Resumo:
A abordagem teórica sobre juventude é marcadamente urbana.
Este é um dos motivos da invisibilidade da juventude rural. Porém,
até as abordagens urbanas não possibilitam uma qualificação
sócio-epistemológica do tema da juventude com a possibilidade
analítica de categorias como classe, gênero e etnia. Uma primeira
aproximação do tema precisa identificar a partir de que marco
teórico a abordagem geracional e territorial qualificam a juventude rural
como ator social específico. Em segundo lugar, situamos a discussão
da constituição da identidade da juventude rural num processo
no qual a identidade social é observada como participante do processo
histórico de constituição das realidades locais (territoriais),
que inclui memória e projeto. Finalmente, identificamos o caso específico
da realidade geracional na região do Submédio São Francisco,
historiamos o processo de ocupação social da região, os
impactos da produção de maconha e de sua expansão para
uma escala comercial para atendimento de demanda exógena na constituição
da identidade da juventude sertaneja camponesa nordestina.
Palavras chave: juventude rural, campesinato, convivência
com o semi-árido, economia política das drogas.
Há alguns anos há uma preocupação sociológica
em ressemantizar os discursos das ciências sociais e da formulação
de políticas públicas sobre juventude. Este processo começou
no início da década de 1990. O fato que torna relevante esta questão
é o fenômeno demográfico caracterizado pelos estatísticos
como onda jovem. O célebre estudo de Elza Berquó (1998), realizado
para o governo federal, indica que esta tendência mundial também
se manifesta no Brasil. Há um aumento da expectativa de vida, aumento
da taxa de mortalidade infantil, diminuição da taxa de natalidade,
e, como uma das conseqüências, temos o aumento demográfico
da população jovem, ou seja, aquela caracterizada pela Organização
Mundial de Saúde como os indivíduos da faixa etária entre
15-24 anos.
Os discursos das ciências sociais sobre juventude são coincidentes
numa abordagem majoritariamente urbana. A escola de Chicago caracterizava a
juventude como classe perigosa, indicando que os jovens tinham alto potencial
de delinqüência, sobretudo aqueles das classes subalternas. Durante
os anos de 1960, a visibilidade social juvenil foi ampliada pelos movimentos
de contra-cultura, estudantil e revolucionário, o que gerou um discurso
das ciências sociais que identificava esta juventude, sobretudo pertencente
aos setores urbanos intermediários das sociedades capitalistas, como
protagonistas da construção de alternativas sociais – diante
do modelo da sociedade capitalista de mercado.
Nos Estados Unidos e Europa, durante a década de 1980, podemos indicar
que houve uma interrupção de estudos sobre a juventude em geral.
Na América Latina, os setores educacionais levantavam estudos sobre a
questão da população em situação de rua,
sobretudo crianças e jovens. Havia, na América Latina, duas trilhas
teóricas. Uma primeira, a partir das ações educativas,
identificava a juventude como setor vulnerabilizado, produtor de crítica
social e criminalizado. A outra, procurava notar as novidades em termos de estilos
culturais que eram disseminados pelas juventudes urbanas. Um dos frutos foi
a criação de novos marcos legais para lidar com as crianças
e jovens (Cruz: 2003). Duas expressões deste processo no Brasil foram
o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a criação do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Traço este histórico esquemático para destacar como a
juventude rural não foi tematizada ao longo deste período. Os
estudos de sociologia rural tendiam para o debate entre a existência de
um movimento camponês plural ou a afirmação do processo
de extinção do mundo camponês por meio da substituição
do capitalismo agrário. No Brasil, as análises se dedicavam a
identificar, por um lado, os alcances e limites de lutas em favor da Reforma
Agrária e das novas condições laborais e de existência
das diferentes categorias de trabalhadores rurais. Por outro, houve uma série
de estudos sobre os conflitos sociais agrários, as novas formas de organização
do movimento social no campo e sobre os processos de integração.
No campo dos movimentos sociais camponeses alguns dos grandes momentos neste
processo foram a conquista da Contag - Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura para o sistema CUT (Central Única de Trabalhadores),
e a pluriformidade do conjunto de movimentos sociais no campo, como, por exemplo,
o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e o MST (Movimento dos SemTerra)
– todos com uma forte relação com a CPT (Comissão
Pastoral da Terra). Estas questões, entretanto, nem sempre estarão
presentes quando da construção das análises sobre juventude
rural.
