Depois de mais de meio século de significativa incidência na vida
de suas igrejas-membros e de importantes contribuições para e promoção
da justiça e a preservação da paz, em diferentes situações
e contextos do mundo contemporâneo, o Conselho Mundial de Igrejas viu-se
afetado pelas profundas mudanças que marcaram a sociedade humana nas últimas
décadas. Numa tentativa de interpretar este processo Konrad Raiser, ex-Secretário
Geral do Conselho, em seu livro “Ecumenism in Transition”,
refere-se a esta crise como uma expressão de mudança do paradigma
ecumênico vigente até o final da década dos oitentas, resultado,
evidentemente, da crise maior experimentada pela sociedade mundial com o fim da
maior parte das experiências socialistas e o triunfo do capitalismo em sua
formulação neoliberal.
O arrefecimento das utopias gerou uma situação geral de desconcerto
que levou as igrejas a uma atitude mais cautelosa em relação a
seus compromissos intereclesiásticos. Marcadas por disputas internas
de variado tipo e que, em muitos casos, têm que ver com os compromissos
assumidos por seus empenhos ecumênicos, as igrejas diminuíram a
intensidade de seus envolvimentos com a causa da unidade na medida em que estes
pudessem afetar seu equilíbrio institucional. Dado o fato de que o Conselho
Mundial de Igrejas é um organismo das Igrejas cujo pulsar reflete necessariamente
o pulsar de suas Igrejas-membros, embora tenha desenvolvido uma dinâmica
própria e se institucionalizado teórica e praticamente, a vontade
ecumênica destas veio a tornar-se decisiva e não permitiu que sua
autocompreensão como um Conselho de Igrejas, consolidada nas décadas
anteriores tivesse continuidade. Assim, as ambigüidades experimentadas
pelas Igrejas refletiram-se no interior do CMI mudando-lhe a configuração
e o ritmo de sua incidência no processo de desenvolvimento da causa ecumênica.
Como a proposta ecumênica não cai pronta dos céus, mas
é resultado do compromisso dos cristãos e suas instâncias
organizacionais no interior das sociedades humanas, tentaremos, nos parágrafos
seguintes, elaborar algumas linhas de força ético-teológicas
que podem nos ajudar a repensar os novos desafios que se colocam para a reconfiguração
do movimento ecumênico no contexto destes tempos de globalização
perversa e desigual que nos toca viver.
Os Desafios do Contexto Atual
Ao analisar as razões que deram origem à, em muitos sentidos,
caótica situação contemporânea que experimentamos,
o geógrafo Milton Santos, numa penetrante descrição das
condições da sociedade atual, chama a atenção para
o fato de que “nos últimos cinco séculos de desenvolvimento
e expansão do capitalismo, a concorrência se estabelece como regra.
Agora, a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência
atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque
chega eliminando a compaixão. A competitividade tem a guerra como norma.
Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar.
(...) Ora, é isso também que justifica os individualismos arrebatadores
e possessivos: individualismos na vida econômica (a maneira como as empresas
batalham umas com as outras); individualismos na ordem da política (a
maneira como os partidos freqüentemente abandonam a idéia de política
para se tornarem simplesmente eleitoreiros); individualismos na ordem do território
(as cidades brigando umas com as outras, as regiões reclamando soluções
particularistas); também na ordem social e individual são individualismos
arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o outro como coisa. Comportamentos
que justificam todo desrespeito às pessoas são, afinal, uma das
bases da sociabilidade atual.” (Santos: 2001, 47).
Talvez, mais do que em outros períodos da experiência humana,
pelo menos no interior da chamada cultura ocidental, nunca tenha sido tão
grande a busca pelo sentido da vida, ou seja, a necessidade, profundamente experimentada,
de uma explicação para a condição de impermanência
que nos caracteriza como humanos, e que relutamos em aceitar. Esta situação
que, remotamente, tem uma de suas origens na instituição do patriarcalismo
e, mais recentemente, na operacionalização dos supostos valores
gerados a partir da revolução industrial e tecnológica,
do século XVII para cá, que deram forma à civilização
moderna, está dominada por uma racionalidade que não consegue
satisfazer as carências de sentido de transcendência dos humanos.
“A civilização que construímos na esperança
de que viesse a constituir para todos nós um lugar de bem-aventurança,
até hoje só conseguiu mostrar a sua impossibilidade. A libertação
dos humanos, a fraternidade universal, a paz comum, a felicidade, aparecem cada
vez mais como frutos proibidos ao paladar humano. São bens dos quais
a humanidade como um todo está infinitamente longe de poder desfrutar.”(Nogueira:
1978, 13) Os humanos, hoje, são seres solitários, dispersos no
anonimato dos imensos conglomerados urbanos, desenraizados e sós.
