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MILITÂNCIA ECOLÓGICA E LUTA SINDICAL NO CAMPO
Ano 4 - Nº 18
Dezembro de 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
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Águas que não saciam a sede
Por: Ivone Gebara
Data: 01/11/2009

A sabedoria popular sempre nos ensinou que existem águas que não saciam nossa sede. Falo especialmente da sede física, daquela vontade de beber água que, se não satisfeita, nos leva à morte certa. Da necessidade da água para o corpo provém a necessidade da água para a lavoura, a limpeza, o banho e tantas e tantas outras urgências. Somos água, necessitamos dela e vivemos lutando por ela para sobreviver.
As mudanças climáticas dos últimos tempos e a gananciosa investida humana contra o meio ambiente têm feito nascer desertos, mas poucos novos mananciais de água. Por isso, a água potável está se tornando um problema de sobrevivência para todos os povos da terra e será fonte de litígios crescentes.
No Brasil estamos com a agravação do mesmo problema e suas variantes. Diante dele, alguns teóricos e políticos brasileiros de muitos meios e tendências, apresentam soluções em relação aos problemas presentes na vida da população. Soluções que não saciam a sede e nem a fome dos mais necessitados. Retóricas demagógicas e discursos inflamados sobre as possibilidades do futuro não faltam. Muitos se atrevem a dar receitas sem nenhuma solução possível.
Lembrar de algumas afirmações pré-fabricadas em torno dessa polêmica questão é um meio de refletir sobre ela. Num tom meio irônico e jocoso, quero recordar o ridículo de algumas discussões e a ineficácia das soluções. Eis um exemplo de uma conversa preocupada e animada entre teóricos em busca de soluções:
- A solução dos problemas deste povo está nas águas do grande e velho Rio Chico! É preciso redirecioná-las e reaproveitá-las!
- Não, a solução está na reconhecida partilha das terras que o circundam!
- Não, a solução está nas políticas públicas! Talvez até no envio de mais implementos agrícolas para os camponeses e, sobretudo na organização de uma educação democrática... Pois é, educação democrática, educação para a cidadania, é a solução!
- Mas, a culpa mesmo desta situação é da oposição que inviabiliza as decisões! Estão sempre obstruindo!
- Não, de forma alguma, a responsabilidade pelo caos social é do governo atual que não tem vontade política! Só faz alianças e mais alianças...
- O que dizer então do agro-negócio e de sua crescente ganância? Eles impedem a organização popular e destroem a vida no campo!
- No fundo tudo isso é por conta da política neoliberal imposta pelos impérios do mundo!
- Mas, não se esqueçam... Isso vem de mais longe: é por causa da colonização? E, também de nossa cultura escravista que fez o nosso povo explorado e meio indolente...
- Já se falou há muito tempo atrás que “o homem é lobo para o homem”... E ainda é assim...
- Culpa real foi a de Eva que comeu do fruto proibido e deu para Adão... E aí toda a confusão começou!
- Mas, não se pode esquecer da serpente... Ela atiçou a mulher...
- E nem esquecer de Deus que inventou este mundo!
- Mas, agora não é mais Deus, é o Big-Bang...
- E será a entropia universal, tudo caminha para a destruição, pouco se pode fazer...