Para tornar esta nossa reflexão mais adequada precisamos proceder a
uma notação sobre o modo pelo qual a produção teórica
sobre juventude e juventude rural ocorrem. Parece-nos que há uma certa
tensão na construção dos discursos analíticos das
ciências sociais sobre estes atores. Primeiramente, podemos afirmar que
existe um conjunto de reflexões, a partir dos anos de 1990, que fazem
classificações que identificam a juventude em tipologias como
as de Eco que fala em integrados e apocalípticos. O cenário de
fundo é o conjunto de mudanças tecnológicas do capitalismo
pós-industrial e a débâcle do socialismo real. Nesta nova
configuração aquela disputa ideológica, representada por
aquela tipologia mencionada há poucas linhas não parecia mais
muito adequada. Por isto, outras abordagens tornaram-se necessárias.
No caso das discussões sobre juventudes, numa perspectiva urbana, até
onde me parece, identifica-se dois campos semânticos em disputa. Um primeiro
parte da constatação etária, identifica uma demanda geracional
na sociedade contemporânea, marcada por um conjunto de elementos da moratória
geracional (educacional, cultural, laboral, sanitária), e percebe a pluralidade
das identidades organizacionais da(s) juventude(s), sobretudo pertencentes às
classes subalternas. Neste caso, é interessante notar a existência
de duas interpretações em disputa. Uma que afirma o caráter
apolítico e conservador destes grupamentos juvenis (Souza: 1990), e outro
que afirma a plasticidade, o caráter inovador e as novas maneiras de
fazer política (Abramo: 2000; Vianna: 1997). Um segundo campo procura
construir uma espécie de denominador comum das juventudes. Reconhece
o limite etário, identifica elementos da moratória geracional,
porém trata da juventude como um segmento social senão monocromático,
quase como se o fosse (Instituto da Cidadania).
No caso da juventude rural há um outro cenário. Primeiramente,
o tratamento temático distou mais no tempo (Durston). Enquanto os novos
estudos sobre juventude urbana se iniciam, no Brasil, ainda na segunda metade
dos anos de 1990, aqueles sobre juventude rural virão apenas no quadrante
final daqueles anos e início dos anos de 2000. O cenário sob o
qual a questão da juventude rural é apreciada é, sobretudo,
o da conformação do novo rural (Weisheimer: 2004). É a
indicação de um conjunto de mutações no capitalismo
agrário brasileiro, com uma nova formulação sobre a produção
camponesa, abordada agora na perspectiva da agricultura familiar e não
na da produção camponesa, ou da pequena produção.
Nesta medida, a juventude rural é observada como enfrentando os dilemas
pertinentes ao que estaria ocorrendo no novo modelo agrário brasileiro.
As questões do turismo rural, da produção integrada, do
encolhimento demográfico estariam dissociadas das discussões sobre
as contradições do sindicalismo rural, movimentos camponeses e
a luta pela Reforma Agrária, por exemplo.
Seria como se a questão levantada por Abramo (1994) a respeito das juventudes
urbanas, a saber, a necessidade da apreciação do papel cultural
nas lutas juvenis por afirmação de cidadania, não devesse,
de alguma forma, interferir nas análises sobre os processos organizativos
e as construções das identidades da juventude rural. Com isto
estou a indicar que a construção da análise é parte
de uma equação política. Qual o destino do mundo camponês
no processo de globalização? Vários autores indicam que
abordagens que ainda procuram um papel ativo para a juventude rural na construção,
e permanente reconstrução do universo camponês, padecem
de bucólico romantismo (Espínola, Durston). Outros, apenas constatam
que seria um equívoco forçar uma oposição entre
o universo camponês e sua inserção na constituição
do mercado de abastecimento e exportação de produtos agrícolas
(R. Abramovay). Então, o desenvolvimento de análises sobre juventude
rural dependerá – como não poderia deixar de ser –
do interesse político-cognitivo que orienta a construção
analítica.
Há a necessidade da discussão sobre o papel da objetividade na
construção da análise. Não é este o foco
deste texto, mas apenas para mencionar sem o devido aprofundamento, L. Goldman
(1969) tem uma interessante abordagem que permite compreender como a análise
sociológica deve ter um compromisso político, sem com isto perder
seu rigor analítico. O que me parece improvável é supor
a neutralidade em quaisquer discursos. Quis indicar, até aqui que há
uma disputa política por trás das abordagens sobre juventude e
juventude rural. Elas têm conseqüências na construção
das ações políticas dos movimentos sociais e na construção
de políticas públicas para os diferentes setores sociais.