O filósofo italiano U. Galimberti atribui esta situação
de vazio, de solidão e de abandono à totalização
da linguagem da ciência e da técnica que, ao produzir modificações
irreversíveis na relação humanos-natureza, mas sem assumir
nenhum tipo de responsabilidade com relação ao significado da
vida humana, por ser em si mesma uma linguagem parcial, porque delimitada pelo
método e pelo objeto, plasmou uma civilização tecnológica
sem nenhuma visão de mundo e nenhuma consideração pelo
humano a não ser em termos de uma perspectiva utilitarista. Com isso
a ética perdeu sua força humanizadora como norma determinante
e como fundamento de certezas coletivas. (Galimberti: 2003, 307).
Num dos fragmentos de suas “Cartas da Prisão” D. Bonhoeffer
afirmava, com ênfase e lúcida determinação, a natureza
histórica da Igreja ao dizer ela é um “pedaço do
mundo”. Ou seja, que ela reflete em suas entranhas, em seus comportamentos,
em sua maneira de ser, as condições próprias da vida sócio-cultural
na qual se encontra inserida. Daí as contradições que marcam
sua presença no interior da sociedade e que a dilaceram entre o imperativo
da fidelidade a sua vocação originária e às solicitações,
aparentemente, irresistíveis que lhes são dirigidas pela ideologia
dominante da sociedade.
Nos parágrafos seguintes procuraremos assinalar algumas dimensões
teológicas constitutivas da comunidade dos seguidores de Jesus que, embora
presentes em nossas formulações teológico-doutrinais, permaneceram
congeladas numa significação histórica que não mais
corresponde às novas situações que hoje experimentamos
e, por isso, perderam sua força anti-sistêmica e sua capacidade
de reconstrução da esperança.
A Igreja Cristã como espaço de compartilhamento da vida.
Os primeiros cristãos, aqueles e aquelas nascidos a partir da experiência
de transbordamento de sentido que foi o Pentecostes, entenderam e, mais do que
isto, sentiram profundamente em suas vidas o significado da proposta existencial
de Jesus a ponto de iniciar uma nova experiência de convivência
baseada na explicitação da misericórdia e na realização
da justiça. Num texto admirável sobre a compaixão Leonardo
Boff, dentre outras coisas nos chama a atenção para o significado
da misericórdia no contexto da tradição judaico-cristã.
Segundo este autor, a palavra misericórdia corresponde à hebraica
“rahamim” e significa “ter entranhas e com elas
sentir a realidade do outro, especialmente de quem sofre. Significa, portanto,
con-sentir mais do que entender e mostrar capacidade de identificação
e com-paixão com o outro. A misericórdia é considerada
a característica básica da experiência de Jesus de Nazaré.
Ele experimentou e anunciou um Deus Pai cuja misericórdia não
tem limites: ‘dá o sol e a chuva a justos e injustos’ e não
deixa de amar os ‘ingratos e maus’. Ele é o Deus misericordioso
com o filho pródigo, com a ovelha tresmalhada, com a pecadora pública.
É um Pai com características de Mãe.”(Boff:
1999, 127) A comunidade cristã dos primeiros tempos se caracterizou por
tentar plasmar, de forma concreta, estes valores presentes no testemunho de
vida de Jesus. Foi uma comunidade inclusiva onde todos compartilhavam tudo.
Por isso mesmo foi uma comunidade contra-cultural, pois vivia os valores essenciais
do Reino e não aqueles da sociedade onde se encontrava inserida. Mas,
não foi, por isso, uma comunidade de costas para a realidade de seu tempo.
Ao contrário, vivia na partilha da vida como expressão de testemunho
da ressurreição do crucificado. Na medida em que todos tinham
tudo em comum a ressurreição de Jesus ganhava realidade no meio
da sociedade judeo-palestina e da oikoumene helênica.
Podemos afirmar que inclusão e solidariedade ativa foram as suas marcas
essenciais. Estava aberta a todos, e não apenas aos judeus. Como sabemos,
não foi fácil para esses primeiros seguidores de Jesus superarem
os preconceitos etnocêntricos de que também eram vítimas.
A batalha cultural-ideológica entre cristãos judaizantes e cristãos
gentios foi dilaceradora e fez sangrar a unidade então em construção.
