. Continuamos atados a preconceitos, dogmatismos, cristalizações hermenêuticas relacionadas à Bíblia e interpretações do mundo e da vida próprias de cristãos de outras épocas, sem dar-nos conta de que eles foram apenas uma parte – não o todo – da experiência dos seguidores de Jesus em seu tempo específico. Esta atitude tem a ver com a mesma realidade trágica da absolutização ideológica de qualquer tipo de fundamentalismo.

O Novo Testamento quando se refere à missão dos seguidores de Jesus se refere, basicamente, à ação de Deus em meio a sua criação para dar forma e preservar a vida que se originou de sua amorosa criatividade. Assim, é Deus que está desde sempre em ação garantido a realização plena de seus propósitos. Os textos neotestamentários nos chamam a atenção, portanto, para a missão de Deus no mundo que se torna então no espaço privilegiado por sua presença. O testemunho da comunidade cristã é um dos instrumentos desta ação divina, o que significa dizer que o exercício da solidariedade entre aqueles que atenderam o apelo de Jesus de Nazaré é a marca de sua inserção na ação misericordiosa de Deus.

Ora, se a sustentação e promoção da vida é uma tarefa que repousa sobre a responsabilidade de todos os humanos (ainda que nem sempre entendida e realizada por todos) isto quer dizer que não cabe aos seguidores de Jesus nenhuma pretensão de hegemonia e, muito menos, de imposição de sua perspectiva no esforço comum de percepção e construção da vida. Mas é óbvio que para a visão cristã, a missão da humanidade se torna qualificada e plenificada pela missão de Deus conforme esta se manifestou na vida e obra de Jesus. Esta afirmação da especificidade da comunidade cristã resguarda os seguidores de Jesus do relativismo empobrecedor e da soberba que conduz ao exclusivismo, abrindo-a à experiência da diversidade e à riqueza inesgotável das múltiplas manifestações de Deus vivenciadas pelos humanos em suas diferentes expressões culturais. O testemunho da vida solidariamente compartilhada implica, portanto, busca da presença de Deus no outro diferente de nós e a quem garantimos o direito de ser e permanecer o diferente que ele/ela é. Pois Deus, por ser a expressão que transcende a nossa experiência limitada e parcial não é apenas o Deus de nossa tradição cultural. Ele é o Deus da história, a alma de todos os esforços humanos, em todo o tempo, para descobrir e realizar o sentido da vida.

A Igreja Cristã como comunidade recriadora do sentido integral da vida

Já há algumas décadas que os ventos da religiosidade tomaram conta do mundo. As religiões antigas, incluindo aqui o Cristianismo, revestiram-se de novas vitalidades ao mesmo tempo em que novas formulações religiosas vão surgindo por toda parte. Por religiosidade não entendemos apenas aquilo que está referido às práticas institucionais religiosas e/ou eclesiásticas, mas também às atitudes e cosmovisões que carregam em si um núcleo estruturador de sentido e práticas de caráter religioso, ainda que sejam negados como tais. Os sociólogos e antropólogos que se têm debruçado sobre a realidade social estão falando, hoje, das identidades individuais como resultado de vivências de grupos de interesse altamente fragmentados onde se combinam diferentes níveis de sentimentos de identificação e de pertença.

A sentida frustração experimentada nas últimas décadas, com as promessas de progresso ou desenvolvimento de novas estruturas sócio-econômicas, capazes de tornar possível a realização dos desejos humanos de bem-estar e felicidade, mais os desajustamentos e rupturas da coesão social provocadas pelas oscilações dos jogos de interesses que constituem o mercado têm provocado no homo urbanus moderno uma profunda busca de sentido e de comunidade capaz de lhe oferecer segurança psíquica e razões para viver. Segundo o sociólogo Nestor Canclini este desejo de sentido e de pertença comunitária não encontra mais a sua referência principal nas entidades macro-sociais como a nação, a classe ou a grande instituição religiosa, mas se dirige a pequenos grupos religiosos, conglomerados esportivos, grupos de solidariedade geracional e outros. O que caracteriza estes grupos identitários atomizados é o fato de congregarem pessoas ao redor de consumos simbólicos e não mais em relação a processos produtivos. Em nosso continente, observa Canclini, nossas sociedades estão cada vez menos referidas a idéias de territorialidade, língua ou unidade política. Em vez disso, fragmentam-se e se reaglutinam como ‘comunidades interpretativas de consumidores’. Estas se caracterizam por se constituírem em conjuntos de pessoas que compartilham preferências e interpretações comuns a respeito de certos bens simbólicos de variado tipo. Isto quer dizer que o consumo não está relacionado apenas ao fenômeno irracional do desejo mas também manifesta uma racionalidade sócio-política interativa: também é um meio para enviar e receber mensagens simbólicas que nos diferenciam e nos relacionam uns com os outros.(Canclini: 2001, 285-286)