Os dois próximos passos desta reflexão pretendem indicar que
é possível uma abordagem sobre a identidade da juventude rural,
a partir das práticas sociais existentes no campo, que considere os impactos
funestos do capitalismo agrário – mormente dos modelos do agronegócio
(de modo especial o de monoculturas, como soja e eucalipto). Esta abordagem
conquanto objetiva é politicamente comprometida com os interesses da
agricultura camponesa, na sua pluriformidade, e nos diferentes modos de constituição
de um embate em favor da plena cidadania em sociedades como a brasileira. Por
isto, o autor assume desde já a crítica de parcialidade do discurso
– até porque não acredita em outro tipo de discurso.
Num primeiro momento, avançaremos na discussão sobre a identidade
do jovem camponês. Neste passo, discutiremos a pertinência de uma
abordagem a partir da unidade familiar de produção e dos desafios
que ela enfrenta com o capitalismo agrário. Abordaremos o problema da
relação entre identidade juvenil camponesa e sua relação
com a memória das lutas sociais no campo e os projetos de ocupação
territorial. Num outro momento, trataremos da questão da juventude camponesa
sertaneja do território do Submédio São Francisco. Procuraremos
neste passo identificar como as lutas sociais e os desafios sóciopolíticos
do território perpassam na construção da identidade social
da juventude camponesa. Ao fim e ao cabo, queremos considerar que as identidades
sociais cooperam com processos de reprodução social e respondem
a representações sociais endógenas e exógenas em
função de projetos sociais formulados pelos atores sociais.
Como indica Bourdieu (1994) a identidade social não é um elemento
natural ou biológico. Por isto, juventude ou juventude rural não
se define pelo aspecto etário ou do desenvolvimento biológico.
No caso da juventude, conforme Cruz (2000: 49ss), trata-se de uma composição
de três elementos: - dispositivos sociais de capacitação
e socialização; - a normatividade e legaliformidade da sociedade;
e – a indústria cultural. Assim como toda identidade se constitui
por meio da alteridade, a identidade juvenil se constitui pelos modos com o
qual se relaciona com estas estruturas sociais.
No caso da juventude rural, ao se admitir a primeira relação
de alteridade, temos na família camponesa um elemento fundamental. É
por participar daquela família de origem que surge por meio da socialização
uma pessoa que é jovem camponês. Aqui precisamos chamar atenção
para o contexto camponês, que inclui a unidade familiar de produção,
mas, também, os assalariados do mundo rural – aquelas pessoas que
ficam a mercê dos processos sociais que legitimam a proletarização
do campesinato e a precarização do trabalho no mundo camponês.
Não é possível observar ambas as situações
sem admiti-las como um produto da concentração fundiária,
e, por conseguinte, do atraso histórico dos processos de Reforma Agrária.
Nestes casos, a socialização familiar inclui, dentre outros elementos,
a co-participação dos filhos no processo laboral. Como no caso
das famílias camponesas o processo sucessório se resolve tardiamente,
a partir da capacidade principalmente do homem em se tornar proprietário,
e isto se dá, em geral, após os 30 anos, a Contag adotou como
limite da faixa etária que pode ser considerada como a de jovem rural,
32 anos.
É interessante que o novo marco legal, o Estatuto da Criança
e do Adolescente, promova o afastamento da criança e do jovem daquele
universo laboral parental. Entretanto, mesmo com o Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil, várias Delegacias Regionais do Trabalho, diferenciam
a atividade laboral em empresas agrícolas daquelas vivenciadas na unidade
familiar de produção. Até mesmo porque, em muitos casos,
esta vivência não é um obstáculo intransponível
para a precária escolarização oferecida em muitas zonas
rurais no Brasil, como se dá, por exemplo, e, sobremaneira, no semi-árido
brasileiro. Este caráter normativo também explica porque para
Contag o limite de idade para que uma pessoa identificada ou que se identifica
como trabalhador rural seja considerada é de 16 anos.
