Tempo e Presença Digital - Página Principal
 
TRAGÉDIA, MEMÓRIA E ESPERANÇA SOLIDÁRIA
Ano 5 - Nº 19
Março de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Redes, cidadania e justiça – desafios e possibilidades
Por: Jorge Atilio Silva Iulianelli

Resumo: Este artigo aborda o processo de constituição de redes e discute alguns aspectos políticos e filosóficos deste modelo de organização social. Parte da afirmação de ser toda organização social fruto das disputas de interesse no sistema de sociometabolismo do capital, o que implica em ter processos que facultam maior subordinação ou maior emancipação relativa aos imperativos sistêmicos. Em segundo lugar, se identifica que a construção de redes sociais é um fenômeno sociohistórico muito apropriado ao século XXI e à modernidade avançada. Finalmente, se reata algumas experiências de formação de redes, no interior da experiência do movimento ecumênico e se discute como redes, meios de comunicação e movimentos sociais são ingredientes de disputas políticas por um novo mundo possível.

Introdução
Um mutirão de comunicação, que busca aprofundar o pensamento crítico sobre os processos dos efeitos da desigualdade socioeconômica no universo midiático, e identifica como o sociometabolismo capitalista do Capital1 comanda e coisifica2 relações sociais e pessoas, nos deixa com a suspeita da tecnologia social de redes ser mais um embuste. Pelo menos, ficamos com uma suspeita sobre o papel das juventudes como protagonistas de transformações sociais, a partir da articulação em redes. E isto faz com que uma reflexão sobre os papéis que as redes podem ter para estimular e promover ações sociais solidárias, transformadoras, capazes de superar as desigualdades sociais, os preconceitos, de promover o reconhecimento das diferenças e o cuidado com o meio ambiente seja delicada.
Discussões sobre redes sociais são parte de um novo cenário político mundial. Isso tem que ver com processos por meio dos quais o uso intensivo das novas tecnologias de informação e comunicação foi mais difundido. A noção de rede não é tão recente. Ela nasce com os sistemas de distribuição de serviços. Isso era comum ao se analisar redes de serviços bancários, ou de distribuição de víveres (varejo, supermercados), ou de distribuição de bens (varejo, lojas de utilidades domésticas), etc. O conceito de rede se tornou ainda mais útil ao ser vinculado aos sistemas de telecomunicações, rede de serviço telefônico, de serviço de tele ou radiodifusão. Ele ficou mais incidente na construção da transmissão de informações e comunicação por meio do uso dos instrumentos cibernéticos, o uso da informática. Isso deu origem ao nome internet. Ela era, em primeiro lugar, um recurso militar, tinha que ver com a aceleração da comunicação entre atores bélicos, que realizavam atividades de domínio por meio da força, e que necessitavam de agilidade de informação entre os diferentes atores.
É verdade que a noção de rede é ainda mais antiga. Aqui no contexto brasileiro ela tem que ver com a cultura indígena. É um instrumento de descanso. É elaborada para capturar peso e deixá-lo suspenso. Tem dupla finalidade básica: proteção e relaxamento. Ela protege o indivíduo da insegurança do ambiente selvagem, deixa-o livre das picadas de cobras e das mordidas de outros animais. Por outro lado, permite que o indivíduo desfrute de um ambiente acolhedor, que lhe dá prazer – e até permite ter prazer. Ou seja, as redes indígenas são tramas que protegem, acolhem, relaxam, dão prazer e permitem que se dê prazer.
De certa forma, ao falarmos sobre redes sociais usamos esse conjunto de noções. Aquela que identifica redes como dispositivos de circulação de bens e serviços, que permitem agressões, comunicação instantânea e relação direta entre diferentes atores, que podem estar agregados como vendedores, consumidores, agressores ou defensores. E, por outro lado, como instrumento de relaxamento, prazer, diversão. Da pura notação do uso do termo podemos depreender concepções que são opostas, e que, ao mesmo tempo, são complementares nos diferentes usos possíveis das redes. Não deveríamos desprezar os ensinamentos do uso do termo. Seria até mesmo imprudente. Porém, um termo só faz sentido em um juízo, em uma frase.
Não é objetivo deste texto abordar as redes em geral. Nossa análise se dirige às redes sociais geradoras de solidariedade com as populações vulnerabilizadas. Estamos falando a partir de uma opção política, aquela que poderíamos afirmar como a opção preferencial pelos pobres e pelos jovens. Isso já deixará quem espera a imparcialidade da análise de orelha em pé, com suspeição. Admito existir uma intencionalidade da análise: indicar caminhos por meio dos quais é possível fortalecer estratégias emancipacionistas, libertadoras. Então, não se trata de uma investigação fortuita, nem por isso menos rigorosa. Isso nos deixa a necessidade de averiguar como as redes se constituem e o que tornaria algumas redes capazes de disseminar projetos libertadores.
Nossa estratégia argumentativa seguirá os seguintes passos. Primeiramente, avaliaremos como no contexto do sistema mundo atual as redes sociais existentes na internet respondem como canais de subordinação ou libertação, a depender do modus operandi. Em segundo lugar, procuraremos identificar como, na modernidade avançada, as redes respondem a necessidades dos indivíduos e possibilitam respostas criativas às pressões de colonização do mundo da vida. Finalmente, observaremos uma rede social, como um estudo de caso, para analisar os elementos libertadores – ou nem tão libertadores assim – que esta experiência apresenta, e quais elementos podemos depreender desta análise para ulteriores reflexões sobre redes sociais construtoras de cidadania ativa para a construção de um outro mundo possível.