Nossas igrejas hoje padecem de problemas similares. Herdamos um modelo eclesiológico
de características exclusivistas, que não admite a diversidade,
a diferença, e que, por isso, se fecha sobre si mesmo negando-se a abertura
aos demais que lhe possibilitaria perceber o que Deus está fazendo no
mundo por outros caminhos e outras experiências humanas de transcendência.
Continuamos atados a preconceitos, dogmatismos, cristalizações
hermenêuticas relacionadas à Bíblia e interpretações
do mundo e da vida próprias de cristãos de outras épocas,
sem dar-nos conta de que eles foram apenas uma parte – não o todo
– da experiência dos seguidores de Jesus em seu tempo específico.
Esta atitude tem a ver com a mesma realidade trágica da absolutização
ideológica de qualquer tipo de fundamentalismo.
O Novo Testamento quando se refere à missão dos seguidores de
Jesus se refere, basicamente, à ação de Deus em meio a
sua criação para dar forma e preservar a vida que se originou
de sua amorosa criatividade. Assim, é Deus que está desde sempre
em ação garantido a realização plena de seus propósitos.
Os textos neotestamentários nos chamam a atenção, portanto,
para a missão de Deus no mundo que se torna então no espaço
privilegiado por sua presença. O testemunho da comunidade cristã
é um dos instrumentos desta ação divina, o que significa
dizer que o exercício da solidariedade entre aqueles que atenderam o
apelo de Jesus de Nazaré é a marca de sua inserção
na ação misericordiosa de Deus.
Ora, se a sustentação e promoção da vida é
uma tarefa que repousa sobre a responsabilidade de todos os humanos (ainda que
nem sempre entendida e realizada por todos) isto quer dizer que não cabe
aos seguidores de Jesus nenhuma pretensão de hegemonia e, muito menos,
de imposição de sua perspectiva no esforço comum de percepção
e construção da vida. Mas é óbvio que para a visão
cristã, a missão da humanidade se torna qualificada e plenificada
pela missão de Deus conforme esta se manifestou na vida e obra de Jesus.
Esta afirmação da especificidade da comunidade cristã resguarda
os seguidores de Jesus do relativismo empobrecedor e da soberba que conduz ao
exclusivismo, abrindo-a à experiência da diversidade e à
riqueza inesgotável das múltiplas manifestações
de Deus vivenciadas pelos humanos em suas diferentes expressões culturais.
O testemunho da vida solidariamente compartilhada implica, portanto, busca da
presença de Deus no outro diferente de nós e a quem garantimos
o direito de ser e permanecer o diferente que ele/ela é. Pois Deus, por
ser a expressão que transcende a nossa experiência limitada e parcial
não é apenas o Deus de nossa tradição cultural.
Ele é o Deus da história, a alma de todos os esforços humanos,
em todo o tempo, para descobrir e realizar o sentido da vida.
A Igreja Cristã como comunidade recriadora do sentido integral
da vida
Já há algumas décadas que os ventos da religiosidade tomaram
conta do mundo. As religiões antigas, incluindo aqui o Cristianismo,
revestiram-se de novas vitalidades ao mesmo tempo em que novas formulações
religiosas vão surgindo por toda parte. Por religiosidade não
entendemos apenas aquilo que está referido às práticas
institucionais religiosas e/ou eclesiásticas, mas também às
atitudes e cosmovisões que carregam em si um núcleo estruturador
de sentido e práticas de caráter religioso, ainda que sejam negados
como tais. Os sociólogos e antropólogos que se têm debruçado
sobre a realidade social estão falando, hoje, das identidades individuais
como resultado de vivências de grupos de interesse altamente fragmentados
onde se combinam diferentes níveis de sentimentos de identificação
e de pertença.
A sentida frustração experimentada nas últimas décadas,
com as promessas de progresso ou desenvolvimento de novas estruturas sócio-econômicas,
capazes de tornar possível a realização dos desejos humanos
de bem-estar e felicidade, mais os desajustamentos e rupturas da coesão
social provocadas pelas oscilações dos jogos de interesses que
constituem o mercado têm provocado no homo urbanus moderno uma profunda
busca de sentido e de comunidade capaz de lhe oferecer segurança psíquica
e razões para viver. Segundo o sociólogo Nestor Canclini este
desejo de sentido e de pertença comunitária não encontra
mais a sua referência principal nas entidades macro-sociais como a nação,
a classe ou a grande instituição religiosa, mas se dirige a pequenos
grupos religiosos, conglomerados esportivos, grupos de solidariedade geracional
e outros. O que caracteriza estes grupos identitários atomizados é
o fato de congregarem pessoas ao redor de consumos simbólicos e não
mais em relação a processos produtivos. Em nosso continente, observa
Canclini, nossas sociedades estão cada vez menos referidas a idéias
de territorialidade, língua ou unidade política. Em vez disso,
fragmentam-se e se reaglutinam como ‘comunidades interpretativas de consumidores’.