Em relação à indústria cultural é bastante
interessante notar como se dá esta construção da identidade
no universo camponês. Aqui vale a pena a observação sobre
a capacidade da indústria cultural em criar e atender a diversificação
de mercado. Distantes de criar homogeneidade total, a indústria cultural
é hábil em criar diversidades parciais homogêneas. Assim,
existe uma série de bens culturais que são mais apropriados a
uma área cultural que a outra. Por exemplo, no caso do semi-árido,
em especial nos sertões do norte da Bahia e sudoeste de Pernambuco, são
bens culturais preciosos o tecno-forró, os barzinhos para comer-beber-dançar-fornicar,
e as motocicletas, para assegurar status e mobililidade, sobretudo aos rapazes.
Este processo de construção social da identidade não é
estático nem natural. Não nascemos com uma identidade, a construímos.
O fato das pessoas nascerem e terem os seus processos de socialização
num determinado território oferece-lhes uma configuração
genérica. Entretanto, é por meio dos processos de absorção,
inserção ou exceção em relação ao
mundo do trabalho que a identidade camponesa se afirmaria? Ou bastaria a permanência
num território rural para que a identidade de jovem camponês se
fizesse presente? A construção da identidade social, como estamos
analisando, é uma composição desses e de outras características.
Trata-se de uma bricolagem. Afirmá-la exclusivamente pela relação
com o mundo do trabalho ou com a territorialidade rural parece não corresponder
ao processo de sua construção.
A observação sobre a construção social da identidade
camponesa está referida aos processos de socialização,
à institucionalidade e sua relação com a indústria
cultural, e também deve considerar as diferentes inserções
possíveis na constituição das contradições
do universo agrário. Assim, é possível compreender que
nem todo jovem camponês, de origem, permaneça camponês na
sua biografia eletiva e afetiva, bem como compreender que jovens que não
sejam camponeses de origem possam tornar-se camponeses por adesão àqueles
processos sociais. Este quadro teórico talvez permita uma abordagem etno-política
tanto dos processos migratórios de saída do mundo rural, quanto
de processos de ingresso no mundo rural, como, por exemplo, por meio de assentamentos
rurais.
Isto nos permitiria compreender que se, de um lado, a origem familiar é
um elemento constituinte da identidade social do jovem camponês, esta
não é a única possibilidade para a constituição
desta identidade, nem sua condição exclusiva. “É
simplista propor que os operários, por exemplo, possam ser definidos
exclusivamente por uma atividade produtiva, os indígenas pela sua pertença
a uma etnia; os ecologistas por sua defesa dos ecossistemas, e, portanto, os
jovens por sua idade. As identidades sociais não são monocausais,
pelo contrário, estão complexa e multidimensionalmente articuladas
a um conjunto de elementos sociais, econômicos, políticos”
(Cruz: 2000, 56). Desta forma também os conflitos de classe, étnicos
e de gênero perpassam as macroidentidades geracionais.
O conjunto das considerações acima insiste num corte epistemológico,
a saber, uma sociologia rural crítica que assuma o tema da juventude
sertaneja no interior da complexidade das contradições de uma
sociedade capitalista ainda periférica, como é a brasileira, e,
no geral, as latino-americanas. Trata-se de um esforço de identificação
de uma identidade social específica que é construída em
meio ao conjunto das contradições e transformações
pelas quais passa o mundo rural. Porém, e talvez seja esta a importância
analítica de categorias como juventude sertaneja, o recorte geracional
nos permite compreender as demandas em termos de projeto sóciopolítico
e sóciohistórico. A noção de projeto trata tanto
do presente, espaço social de sua realização, quanto do
futuro, espaço social de sua verificação – a noção
de verificação posterior aos fatos é algo que filósofos
como John Hick (1998) chamam de verificação escatológica.
Levando em consideração estes aspectos teóricos convido
para uma apreciação de uma construção social específica,
a saber, a da juventude camponesa sertaneja nordestina da região do Submédio
São Francisco (SMSF). Isto é facultado tanto por uma ação
educativa desenvolvida com os jovens rurais daquela região nos últimos
dez anos, quanto pela assessoria político-pedagógica ao Pólo
Sindical dos Trabalhadores Rurais do SMSF, nos últimos 12 anos, como
também por um conjunto de investigações que desenvolvi
na área, em especial a partir de 1997, referente aos efeitos do cultivo
de maconha para a vida camponesa. Assim, que o que segue não é
um estudo de caso específico, mas algumas observações decorrentes
daquele conjunto de trabalhos de campo.