a) redes sociais no sistema mundo
Foram F. Braudel e I. Wallerstein quem identificaram o processo de construção da história por meio de ciclos de longa duração. Até mesmo um economista italiano, Giovanni Arrighi, brincou com o título de um livro, parodiando E. Hobsbawn, anunciando a longa história do século XX.3 Na verdade, toda a construção do sistema mundo capitalista, do século XIII aos dias de hoje nos mostra a verdade daquela afirmação de K. Marx: o capital é apátrida. A livre circulação do capital conformou a nova face do mundo: novas máquinas de guerra e destruição, maior capacidade de destruição do meio ambiente, ao mesmo tempo em que, melhorou as condições de vida das maiorias, elevou a expectativa média de vida dos seres humanos. O que temos é um cenário no qual a espécie humana participa de um ecossistema de forma agressiva, destruidora, gerando um efeito antrópico que põe em risco a sobrevivência do conjunto das espécies existentes no Planeta. O imperativo destrutivo está colocado desde o tacape, porém se aprofundou com a ameaça nuclear, e chega a um nível descomunal com a pressão ambiental. A que isso está vinculado?
Todos nós, da espécie humana, para sobreviver precisamos que nossas necessidades sejam atendidas. Isto é realizado por meio de nossa atividade laboral. Trabalhamos para satisfazer nossas necessidades. O modo de produção capitalista desde que se instalou implicou a alienação do trabalhador. Uma alienação que se reflete numa falsa consciência, porém, que também se reflete na expropriação do trabalho humano por meio das dinâmicas de exploração da capacidade produtiva. Porém, o capitalismo foi hábil não só em ampliar os mecanismos de destruição (por meio da guerra, e da destruição do meio ambiente). O capitalismo também ampliou a sua velocidade de geração de lucro, por meio das inovações tecnológicas. Inovações essas que tornaram o uso da mão-de-obra cada vez menos necessária – é isso que falamos quando utilizamos expressões tal qual desemprego estrutural.
Com efeito, o século XXI é aquele do desafio da inclusão de massas imensas no mercado de trabalho, de forma permanente e constante. Isso tem gerado em todo o mundo a discussão sobre redução da jornada de trabalho e aprofundamento dos sistemas de educação – no limite, gera a reflexão proposta pelo sociólogo italiano, Domenico de Masi, sobre o ócio criativo. O novo modo de expropriação do trabalho nem por isso é menos alienante. Alguns teimam em afirmar: as reflexões de Marx sobre o modo de produção capitalista se esgotaram, porque o modelo era o sistema produtivo do século XIX. Correta a segunda afirmação, o modelo era o sistema produtivo do século XIX. O que mudou no sistema produtivo desde então, sua natureza expoliadora ou a modalidade pela qual se dá a expoliação? O fato de as novas tecnologias reduzirem a necessidade quantitativa de presença de mão-de-obra não significa menor exploração. Os que restam são explorados no uso de suas faculdades mentais – o que é a força de trabalho, que continua a ser trocada por um valor que é uma diferença desigual entre a contribuição para a geração de riqueza, e o pacote (salário) que se retribui por isso – o qual permanece conferindo condições para a satisfação de necessidades.
Porque a falácia do erro de Marx parece convencer? Primeiramente, porque é conveniente ao capital. E isso é um dos aspectos do discurso ideológico. Em segundo lugar, porque historicamente uma parte das experiências políticas que diziam apoiar-se na filosofia marxista desmoronou (todo o Leste Europeu). E isso fez com que a tensão ideológica que animou a guerra fria se dissolvesse, por um lado. Por outro, fez emergir um ufanismo do pensamento capitalista, que se expressou, economicamente, como neoliberalismo. As práticas e o pensamento neoliberal, entretanto, entraram em crise, em especial a partir dos primeiros anos do século XXI. E a crise estava ligada ao próprio pressuposto: uma economia livre da intervenção do Estado seria capaz de gerar riqueza e distribuí-la. Já se sabia: não é!