No que se refere às nossas comunidades eclesiásticas contemporâneas importa assinalar que, na medida em que vão homogeneizando determinadas expressões rituais, mais ligadas aos estímulos derivados das virtualidades do consumo que às práticas litúrgicas históricas, responsáveis pela definição de suas identidades eclesiológicas, correm o sério risco de passarem a fazer parte desta dinâmica ditada pelo mercado. Tais práticas mostram-se profundamente influenciadas pelos modelos midiáticos e, ao serem sacralizadas no espaço eclesiástico, ao mesmo tempo que legitimam, ainda que inconscientemente, os padrões de convivência baseados no consumismo, pervertem a dimensão criativa, integradora e libertadora da koinonia preconizada pela proposta cristã. Se é verdade que essas ‘comunidades interpretativas de consumidores’, conforme a definição de Canclini, respondem às necessidades sentidas pelas pessoas, não é menos verdade que se constituem, também, em soluções precárias e pontuais para questões últimas, mascarando os reais problemas e escamoteando os devidos encaminhamentos para soluções verdadeiras.

A comunidade de homens e mulheres que se quer cristã é uma comunidade interpretadora da vida e não do mercado. Pelo simples fato de apontar Jesus de Nazaré como o seu referencial de sentido já está inserida na ação de Deus no mundo, e nele encontra a direção e a significação de sua existência. Pois é a memória perigosa de sua experiência que articula os critérios e as pautas para o desenrolar da vida dessa comunidade. Como assinala certeiramente R. Gauraudy: “Conhecer-se não é se encerrar em uma interioridade subjetiva, em uma pretensa ‘psicologia das profundezas’, é descobrir que o ‘eu’ verdadeiro não é o pequeno ‘eu’ encerrado em seu invólucro de pele, mas é a tomada de consciência de pertencer ao todo. A tomada de consciência de que essa presença de Deus é o que há de mais íntimo em mim. ‘O Reino de Deus acaba de chegar a vós’ (Lc 11,20 e Mt 12,28). Deus já está aí, e seu Reino também. Com o poder de expulsar demônios, ou seja, o meu pequeno ‘eu’ limitado; minhas propriedades, minhas funções, meus desejos, meus poderes.” (Garaudy: 1995, 96) Isto quer dizer que a fidelidade à proposta evangélica significa tensão permanente com o ambiente cultural no qual a comunidade cristã existe. É na imitatio Christi que o testemunho do Reino se processa. Jesus foi um promotor contra-cultural na medida em que não aceitou os valores e procedimentos da cultura em que vivia porque estes contrariavam as perspectivas e as propostas de humanização e divinização da vida que ele entendia representar.

Assim, em sua vocação de dissidente encontrado na condição de um proscrito, que também se autoproscreve, é como Jesus se descobre como um revelador da presença de Deus na história. Ao se apresentar como ‘uma-pessoa-para-as-outras-pessoas’ (Bonhoeffer) Jesus oferece uma nova chave hermenêutica que denuncia a idolatria das formas socio-culturais e econômicas vigentes no seu tempo, e em todos os tempos, para tornar possível a apreensão do sentido pleno da vida. A compreensão individualista da vida e da salvação, a aceitação passiva e acrítica da ideologia do mercado (que receita agressividade, concorrência e eficácia como valores supremos a serem cultivados), o culto à técnica, a banalização da violência, a mercantilização do sexo e dos sentimentos mais profundos, a agressão à natureza, o desprezo pela dignidade da vida humana e a discriminação do diferente não podem, definitivamente fazer parte de uma proposta eclesiológica que se diz cristã. A agenda ética da comunidade dos que se dizem cristãos tem que estar conformada à agenda ética de Jesus de Nazaré.