O território do Submédio São Francisco foi formalmente
reconhecido pelo MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) em
janeiro de 2006, como território de Itaparica. A história da região
remonta ao processo de colonização, à criação
de gado para abastecimento das Minas Gerais no ciclo do ouro. Esta história
foi profundamente afetada com as construções das Unidades Hidrelétricas
nos anos de 1970. Os desastrosos impactos socioambientais de Sobradinho, e o
não menor de Moxotó, que afetaram cidades e cidadãos baianos,
por meio de deslocamento compulsório, possibilitaram a reação
da população que seria afetada por Itaparica (Usina Hidrelétrica
Luiz Gonzaga). Esta reação foi implementada por meio da constituição
de uma organização popular (movimento social), de caráter
sindical, sui generis: o Pólo Sindical. Esta organização
reunia bases de municípios de dois estados, Bahia e Pernambuco. E conquistou
uma Reforma Agrária inédita: o reassentamento de seis mil famílias
em perímetro irrigado numa mancha do semi-árido nordestino.
Esta conquista foi firmada por meio de um Acordo celebrado entre o governo
federal e os trabalhadores rurais, representados pelo Pólo. Com a luta
iniciada em 1979, e o acordo celebrado em 2006, o Pólo se tornou um dos
atores políticos mais importantes da região. Seus enfrentamentos
com a Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco), o Banco
Mundial, e os sucessivos governos federais, de Figueiredo a Lula, o abalizaram
e continuam a credenciar junto aos reassentados e seus filhos – até
mesmo porque ainda não está plenamente concluído o reassentamento
de Itaparica. Nos últimos 15 anos o Pólo ampliou sua ação
para discussão de outras questões do interesse de seus associados
– os 16 STRs da região. Seus temas principais são políticas
de produção rural – com ênfase na agricultura orgânica;
políticas de gênero e geração; políticas de
convivência com o semi-árido e a conclusão do reassentamento
de Itaparica.
O ano de 1997 trouxe para o Pólo uma série de injunções
que criou aquele novo conjunto de preocupações políticas.
Naquela ocasião o governo Fernando Henrique, entre as várias ações
políticas de contra-reforma agrária, criara o Grupo Executivo
para o Reassentamento de Itaparica, que implementou ações indenizatórias
para que famílias que haviam sido reassentadas desistissem da conclusão
dos projetos em troca de uma indenização numerária. Foi
um ano de elevada tensão entre os gerentes do cultivo de cannabis sativa
e lavradores que tinham interesse em outros cultivos, sobretudo na região
do município de Santa Maria da Boa Vista. Isto resultou no assassinato
de Fulgêncio Manoel Batista, importante liderança do Pólo
e do MAB, em outubro de 1997. Além disso, havia um interesse na Secretaria
de Mulheres em criar um Departamento de Juventude.
Para a nossa assessoria político-pedagógica isto redundou em
dois modelos de ação. Primeiramente, passamos a assessorar a criação
e o desenvolvimento do Departamento de Jovens do Pólo. Em segundo lugar,
tornou-se uma necessidade uma melhor compreensão do papel da cultura
da maconha na região, da sua criminalização e dos efeitos
desta criminalização para a vida dos camponeses na região.
Na nossa compreensão estas ações desafiadoras embora imbricadas
eram paralelas. Não poderíamos onerar ainda mais em risco uma
organização popular.
A demanda por atividades com a juventude rural nos levava a procurar entender
o contexto e os contornos desta população. Precisávamos
de maiores informações sobre os comportamentos, hábitos,
valores – a cultura – da juventude camponesa do SMSF. Partimos das
noções de juventude que vinham alimentando o debate urbano. Empreendemos
um levantamento de dados estatísticos sociais demográficos deste
segmento naquela região. Identificamos a quem os sindicalistas chamavam
de jovens. A própria pessoa que fora escolhida para coordenar o Departamento
de Jovens era identificada como uma jovem camponesa filha de reassentados. O
Pólo possuía um classificador para os trabalhadores rurais que
identificava trabalhadores rurais e trabalhadores rurais para-rurais. Os últimos
eram aqueles que exerciam atividade agrícola e não viviam nas
zonas rurais, mas nas sedes dos municípios. Este classificador também
era utilizado para identificar os jovens.
Este é um classificador espacial: dependendo de onde a pessoa habita.