Enfim, o sistema mundo do capitalismo é gerador de exploração do trabalho humano e, também por isso, fomentador da destruição ecológica. Este sistema mundo necessita de mecanismos de comunicação instantânea. Especialmente após a queda do muro, que nos serve como uma metáfora do novo cosmopolitismo do capital. A necessidade de redes é precipuamente uma necessidade do capital. Dessa forma é que podemos entender a virtualidade de um empreendimento como a Internet, sua rápida expansão e a construção de fortunas com os sistemas Microsoft, Apple e Google. Nada tem que ver isso exclusivamente com a capacidade criativa humana, isso tem que ver com as necessidades de retroalimentação do Mercado; num mundo no qual a informática é uma necessidade, não um passatempo. As ciências da informática existem com propósitos definidos, e alimentam o mercado da Bolsa Nasdaq.
As redes estão a serviço da organização da produção, da comunicação e da socialização. A organização em redes, dos sistemas produtivos, implica em técnicas cooperativas e interativas nos processos de transformação de matérias-primas em bens de consumo. Em termos de metodologia de administração isso é conhecido como toyotismo e flexibilização. As pessoas são capacitadas a usarem suas habilidades em função de metas determinadas. Expressões como Just in time expressam bem a dupla intencionalidade; por um lado é um mecanismo de otimização do tempo social – ou seja, realizar mais em menos tempo, o que gera mais lucro. Por outro lado, tem que ver com a otimização do uso dos recursos operados no processo produtivo, ou seja, tem que ver com controle de estoque – menos coisas alocadas, menor uso do espaço, etc. No limite, isso tem que ver com a capacidade humana de produzir mais, melhor e em menos tempo. Fala-se de toyotismo, também, pelo cuidado que a empresa passa a ter com o operário, que faz exercícios corporais, para ter o corpo feito mais ágil em função de um melhor uso da mente.
Ainda no campo da organização da produção (de bens e serviços), isso tem que ver com a nova organização espacial das empresas. O modelo da especialização fordista, retratado no filme Tempos Modernos, de Chaplin, está ultrapassado por uma nova forma de relacionamento social no trabalho. O espaço é mais coletivo que individual. Por que as tarefas são assumidas como dirigidas ao fim almejado pela lógica empresarial. Porém, trata-se agora da empresa que é uma mente coletiva, para a qual interessa a cooperação de todos os funcionários. O desejo é que todas as idéias dos funcionários contribuam para a realização de um projeto coletivo, que é o da empresa. De certa forma isso reproduz o modelo oriental (toyotismo) para o qual a honra da empresa e do empresário se confundem com a honra do operário em produzir bem e muito.
Nesta atual etapa do sistema mundo do Capital, que poderíamos continuar a chamar de capitalismo avançado, há este conjunto de notas que indicam o caráter das tecnologias sociais de rede. Primeiro, elas existem para atender necessidades do Capital. Segundo, sua função fundamental é colocar em interação mentes e corpos para otimizar a produção e a circulação de bens e serviços. Terceiro, a construção de uma mente coletiva está a serviço do Capital e não o contrário. Não estamos tocando em aspectos muito interessantes, como o papel militar e belicista das redes sociais, ou ainda em seus aspectos mais vinculados ao controle social capitalista do sociometabolismo do capital. Porém, estas questões estão supostas nas pequenas digressões ora comentadas.

