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Juventude sertaneja camponesa nordestina e o plantio da maconha
Por: Jorge Atilio Silva Iulianelli
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Resumo:

A abordagem teórica sobre juventude é marcadamente urbana. Este é um dos motivos da invisibilidade da juventude rural. Porém, até as abordagens urbanas não possibilitam uma qualificação sócio-epistemológica do tema da juventude com a possibilidade analítica de categorias como classe, gênero e etnia. Uma primeira aproximação do tema precisa identificar a partir de que marco teórico a abordagem geracional e territorial qualificam a juventude rural como ator social específico. Em segundo lugar, situamos a discussão da constituição da identidade da juventude rural num processo no qual a identidade social é observada como participante do processo histórico de constituição das realidades locais (territoriais), que inclui memória e projeto. Finalmente, identificamos o caso específico da realidade geracional na região do Submédio São Francisco, historiamos o processo de ocupação social da região, os impactos da produção de maconha e de sua expansão para uma escala comercial para atendimento de demanda exógena na constituição da identidade da juventude sertaneja camponesa nordestina.

Palavras chave: juventude rural, campesinato, convivência com o semi-árido, economia política das drogas.

Há alguns anos há uma preocupação sociológica em ressemantizar os discursos das ciências sociais e da formulação de políticas públicas sobre juventude. Este processo começou no início da década de 1990. O fato que torna relevante esta questão é o fenômeno demográfico caracterizado pelos estatísticos como onda jovem. O célebre estudo de Elza Berquó (1998), realizado para o governo federal, indica que esta tendência mundial também se manifesta no Brasil. Há um aumento da expectativa de vida, aumento da taxa de mortalidade infantil, diminuição da taxa de natalidade, e, como uma das conseqüências, temos o aumento demográfico da população jovem, ou seja, aquela caracterizada pela Organização Mundial de Saúde como os indivíduos da faixa etária entre 15-24 anos.

Os discursos das ciências sociais sobre juventude são coincidentes numa abordagem majoritariamente urbana. A escola de Chicago caracterizava a juventude como classe perigosa, indicando que os jovens tinham alto potencial de delinqüência, sobretudo aqueles das classes subalternas. Durante os anos de 1960, a visibilidade social juvenil foi ampliada pelos movimentos de contra-cultura, estudantil e revolucionário, o que gerou um discurso das ciências sociais que identificava esta juventude, sobretudo pertencente aos setores urbanos intermediários das sociedades capitalistas, como protagonistas da construção de alternativas sociais – diante do modelo da sociedade capitalista de mercado.

Nos Estados Unidos e Europa, durante a década de 1980, podemos indicar que houve uma interrupção de estudos sobre a juventude em geral. Na América Latina, os setores educacionais levantavam estudos sobre a questão da população em situação de rua, sobretudo crianças e jovens. Havia, na América Latina, duas trilhas teóricas. Uma primeira, a partir das ações educativas, identificava a juventude como setor vulnerabilizado, produtor de crítica social e criminalizado. A outra, procurava notar as novidades em termos de estilos culturais que eram disseminados pelas juventudes urbanas. Um dos frutos foi a criação de novos marcos legais para lidar com as crianças e jovens (Cruz: 2003). Duas expressões deste processo no Brasil foram o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Traço este histórico esquemático para destacar como a juventude rural não foi tematizada ao longo deste período. Os estudos de sociologia rural tendiam para o debate entre a existência de um movimento camponês plural ou a afirmação do processo de extinção do mundo camponês por meio da substituição do capitalismo agrário. No Brasil, as análises se dedicavam a identificar, por um lado, os alcances e limites de lutas em favor da Reforma Agrária e das novas condições laborais e de existência das diferentes categorias de trabalhadores rurais. Por outro, houve uma série de estudos sobre os conflitos sociais agrários, as novas formas de organização do movimento social no campo e sobre os processos de integração. No campo dos movimentos sociais camponeses alguns dos grandes momentos neste processo foram a conquista da Contag - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura para o sistema CUT (Central Única de Trabalhadores), e a pluriformidade do conjunto de movimentos sociais no campo, como, por exemplo, o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) e o MST (Movimento dos SemTerra) – todos com uma forte relação com a CPT (Comissão Pastoral da Terra). Estas questões, entretanto, nem sempre estarão presentes quando da construção das análises sobre juventude rural.

Para tornar esta nossa reflexão mais adequada precisamos proceder a uma notação sobre o modo pelo qual a produção teórica sobre juventude e juventude rural ocorrem. Parece-nos que há uma certa tensão na construção dos discursos analíticos das ciências sociais sobre estes atores. Primeiramente, podemos afirmar que existe um conjunto de reflexões, a partir dos anos de 1990, que fazem classificações que identificam a juventude em tipologias como as de Eco que fala em integrados e apocalípticos. O cenário de fundo é o conjunto de mudanças tecnológicas do capitalismo pós-industrial e a débâcle do socialismo real. Nesta nova configuração aquela disputa ideológica, representada por aquela tipologia mencionada há poucas linhas não parecia mais muito adequada. Por isto, outras abordagens tornaram-se necessárias.