Porém, ele tem outro componente que não pode ser perdido de vista,
com duas dimensões: exercício de atividade agrícola, e
parentalidade (família de origem). Assim, na composição
desta identidade havia, de início, estas três componentes básicas:
espacial, laboral e parental. Havia, contudo, a questão do espaço
social de participação do qual migravam os jovens que vinham participar
de um processo sócio-educativo construído por meio do movimento
sindical. As pessoas eram praticamente das comunidades eclesiais romano-católicas
da região. Ou seja, havia uma sobreposição de participação:
a juventude camponesa articulada pelo Pólo era também articulada
pela igreja católica.
Como a presença da juventude articulada por meio da igreja católica
precedia a existência do Departamento de Jovens, e como o interesse do
Departamento era dar um passo diferente na formação política
daquela mesma juventude, não pareceu problemático este fato. Além
disso, as ações de formação de cooperativas de produtores,
nos reassentamentos, que se dera também em 1997, criaram alguns grupos
juvenis de jovens trabalhadores rurais nos reassentamentos – em especial
nos municípios de Rodelas, Orocó e Santa Maria da Boa Vista. Isto
criou este segundo contingente. Portanto, eram agregados pelo Departamento de
Jovens do Pólo pessoas classificadas como rurais e para-rurais. Até
o ano 2000 o Departamento de Jovens trabalhou com um corte etário: 15-24
anos. Porque? Esta foi uma opção arbitrária em usar a faixa
da OMS.
O que constatamos é que as organizações sociais fazem
opções pelos sujeitos que são transformados em sujeitos
políticos. Ao mesmo tempo em que desenvolvíamos estas atividades
com o Pólo na região atuavam com jovens rurais o Sebrae - Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Instituto Xingó,
diferentes pastorais da igreja romano-católica (em especial Pastoral
de Juventude no Meio Popular, Pastoral de Juventude Rural, CPT), a Codevasf
- Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba
(Projeto Amanhã), o Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada
(naquele período exclusivamente por meio de uma Escola Família
Agrícola), o MST. De todos estes atores nós nunca tivemos uma
relação direta com o Sebrae e o Instituto Xingó. Como todos
os outros tivemos relações por meio dos jovens camponeses e, também,
relacionamentos institucionais formais.
Não existe um denominador comum para definir juventude camponesa, muito
embora as pessoas com as quais se articulam e desenvolvam as ações
dessas instituições sejam classificadas assim. Em alguns casos
a abordagem é bastante próxima, a saber, a preocupação
em criar condições de organização e mobilização
da juventude para superar os dilemas em torno de projetos de desenvolvimento
rural sustentável. Por desenvolvimento rural sustentável, sintética
e esquematicamente, se entende ações articuladas de produção
agrícola, com responsabilidade ecológica e promoção
da cidadania. Este objetivo permitia a articulação das organizações
populares com as governamentais e não-governamentais.
É necessário reconhecer que esta juventude camponesa que utiliza
as organizações como meio e mecanismo para suas articulações
o fazem, sobretudo, para desenvolver ações culturais (Iulianelli:
2002). Esta é uma parcela da juventude camponesa. Como a presença
da igreja romano-católica é muito extensiva, esta pode não
ser uma parte menor. Porém, há várias outras faces da juventude
camponesa. Neste caso, devemos, mesmo numa região, num território
(complexo de região, cultura, características locais), considerar
a pluralidade dos atores que compõem esta juventude camponesa.
É certo que existem algumas características comuns. Na medida
em que a juventude se articula por meio destas organizações sociais
tradicionais (igreja, sindicato), ela termina por incorporar o discurso político
e contribui, assim, para a reprodução social das instituições
e de seu discurso, por um lado. Por outro lado, a presença desta juventude
camponesa nestas instituições traz elementos perturbadores, provocadores
de estranhamento, como por exemplo, neste caso do movimento sindical, a maior
parte dos jovens, até hoje envolvidos pelas ações do Departamento
de Jovens, não é, nem tem procurado, se sindicalizar. Isto traz
o questionamento: qual o papel que uma organização sindical tem
ao articular a juventude camponesa? Qual o papel tem a juventude camponesa numa
composição com as organizações populares? Muito
embora estas sejam questões significativas para o debate, elas não
nos interessam aqui. Estão aí apenas para identificarmos que existem
estranhamentos neste processo. O fato de serem instituições tradicionais
os meios pelos quais a juventude camponesa se articula nem por isso torna menos
significativo.