a.a) A internet e algumas de suas faces
E o que tem tudo isso que ver com as redes sociais da internet? Poderíamos falar da questão da origem. Porém, quando observamos redes sociais como Orkut, twiter, facebook e congêneres verificamos que são espaços nos quais indivíduos trocam informações sobre si e seus mundos. Já se sabe o mito de origem dessas redes sociais. O sistema de troca de mensagens via correio eletrônico (e-mail) saturou um nível do canal de informações: aquele da troca de mensagens rápidas – detalhe: nem por isso os e-mails de fofocas, futricas e fuxicos deixaram de existir. Além disso, o sistema de troca de mensagens instantâneas não dava conta da necessidade de detalhar relacionamentos, histórias de vidas, etc. Ou seja, a insuficiências dos meios levou à criação de uma nova alternativa com vistas ao atendimento de determinados serviços.
Há muito tempo atrás um teórico da comunicação afirmou que o meio é a mensagem (McLuhan). 4 Isso está mais que comprovado com a Internet. Efetivamente, o uso de diferentes sistemas operacionais, diferentes programas de comunicação e diferentes plataformas de serviço de comunicação ofereceram vários avanços. Primeiramente, os serviços de comunicação ficaram mais ágeis – de fato, o uso das mensagens instantâneas criou vários serviços imediatos (on line), em vários casos mais eficientes que os serviços telefônicos congêneres. Também as plataformas de relacionamento social logo passaram a ser mecanismos permanentes de propaganda. Isso para deixar sob uma nuvem um dos mercados mais lucrativos no campo da comunicação, o do erotismo e da pornografia – que apenas na versão cibernética faz circular cifras de bilhões de dólares.
Isso nos faculta a possibilidade de usar um recurso sociológico weberiano, a saber, o da construção de tipos ideais. Podemos estabelecer uma notação que identifica três tipos de redes em uso no espaço virtual. O elemento de distinção é a proximidade à ideologia do Mercado. Aquelas redes que estão subordinadas à lógica do mercado, porque facultam exclusivamente ações que geram competição e lucro, ou ainda, que visam o consumo (propaganda) podem ser nomeadas de redes sistêmicas. Aquelas redes que estão no campo da resistência à integração sistêmica, aos processos de monetarização e administrabilidade controlada da vida cotidiana, que promovem direitos, justiça e solidariedade, podem ser nomeadas de redes de resistência. Finalmente, aquelas redes que estão em disfunção com o sistema, ou por seu caráter delinqüente, ou por seu caráter revolucionário, podem ser nomeadas de redes antissistêmicas.
Por outro lado, este mesmo modelo tem sido operado para a construção de ações solidárias e transformadoras nas sociedades. Haja vista campanhas como click fome – campanha da cidadania contra a miséria e a fome, clique semi-árido – campanha pela construção de um milhão de cisternas... Além disso, a totalidade dos partidos políticos e muitos movimentos sociais – do campo popular e democrático (pela falta de uma nova nomenclatura usarei esta vetusta) – ocuparam, também, esses espaços de troca de informações e de comunicação direta. O diferencial do universo cibernético é a interatividade que gera. Os meios de comunicação que vieram na seqüência da cultura das chaminés estavam calcados na estratégia do direcionamento da opinião via pressão. Os novos meios supõem a resposta direta e imediata do usuário.
Justamente esta interatividade é o ingrediente fundamental para um uso relacionado à resistência sistêmica, e até as ações antissistêmicas. E o limite entre os três usos (sistêmico, resistência, antissistêmico) é muito tênue. Do ponto de vista da operação praticamente inexiste diferença. No caso do uso do universo cibernético e de seus recursos, em existindo capacidade de uso e o meio a ser usado já está basicamente deslocada a questão da diferença em relação à capacidade operacional. Outra coisa é a desigualdade operacional. Os que estão no campo sistêmico têm à sua disposição os recursos mais sofisticados existentes. Já para os que estão no campo da resistência ou os que são antissistêmicos esta disponibilidade se modifica, até o ponto da indisponibilidade de muitos recursos – podemos, só para exemplificar, deixar mencionada a questão da banda larga.
O campo antissistêmico opera desde ações desvirtuantes em relação ao mercado, chamado pelos empresários dos meios de comunicação de massa de pirataria, vinculado, porém, sobretudo à disponibilização de serviços que tem custos abusivos muitas vezes. Apenas como exemplo menciono o próprio software MSN. Como se sabe, ele é um software gratuito. Porém, isso é à meias, pois o uso dele supõe que se esteja portando o sistema operacional Windows. Ocorre que a cada nova versão do sistema operacional, novas interfaces do software de comunicação imediata são criadas. Como resultante disto, em máquinas que operem com versões mais antigas do sistema operacional e não tenham espaço suficiente para todos os recursos das versões mais recentes ele se torna inoperante – em determinadas versões, por exemplo, em máquinas que operem com o sistema XP e a memória da máquina seja inferior a 1GB. Burlando essa barreira os criadores do sistema Linux criaram uma versão freeware, chamada amsn, que realiza todas as operações mais inovadoras. Os exemplos mais frequentes são elencados como as cópias de filmes, jogos digitais, etc. Aliás, neste sentido, a rápida desqualificação da mídia CD pela mídia DVD, especialmente no tocante a imagens, é outro elemento deste tema. Tudo isso tem que ver com a ilusão de direito do direito de propriedade intelectual.
Para não permanecer nessa ordem dos recursos técnicos possíveis, e apenas para pormo-nos atentos ao ponto principal, é necessário registrar que as redes sociais no universo cibernético podem receber uma notação de tipos-ideais, que indicam três direções político-ideológicas. A maior parte dos usuários nem se dá conta que faz parte da grande maré sistêmica. A maré da resistência ao sistema não é majoritária. E o fato de ser minoritária é um sinal de seu papel na sociedade de massas, a saber, aquele de ser o campo do diálogo e da luta social pela inclusão, pela superação de todas as formas de desigualdade, pela afirmação da justiça. A maré antissistêmica é ainda menor, porém, é muito complexa, pois ela tem que ver com os elementos da delinqüência, criminalidade e terrorismo, assim como com uma perspectiva absolutamente revolucionária. Uma última nota sobre os tipos ideais diz respeito às pessoas muito hábeis em usar os mecanismos do universo virtual, os hackers, como supercapazes essas pessoas podem, e estão efetivamente, nadando em todas essas marés.