A Igreja cristã como uma comunidade de iguais num mundo de desigualdades

A situação que enfrentamos hoje pede da comunidade dos seguidores de Jesus uma atitude mais corajosa e criativa. Atitude esta que só pode tornar-se realidade se conseguirmos nos desprender das ataduras com que a sociedade, com sua cultura do consumo, nos cativa, entregando-nos ao exercício da liberdade “com que Cristo nos libertou”. Urge que busquemos na longa e histórica tradição acumulada pelo Cristianismo os exemplos e as pistas que o Espírito de Deus tem deixado para inspirar-nos. É em meio a essa trama complexa de comunidades de consumidores de bens materiais e espirituais, de identidades diversificadas, mas todas definidas pelo monoteísmo do mercado, esse novo Moloch ou, talvez, o novo nome do Anticristo, que a comunidade cristã tem que redesenhar os traços de seu rosto.

Aqui algumas questões pedem respostas urgentes: se a globalização, tal como é imposta ao mundo, não é uma mera homogenização, como a mídia nos quer fazer crer, mas um processo de fracionamento e recomposição continuada das comunidades humanas, como deve a comunidade dos seguidores de Jesus entender seu lugar e papel nesse permanente processo de mutação sócio-cultural? Como pode a igreja cristã preservar sua autenticidade como comunidade verdadeira, não de consumidores de bens religiosos prêt-a-porter, mas de continuadora da obra humanizadora de Jesus? O que lhe é especificamente próprio que ela não pode e não deve tratar como mais um objeto de consumo? Do que ela pode lançar mão para se renovar e que não passa pelo controle e nem pela manipulação das pessoas, mas, antes, restaura a rica cultura de nosso sofrido povo e o sentido da dignidade humana, tão em baixa nestes tempos e templos globalizados?

Jesus criou uma comunidade de iguais, onde todos são responsáveis por cada um e cada um deve entender-se como responsável por todos. Uma comunidade de pessoas misericordiosas e compassivas. Como expressou muito bem Leonardo Boff, Jesus “fez da misericórdia a chave de sua ética. É pela misericórdia que os seres humanos chegam ao Reino da vida; sem a misericórdia não há salvação para ninguém (Mt 25, 36-41). As parábolas do bom samaritano que mostra compaixão pelo caído na estrada (Lc 10, 30-37) e a do filho pródigo acolhido e perdoado pelo pai (Lc 15, 11-32) são expressões exemplares de cuidado e plena humanidade.” (Boff: 1999, 168) Entendemos que o Espírito de Deus, que preserva e sustenta a vida e a criação, está nos convidando hoje a recuperar o aspecto simbólico-sacramental da existência da Igreja como prática comunitária, oferecendo ao mundo um testemunho profundo e convincente de um novo estilo de vida de uma comunidade que vive da esperança do Reino de Deus. Isto é, de que uma nova ordem de vida entre os humanos é possível porque Jesus de Nazaré morreu (e depois dele muitos outros!), cravando no horizonte da humanidade o sinal da cruz, e que ressuscita cada vez que os homens reconhecem os limites de sua precariedade histórica e se reconhecem iguais diante do Mistério prodigioso que preside a vida. A comunidade cristã, como espaço de uma prática intensa de solidariedade e comunhão, que reúne os humanos num único projeto fundamental de vida compartilhada, tem nesta proposta a sua contribuição essencial para a construção de uma cidadania responsável.

*Zwinglio M. Dias, editor da Tempo e Presença Digital, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Bibliografia:

Boff, Leonardo, Saber cuidar, Petrópolis: Vozes, 1999.
Galimbert. U., Rastros do Sagrado, São Paulo: Paulus, 2003.
Canclini, N.Garcia, Consumidores e Cidadãos, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.
Garaudy, R., Deus é necessário?, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995.
Nogueira, J.C., Pulsões de Morte e Civilização, in Morais, J,F,R, de (Org.) Construção Social da Enfermidade, São Paulo: Cortez &Moraes, 1978.
Raiser, Konrad, Ecumenism in Transition, Geneva: WCC Publications, 1999.
Santos, Milton, Por uma outra globalização, Rio de Janeiro: Record, 2001.