Talvez, como exercício, valha a pena discutir a gênese e estrutura
da identidade da juventude camponesa sertaneja do SMSF. Creio que os elementos
de socialização são altamente importantes. Primeiramente,
devemos identificar o fomento que a parentalidade camponesa traz e perceber
que ela está totalmente associada à atividade agrícola.
A permanência na atividade agrícola é uma característica
da identidade da juventude camponesa, mas não exclusivamente, ela está
associada, ao meu ver, também, à luta pelos direitos dos camponeses.
Por isso, estas instituições tradicionais do campo, tais como
a igreja e o sindicato são muito relevantes na composição
desta identidade. Ela oferece consistência histórica.
Esta consistência se dá tanto na construção do projeto
de permanência, quanto no projeto de alternativa à permanência.
É claro que quando se vincula a identidade à territorialidade
a não permanência é um elemento de exclusão. Porém,
há que se pensar até que ponto a constituição social
da identidade é desfeita na alternativa permanência. Por isto,
creio que uma componente que não pode ser desprezada na construção
social da identidade é a da participação sociopolítica,
me parecem equivocadas as abordagens que não identificam esta dimensão
porque desprezam um elemento fundamental da nossa condição humana.
Neste campo joga um papel importante a indústria cultural.
Porém, se aqui acima estão citados elementos endógenos
(inputs) da construção social da identidade da juventude camponesa
sertaneja. Existem elementos que podemos caracterizar como exógenos.
O primeiro deles é a relação da juventude camponesa com
a terra. Trata-se da posse formal da propriedade, este é um elemento
explicativo das opções por permanência ou construção
de alternativa – juntamente com as condições precárias
da atividade agrícola. Desconsiderar este elemento faz parecer fortuito
a masculinização das zonas rurais, bem como o celibato masculino,
assim como a maior escolarização das mulheres nas zonas rurais.
Estas são relações que se estabelecem a partir destes elementos:
a posse da terra e as condições de trabalho na terra.
Se observarmos, por exemplo, o que se passa com a juventude sertaneja diante
da produção de maconha, teremos outras constatações
que valeriam a pena aprofundar. As pesquisas que temos desenvolvido na região
do Submédio São Francisco[1] nos oferecem um retrato da situação
dos jovens envolvidos com plantio de drogas ilícitas. Torno a repetir
que esta é uma informação qualitativa, talvez aplicável
a algumas situações concretas apenas. Entrementes, a comparação
do envolvimento de crianças e adolescentes no plantio mostra que há
muitas correlações entre essas observações e a situação
em geral das crianças e jovens camponeses que trabalham na agricultura
familiar.
É interessante notar que os jovens que trabalham no plantio da maconha,
em geral, não estão nos processos organizativos de jovens rurais,
eclesiais ou sindicais. Estes jovens optam por um estilo de vida que lhes deixa
em situações-limite. Primeiramente, se vêem numa condição
de trabalhadores rurais. Plantar maconha é uma atividade agrícola
como outra qualquer. Ela exige uma parcela de terra, um cuidado com as sementes,
um acompanhamento da cultura, a colheita, a venda da mercadoria colhida (processo
de geração de mais-valia). Entretanto, plantar maconha é
se associar a uma atividade qualificada como ilícita.
A ilicitude do ato faz com que os plantadores, inclusive os jovens, tenham
que decidir sobre como se relacionarão com os outros plantadores do mesmo
produto, de outros produtos e com o aparelho de repressão do Estado.
Isto deixa aos jovens opções como ter armas e manterem-se presentes
todo tempo na área de plantio (quase em uma espécie de retiro
ou aprisionamento). Se usássemos a linguagem foucaultiana diríamos
que a biopolítica do controle do corpo no plantio da maconha exige dos
jovens uma atitude estóica: eles têm que abandonar toda possibilidade
de prazer em nome da produção. Ora, o controle biopolítico
do Capital exige o mesmo de todo operador do mercado, de todo ser humano reificado
pelas relações capitalistas.