b) Quais necessidades dos indivíduos são respondidas pelas redes sociais virtuais?
Nada que existe é totalmente fútil, Os seres humanos, em especial quem está nesta fase da história, mais urbanizados, massificados, coisificados, não nos adaptamos à imposição da cultura do isolamento. Para o sistema quanto mais isolada é a pessoa, melhor será sua capacidade de consumo. Essa mônada singular é capaz de produzir, consumir, usar e, mais que tudo, de interpretar os outros seres humanos – e até mesmo a divindade – à sua imagem e semelhança. É para esse indivíduo que a internet e as redes sociais existem como mecanismo de autossatisfação. Trata-se do verdadeiro paraíso: não há porque se deslocar do próprio ambiente, tudo está à distância dos dedos da mão, basta teclar para conseguir. Este indivíduo pode estar tão bem descrito desta forma, que basta pensar em filmes como Rede, protagonizado pela atriz Sandra Bullock.
A sociedade de massas é estimuladora da solidão. Talvez um sintoma disso seja o fato de termos um número tão intenso de doenças psicossomáticas e de depressão. Há alguns anos a OMS vem alertando para o aumento do número de suicidas no Planeta, e indica que o suicídio é uma das formas de violência. Porém, como sabemos, ninguém é uma ilha. As pessoas necessitam de companhia. Somos seres de interação. Estamos em relação interpessoais, com o meio ambiente e com a divindade. Essa nossa intersubjetividade é fruto dos meios que construímos socioculturalmente para responder às nossas necessidades. Fazemos isso por meio do trabalho, do fazer, não por acaso se fala de homo laborans.
Toda ação que transforma a realidade para atender nossas necessidades é trabalho, o trabalho possui uma componente de criatividade. Essa nossa capacidade depende de interações. Depende de nossa capacidade comunicativa. É por meio do uso da linguagem que expressamos aquilo que compreendemos de nós, do mundo, de Deus. Essa intercomunicação é a um só tempo um elemento de nossa estrutura biológica, e um elemento de nossa estrutura sociocultural. Na medida em que interagimos nos reconhecemos como pessoas dotadas de capacidades iguais, de diferenças fundamentais. É aqui que está a raiz de nossa busca pela justiça como afirmação de direitos e ao mesmo tempo de reconhecimento da diferença.
A criação de redes sociais no mundo virtual responde a essa nossa radicalidade. Esta marca da humanidade em nós. Talvez por isso o mundo cibernético se constrói em relação e numa perspectiva cosmopolita. A partir do mundo virtual nos identificamos como participantes do mundo, cidadãos e cidadãs do mundo. E isso traz o conjunto de responsabilidades que a nossa liberdade exige. Por isso, se trata de construir opções. Para quais rumos queremos dirigir nossa interconectividade? E isto é um campo de disputa dos mecanismos de colonização do mundo da vida. Aqui temos a disputa entre os meios da monetarização e do poder, que são adotados pelos atores sociais que visam quase exclusivamente o lucro e o controle social por meio da administrabilidade do cotidiano. Por outro lado, aqui também temos o meio da solidariedade, que permite romper com a colonização do mundo da vida. Isso não tem que ver com predestinação, isso tem que ver com opções, liberdade, libertação. Libertação ou subordinação, eis a opção que ainda se impõe.