Buscamos razões e mais razões para justificar a nossa real preguiça e má fé para que as coisas de fato mudem para melhor. Ocupamo-nos em discutir idéias, teorias explicativas em relação ao sofrimento dos outros. E, brigamos entre nós por elas, longe dos que estão de fato vivendo a secura das terras e a sede de água limpa para beber. Quase nunca perguntamos o que de fato estas pessoas estão necessitando. Não ouvimos as perguntas e nem os pedidos que nos fazem. Apresentamos soluções, e as nossas soluções são para os problemas que nós mesmos inventamos e atribuímos a eles e a elas.
Embriagados por nossas teorias e disputas políticas não somos mais capazes de mover nem um dedo para aliviar o fardo pesado que mulheres e homens carregam. Apenas falamos de planos, talvez faraônicos demais, para uma vida simples que se pede... É que sempre queremos pensar grande demais, pensar a NAÇÃO como um todo abstrato. Queremos agradar o empresariado que detém o capital necessário para incrementar as forças produtivas, pensar nas multinacionais que chegam e vão, pensar em aumentar o PIB, baixar a taxa Selic, aumentar a renda PER CAPTA, vender, exportar, criar divisas... Estamos preocupados com o mundo, com a ONU e suas cadeiras, com a OEA, com a OTAN, o MERCO SUL, com a ALCA, com a ALBA, com a...
Estamos já pensando nas próximas eleições e os políticos apressam-se em agradar os eleitores dos quais depende seu sustento...
Tudo isso parece distante da vida dos agricultores que enfrentam reais problemas de sobrevivência:
- E eu, seu doutor? Sou um pobre nordestino que vê seu gado morrer, seu feijão secar, seu filho morrer de sede... Não é novidade, são coisas velhas que todo mundo sabe. Eu mesmo, só queria que esta terrinha fosse minha, que deixassem o rio crescer, ter peixe, que tivesse um poço por perto, que tivesse uma estrada até o rio, um hospital por perto, uma escola bem bonita para as crianças... Queria até um bosque com um banco no meio para sentar e conversar com os amigos. Mas, o roubo anda solto por aqui...
- Eu mesmo seu doutor, sou uma pobre nordestina... Eu só queria plantar minha macaxeira, fazer farinha e beiju... Queria criar umas galinhas e umas cabras para o leite... Queria poder ler direitinho e ter livros bons para aprender sobre o mundo maior do que esta secura. Queria que meus filhos tivessem leite e feijão todos os dias... E queria até uma dentadura bonita que substituísse os cacos pretos que tenho na boca.
- Seu doutor, se o senhor falasse português comigo seria melhor. Não conheço a sua língua, só mesmo reconheço algumas palavras no meio de sua fala. Se passasse um mês nesta terra dura e abençoada ia entender do que eu necessito. E, o senhor para entender o que vivo, tinha que ficar aqui no meu ranchinho; nada de tenda e ar condicionado, nada de helicóptero trazendo comida preparada e água gelada. Tinha que sentir o que a gente vive para entender o nosso pedido. Eu garanto que o senhor ia entender de verdade. Não ia mais ter dúvida sobre o jeito de ajudar a gente...
- Ah! Seu doutor, a gente não precisa das coisas que vocês dizem que vão dar, por que o que vocês vão dar a gente não sabe como é... A gente nem sabe se é para nós ou se é para outras gentes que estas coisas vão chegar!
- Com sua licença, a gente queria lembrar um pedaço daquela música do Luiz Gonzaga que diz: “para um homem que é são a esmola que lhe é dada só lhe enche de vergonha e vicia o cidadão”. A gente não pede esmola de vocês, a gente só quer ter o direito de viver do jeito que a gente gostaria de viver. A gente queria que vocês entendessem que a gente só quer casa e roça boa. O Brasil é nosso também!
Não queremos pista de corrida e nem palácio de esportes. No fundo a gente só quer poder “plantar e olhar os lírios dos campos”; ter vizinhos bons por perto e aprender cada dia a dividir o nosso pão e celebrar a vida de nosso jeito. É só isso mesmo... É essa vidinha de gente simples que a gente acha que tem DIREITO. Vida digna não é palavra vazia e nem palavra para depois de amanhã. É hoje que a fome e a sede apertam. É hoje que o corpo reclama e precisa ser saciado.
- Seus doutores não esqueçam que a vida é mais do que o lucro, do que o capital, do que os palácios e os imperadores. A vida é mais do que as eleições e as honrarias internacionais. Por isso, não custa repetir mais uma vez: “Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça”.

Ivone Gebara
Novembro 2009.