Estas se caracterizam por se constituírem em conjuntos de pessoas que
compartilham preferências e interpretações comuns a respeito
de certos bens simbólicos de variado tipo. Isto quer dizer que o consumo
não está relacionado apenas ao fenômeno irracional do desejo
mas também manifesta uma racionalidade sócio-política interativa:
também é um meio para enviar e receber mensagens simbólicas
que nos diferenciam e nos relacionam uns com os outros.(Canclini: 2001, 285-286)
No que se refere às nossas comunidades eclesiásticas contemporâneas
importa assinalar que, na medida em que vão homogeneizando determinadas
expressões rituais, mais ligadas aos estímulos derivados das virtualidades
do consumo que às práticas litúrgicas históricas,
responsáveis pela definição de suas identidades eclesiológicas,
correm o sério risco de passarem a fazer parte desta dinâmica ditada
pelo mercado. Tais práticas mostram-se profundamente influenciadas pelos
modelos midiáticos e, ao serem sacralizadas no espaço eclesiástico,
ao mesmo tempo que legitimam, ainda que inconscientemente, os padrões
de convivência baseados no consumismo, pervertem a dimensão criativa,
integradora e libertadora da koinonia preconizada pela proposta cristã.
Se é verdade que essas ‘comunidades interpretativas de consumidores’,
conforme a definição de Canclini, respondem às necessidades
sentidas pelas pessoas, não é menos verdade que se constituem,
também, em soluções precárias e pontuais para questões
últimas, mascarando os reais problemas e escamoteando os devidos encaminhamentos
para soluções verdadeiras.
A comunidade de homens e mulheres que se quer cristã é uma comunidade
interpretadora da vida e não do mercado. Pelo simples fato de apontar
Jesus de Nazaré como o seu referencial de sentido já está
inserida na ação de Deus no mundo, e nele encontra a direção
e a significação de sua existência. Pois é a memória
perigosa de sua experiência que articula os critérios e as pautas
para o desenrolar da vida dessa comunidade. Como assinala certeiramente R. Gauraudy:
“Conhecer-se não é se encerrar em uma interioridade
subjetiva, em uma pretensa ‘psicologia das profundezas’, é
descobrir que o ‘eu’ verdadeiro não é o pequeno ‘eu’
encerrado em seu invólucro de pele, mas é a tomada de consciência
de pertencer ao todo. A tomada de consciência de que essa presença
de Deus é o que há de mais íntimo em mim. ‘O Reino
de Deus acaba de chegar a vós’ (Lc 11,20 e Mt 12,28). Deus já
está aí, e seu Reino também. Com o poder de expulsar demônios,
ou seja, o meu pequeno ‘eu’ limitado; minhas propriedades, minhas
funções, meus desejos, meus poderes.” (Garaudy: 1995,
96) Isto quer dizer que a fidelidade à proposta evangélica significa
tensão permanente com o ambiente cultural no qual a comunidade cristã
existe. É na imitatio Christi que o testemunho do Reino se processa.
Jesus foi um promotor contra-cultural na medida em que não aceitou os
valores e procedimentos da cultura em que vivia porque estes contrariavam as
perspectivas e as propostas de humanização e divinização
da vida que ele entendia representar.
Assim, em sua vocação de dissidente encontrado na condição
de um proscrito, que também se autoproscreve, é como Jesus se
descobre como um revelador da presença de Deus na história. Ao
se apresentar como ‘uma-pessoa-para-as-outras-pessoas’ (Bonhoeffer)
Jesus oferece uma nova chave hermenêutica que denuncia a idolatria das
formas socio-culturais e econômicas vigentes no seu tempo, e em todos
os tempos, para tornar possível a apreensão do sentido pleno da
vida. A compreensão individualista da vida e da salvação,
a aceitação passiva e acrítica da ideologia do mercado
(que receita agressividade, concorrência e eficácia como valores
supremos a serem cultivados), o culto à técnica, a banalização
da violência, a mercantilização do sexo e dos sentimentos
mais profundos, a agressão à natureza, o desprezo pela dignidade
da vida humana e a discriminação do diferente não podem,
definitivamente fazer parte de uma proposta eclesiológica que se diz
cristã. A agenda ética da comunidade dos que se dizem cristãos
tem que estar conformada à agenda ética de Jesus de Nazaré.