c) Uma rede social virtual e articulada efetivamente.
Sou profundamente otimista. O otimismo muitas vezes é um antídoto para o medo paralisante. Constato ser possível identificar vários experimentos sociais que indicam a possibilidade da existência e da eficácia de redes sociais de resistência. Sobretudo entre os jovens. Porém, não apenas. A capacidade de fazer uso das diferentes tecnologias de informação e comunicação pelos movimentos sociais, na América Latina, tem demonstrado que nossas sociedades têm a capacidade de resistir à onda histórica da subordinação que se construiu ao longo desses últimos 500 anos. As ações em defesa dos direitos humanos, direitos dos povos autóctones, dos afro-descendentes trasladados, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos idosos, dos trabalhadores têm mantido um processo gradual de transformações sociohistóricas positivas para as nossas sociedades.
Compartilho uma experiência muito humilde e recente, apenas como um exemplo da possibilidade de resistir e até ousar ser o mais antissistêmico possível naquilo que importa para a garantida dos direitos da igualdade socioeconômica e do reconhecimento da diferença. Trata-se da Rede Ecumênica da Juventude (Reju). Ela foi constituída a partir de uma preocupação das organizações do Fórum Ecumênico do Brasil: como respeitar o espaço de participação das juventudes, no campo ecumênico, para a afirmação dos direitos da juventude? Este questionamento se dava a partir do contexto brasileiro, no qual temos um extermínio continuado de jovens, que são mortos por armas de fogo. Anualmente morrem no Brasil 40 mil jovens pela violência letal. A maioria destes afrodescendentes, pobres, das periferias rurais e urbanas.
Para avançar nesta direção o FE-Brasil 5 assumiu uma compreensão de ecumenismo advinda da tradição do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) 6. Para o CMI, o ecumenismo é uma prática. Essa prática tem que ver com fazer a terra habitável para todas e todos. Isso implica numa leitura tridimensional do múnus ecumênico. O ecumenismo é a construção de ações para a unidade: unidade de todas as pessoas que lutam por justiça, paz e integridade da criação; unidade de todas as pessoas que têm fé; unidade de todas as pessoas que são seguidoras e seguidores de Jesus Cristo. Essa noção tridimensional da prática ecumênica permite à REJU ser um espaço de partilha de práticas, em favor dos direitos da juventude, para jovens dos movimentos sociais, comunidades religiosas não-cristãs e das igrejas cristãs.
A REJU iniciou o seu processo de conformação por meio de Jornadas Ecumênicas Regionais de Jovens. As primeiras ocorreram no Sudeste e no Nordeste, em 2007. Daí seguiram-se várias outras. Os compromissos básicos iniciais foram: agregar jovens que se interessassem pelo papel dos valores libertários ecumênicos na construção dos direitos de juventude; e que as organizações do Fe-Brasil e parceiras assumissem o papel de organizações de apoio logístico e político desses jovens. Isso permitiu que jovens de movimentos sociais do campo e da cidade, do Candomblé (sobretudo no Nordeste) e das igrejas cristãs participassem dessa gênese. Para dar estrutura ao processo há um facilitador nacional, que é liberado para isso, e facilitadores regionais.
Por meio de reuniões virtuais os jovens organizaram estratégias de comunicação, que levaram à criação de um site nacional (www.redeecumenicadajuventude.org.br). As reuniões virtuais têm uma periodicidade determinada e é realizada entre o facilitador nacional e os facilitadores regionais. A pauta é decidida coletivamente. Para que a Reju tivesse assessoria de conteúdos criou-se um grupo voluntário de cientistas sociais, teólogos e filósofos, jovens (com algum jovem há mais tempo). O papel desse grupo é alimentar os processos formativos e cooperar com a elaboração de documentos propostos pelos jovens.