O jovem que resolve plantar maconha na região do SMSF tem esta opção
diante das possibilidades da precarização do trabalho rural, como
para-rural que se emprega para atender às necessidades dos camponeses
integrados, ou se vê como integrado, ou ainda com as possibilidades da
atividade agrícola de pequeno produtor auto-suficiente, ou mais um refém
do êxodo rural. Todas estas opções lhe rendem um ingresso
financeiro menor que aquele da atividade no cultivo da cannabis sativa. Entretanto,
naquele cultivo o jovem se vê confrontado com a ameaça da morte,
tanto pelos concorrentes (outros plantadores de maconha), como pela ação
do aparelho de repressão do Estado.
Essa opção do jovem tem, então, duas componentes básicas.
Primeiramente, trata-se de uma opção econômica. Ele tem
nesta atividade a possibilidade de um recurso que imediatamente pode ser convertido
em bens muito valorizados em sua região: moto, cachaça, dinheiro
para levar jovens aos motéis, para sair com prostitutas, etc. Certamente,
não isto, mas também esta situação ajuda a compreender
o maior envolvimento masculino nesta atividade produtiva. Em segundo lugar,
ele se vê como um aventureiro, um lutador, explicitamente, que enfrenta
inimigos que não estarão a sua altura enquanto conseguir escapar
– os produtores concorrentes e a polícia. Finalmente, ele passa
a ser um sedutor, alguém que é atraente, pela coragem e pelos
bens que possui, para as mulheres.
Esta situação é de tal maneira que a pergunta sociológica
mais correta seria não o que leva estes rapazes a optarem por esta estratégia
de sobrevivência. Porém, seria mais correto questionar: porque
os outros não estão nesta? Evidentemente, que olhar para esse
jovem que não participa das ações que articulam a juventude
camponesa sertaneja para lutar pelos próprios direitos (econômicos,
sociais, culturais e ambientais) permite-nos ter um olhar ainda mais acurado
sobre estes. O fato é que a constituição da identidade
cultural da juventude camponesa sertaneja nordestina do sertão do SMSF
não será explicado apenas pelo fenômeno do êxodo rural,
ou da masculinização dos camponeses – a situação
agrária é um forte ingrediente para entender estes fenômenos.
O que permitirá entender é a construção dos projetos
sociais que a juventude camponesa opta em função das reais condições
de existência e de reprodução social.
Considerações finais:
Após este conjunto de reflexões precisamos considerar que uma
componente da análise da identidade cultural dos jovens rurais é
o projeto de mundo rural em vista. Necessitamos notar que não existe
um futuro inexorável. Parece que a sociologia rural enfrenta um axioma
semelhante ao da sociologia da religião. Este afirmava que com o secularismo
assistiríamos ao fim da religião. Porém, como naquele caso,
parece que o mundo camponês teima em se manter. A discussão sobre
juventude rural precisa assumir o caráter relacional e provisório
desta identidade e o papel que ela tem na construção de políticas
públicas e ações sociais específicas. No caso do
SMSF, a juventude camponesa sertaneja nordestina apresenta pelo menos três
configurações: a) os que assumem a herança das lutas sociais
locais e pleiteiam direitos coletivos por meio de organizações
que mobilizam ações culturais locais; b) os que diante da precarização
do trabalho e dos processos sucessórios procuram alternativas fora do
SMSF – por meio da migração; c) os que diante da precarização
do trabalho e dos processos sucessórios procuram alternativas no plantio
da maconha.
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[1] Em 1999 fizemos uma entrevista estruturada com mais de 1500 jovens,
participantes da 1a. Olimpíada da Juventude Rural do Submédio
São Francisco; no mesmo ano fizemos entrevistas abertas com camponeses
e autoridades públicas na região, ao todo mais de 30 informantes
privilegiados; no ano de 2000 entrevistamos, em grupos focais, jovens camponeses,
e, por meio de entrevistas abertas outras autoridades públicas, informantes
privilegiados, ao todo mais de 50 indivíduos. No anos de 2001, os jovens
do Departamento de Jovens do Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do
Submédio São Francisco desenvolveram uma Gincana, que atingiu
mais que 3.000 pessoas, em sete municípios do Submédio São
Francisco, com o tema “Luta pela Paz”. No mais, mantemos levantamento
constante do material da grande imprensa, das pesquisas dos órgãos
públicos e dos organismos multilaterais.
Jorge Atílio Silva Iualinelli. Filósofo, Doutor em filosofia
pelo IFCS/Ufrj; coordenador do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA-Presença
Ecumênica e Serviço; professor de Filosofia da Educação
na Unesa-RJ; consultor técnico do Unicef sobre violência contra
criança e adolescente.