A Igreja cristã como uma comunidade de iguais num mundo de
desigualdades
A situação que enfrentamos hoje pede da comunidade dos seguidores
de Jesus uma atitude mais corajosa e criativa. Atitude esta que só pode
tornar-se realidade se conseguirmos nos desprender das ataduras com que a sociedade,
com sua cultura do consumo, nos cativa, entregando-nos ao exercício da
liberdade “com que Cristo nos libertou”. Urge que busquemos na longa
e histórica tradição acumulada pelo Cristianismo os exemplos
e as pistas que o Espírito de Deus tem deixado para inspirar-nos. É
em meio a essa trama complexa de comunidades de consumidores de bens materiais
e espirituais, de identidades diversificadas, mas todas definidas pelo monoteísmo
do mercado, esse novo Moloch ou, talvez, o novo nome do Anticristo, que a comunidade
cristã tem que redesenhar os traços de seu rosto.
Aqui algumas questões pedem respostas urgentes: se a globalização,
tal como é imposta ao mundo, não é uma mera homogenização,
como a mídia nos quer fazer crer, mas um processo de fracionamento e
recomposição continuada das comunidades humanas, como deve a comunidade
dos seguidores de Jesus entender seu lugar e papel nesse permanente processo
de mutação sócio-cultural? Como pode a igreja cristã
preservar sua autenticidade como comunidade verdadeira, não de consumidores
de bens religiosos prêt-a-porter, mas de continuadora da obra humanizadora
de Jesus? O que lhe é especificamente próprio que ela não
pode e não deve tratar como mais um objeto de consumo? Do que ela pode
lançar mão para se renovar e que não passa pelo controle
e nem pela manipulação das pessoas, mas, antes, restaura a rica
cultura de nosso sofrido povo e o sentido da dignidade humana, tão em
baixa nestes tempos e templos globalizados?
Jesus criou uma comunidade de iguais, onde todos são responsáveis
por cada um e cada um deve entender-se como responsável por todos. Uma
comunidade de pessoas misericordiosas e compassivas. Como expressou muito bem
Leonardo Boff, Jesus “fez da misericórdia a chave de sua ética.
É pela misericórdia que os seres humanos chegam ao Reino da vida;
sem a misericórdia não há salvação para ninguém
(Mt 25, 36-41). As parábolas do bom samaritano que mostra compaixão
pelo caído na estrada (Lc 10, 30-37) e a do filho pródigo acolhido
e perdoado pelo pai (Lc 15, 11-32) são expressões exemplares de
cuidado e plena humanidade.” (Boff: 1999, 168) Entendemos que o Espírito
de Deus, que preserva e sustenta a vida e a criação, está
nos convidando hoje a recuperar o aspecto simbólico-sacramental da existência
da Igreja como prática comunitária, oferecendo ao mundo um testemunho
profundo e convincente de um novo estilo de vida de uma comunidade que vive
da esperança do Reino de Deus. Isto é, de que uma nova ordem de
vida entre os humanos é possível porque Jesus de Nazaré
morreu (e depois dele muitos outros!), cravando no horizonte da humanidade o
sinal da cruz, e que ressuscita cada vez que os homens reconhecem os limites
de sua precariedade histórica e se reconhecem iguais diante do Mistério
prodigioso que preside a vida. A comunidade cristã, como espaço
de uma prática intensa de solidariedade e comunhão, que reúne
os humanos num único projeto fundamental de vida compartilhada, tem nesta
proposta a sua contribuição essencial para a construção
de uma cidadania responsável.
*Zwinglio M. Dias, editor da Tempo e Presença Digital, professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Bibliografia:
Boff, Leonardo, Saber cuidar, Petrópolis: Vozes, 1999.
Galimbert. U., Rastros do Sagrado, São Paulo: Paulus, 2003.
Canclini, N.Garcia, Consumidores e Cidadãos, Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
2001.
Garaudy, R., Deus é necessário?, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1995.
Nogueira, J.C., Pulsões de Morte e Civilização, in Morais,
J,F,R, de (Org.) Construção Social da Enfermidade, São
Paulo: Cortez &Moraes, 1978.
Raiser, Konrad, Ecumenism in Transition, Geneva: WCC Publications, 1999.
Santos, Milton, Por uma outra globalização, Rio de Janeiro: Record,
2001.