Neste processo a Reju realizou seis Jornadas Ecumênicas regionais – quatro delas apenas de juventude. Está articulada em quatro regiões no País (Sudeste, Nordeste, Sul e Centro-Oeste). Agrega diretamente um conjunto de 500 jovens dessas regiões. Realizou um curso de formação de lideranças jovens para promoção de direitos de juventude, com a participação de 32 jovens das quatro regiões. Realizou uma ação nacional para indicar ao governo federal propostas de superação da violência, a partir das ações realizadas pela juventude. Foi uma ação muito simples: exibição de um filme sobre o tema da violência com a discussão coletiva com os participantes sobre o tema a partir de uma pergunta-tema. Após isso, com os relatórios elaborados pelos responsáveis foi elaborada uma carta coletiva, que foi protocolada junto a vários Ministérios do governo federal – ainda será monitorado o efeito desse passo. A Reju foi solicitada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic) para elaborar o subsídio para a juventude para ser usado na Campanha da Fraternidade (CF) de 2010, que tem por tema Economia e Vida, e é a terceira CF Ecumênica. Mais recentemente, a Reju postulou candidatura ao Conselho Nacional de Juventude – espaço público de proposição e monitoramento de políticas públicas para a juventude. Foi eleita e agora é uma das organizações religiosas conselheiras – neste primeiro semestre é a organização efetiva.
Portanto, se é possível uma organização tão nova realizar ações concretas, ter pequenos gestos que permitem interagir em favor dos direitos da juventude, na contramão do extermínio de jovens, é possível articularmos redes de jovens, em toda a América Latina, que visem essa mesma direção. A nossa preocupação e tarefa central deve ser esta: ter a capacidade de dar passos para a nossa libertação pessoal e coletiva; por meio da promoção de ações socioculturais libertadoras, libertando a palavra, libertando os gestos de toda ordem subordinadora. A Reju é um exemplo muito simples. Ela ainda não pode ser considerada como um ator social de relevância? Não tenho certeza. Porém, não creio que possamos desprezar essa juventude que crê no ecumenismo e em seus valores libertários como uma das componentes para fazer valer os direitos da juventude em sociedades promotoras da desigualdade social, dos preconceitos e do ecocídio. A Reju é, certamente, um dos atores na promoção dos direitos humanos e socioambientais com uma perspectiva libertadora.

1 - O conceito de sociometabolismo capitalista do capital é desenvolvido por Métzaros. Ver Métzaros, I. Para além do Capital. SP: Boitempo, 2001.

2 - O conceito de coisificação é uma releitura da noção de alienação de K. Marx desenvolvido por Karel Kosik, em português, em Dialética do Concreto, RJ: Paz e Terra, 1976.

3 - ARRIGHI, G. Longa história do séxulo XX, SP: UNESP, 2006

4 - McLuhan, M. e Fiore, Q. The Medium is the message: An Inventory of Effects. NY: Penguin, 1967.

5 - FE-Brasil é a sigla do Fórum Ecumênico do Brasil, espaço de articulação de 18 organizações ecumênicas, das igrejas ecumênicas filiadas ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs e à Secretaria Brasil do Conselho Latino-Americano de Igrejas, e pelos dois Conselhos de igrejas. Mais informações sobre o FE-Brasil no sítio eletrônico da REJU (www.redeecumenicadajuventude.org.br).

6 - O CMI foi fundado em 1948, sua sede é em Genebra, e está constituído por 349 igrejas cristãs de todo o mundo. A igreja romano-católica não é filiada ao CMI. Maiores informações no sítio eletrônico do Conselho: www.oikoumene.org