No caso das discussões sobre juventudes, numa perspectiva urbana, até onde me parece, identifica-se dois campos semânticos em disputa. Um primeiro parte da constatação etária, identifica uma demanda geracional na sociedade contemporânea, marcada por um conjunto de elementos da moratória geracional (educacional, cultural, laboral, sanitária), e percebe a pluralidade das identidades organizacionais da(s) juventude(s), sobretudo pertencentes às classes subalternas. Neste caso, é interessante notar a existência de duas interpretações em disputa. Uma que afirma o caráter apolítico e conservador destes grupamentos juvenis (Souza: 1990), e outro que afirma a plasticidade, o caráter inovador e as novas maneiras de fazer política (Abramo: 2000; Vianna: 1997). Um segundo campo procura construir uma espécie de denominador comum das juventudes. Reconhece o limite etário, identifica elementos da moratória geracional, porém trata da juventude como um segmento social senão monocromático, quase como se o fosse (Instituto da Cidadania).

No caso da juventude rural há um outro cenário. Primeiramente, o tratamento temático distou mais no tempo (Durston). Enquanto os novos estudos sobre juventude urbana se iniciam, no Brasil, ainda na segunda metade dos anos de 1990, aqueles sobre juventude rural virão apenas no quadrante final daqueles anos e início dos anos de 2000. O cenário sob o qual a questão da juventude rural é apreciada é, sobretudo, o da conformação do novo rural (Weisheimer: 2004). É a indicação de um conjunto de mutações no capitalismo agrário brasileiro, com uma nova formulação sobre a produção camponesa, abordada agora na perspectiva da agricultura familiar e não na da produção camponesa, ou da pequena produção. Nesta medida, a juventude rural é observada como enfrentando os dilemas pertinentes ao que estaria ocorrendo no novo modelo agrário brasileiro. As questões do turismo rural, da produção integrada, do encolhimento demográfico estariam dissociadas das discussões sobre as contradições do sindicalismo rural, movimentos camponeses e a luta pela Reforma Agrária, por exemplo.

Seria como se a questão levantada por Abramo (1994) a respeito das juventudes urbanas, a saber, a necessidade da apreciação do papel cultural nas lutas juvenis por afirmação de cidadania, não devesse, de alguma forma, interferir nas análises sobre os processos organizativos e as construções das identidades da juventude rural. Com isto estou a indicar que a construção da análise é parte de uma equação política. Qual o destino do mundo camponês no processo de globalização? Vários autores indicam que abordagens que ainda procuram um papel ativo para a juventude rural na construção, e permanente reconstrução do universo camponês, padecem de bucólico romantismo (Espínola, Durston). Outros, apenas constatam que seria um equívoco forçar uma oposição entre o universo camponês e sua inserção na constituição do mercado de abastecimento e exportação de produtos agrícolas (R. Abramovay). Então, o desenvolvimento de análises sobre juventude rural dependerá – como não poderia deixar de ser – do interesse político-cognitivo que orienta a construção analítica.

Há a necessidade da discussão sobre o papel da objetividade na construção da análise. Não é este o foco deste texto, mas apenas para mencionar sem o devido aprofundamento, L. Goldman (1969) tem uma interessante abordagem que permite compreender como a análise sociológica deve ter um compromisso político, sem com isto perder seu rigor analítico. O que me parece improvável é supor a neutralidade em quaisquer discursos. Quis indicar, até aqui que há uma disputa política por trás das abordagens sobre juventude e juventude rural. Elas têm conseqüências na construção das ações políticas dos movimentos sociais e na construção de políticas públicas para os diferentes setores sociais.

Os dois próximos passos desta reflexão pretendem indicar que é possível uma abordagem sobre a identidade da juventude rural, a partir das práticas sociais existentes no campo, que considere os impactos funestos do capitalismo agrário – mormente dos modelos do agronegócio (de modo especial o de monoculturas, como soja e eucalipto). Esta abordagem conquanto objetiva é politicamente comprometida com os interesses da agricultura camponesa, na sua pluriformidade, e nos diferentes modos de constituição de um embate em favor da plena cidadania em sociedades como a brasileira. Por isto, o autor assume desde já a crítica de parcialidade do discurso – até porque não acredita em outro tipo de discurso.

Num primeiro momento, avançaremos na discussão sobre a identidade do jovem camponês. Neste passo, discutiremos a pertinência de uma abordagem a partir da unidade familiar de produção e dos desafios que ela enfrenta com o capitalismo agrário. Abordaremos o problema da relação entre identidade juvenil camponesa e sua relação com a memória das lutas sociais no campo e os projetos de ocupação territorial. Num outro momento, trataremos da questão da juventude camponesa sertaneja do território do Submédio São Francisco. Procuraremos neste passo identificar como as lutas sociais e os desafios sóciopolíticos do território perpassam na construção da identidade social da juventude camponesa. Ao fim e ao cabo, queremos considerar que as identidades sociais cooperam com processos de reprodução social e respondem a representações sociais endógenas e exógenas em função de projetos sociais formulados pelos atores sociais.

Como indica Bourdieu (1994) a identidade social não é um elemento natural ou biológico. Por isto, juventude ou juventude rural não se define pelo aspecto etário ou do desenvolvimento biológico. No caso da juventude, conforme Cruz (2000: 49ss), trata-se de uma composição de três elementos: - dispositivos sociais de capacitação e socialização; - a normatividade e legaliformidade da sociedade; e – a indústria cultural. Assim como toda identidade se constitui por meio da alteridade, a identidade juvenil se constitui pelos modos com o qual se relaciona com estas estruturas sociais.

No caso da juventude rural, ao se admitir a primeira relação de alteridade, temos na família camponesa um elemento fundamental. É por participar daquela família de origem que surge por meio da socialização uma pessoa que é jovem camponês. Aqui precisamos chamar atenção para o contexto camponês, que inclui a unidade familiar de produção, mas, também, os assalariados do mundo rural – aquelas pessoas que ficam a mercê dos processos sociais que legitimam a proletarização do campesinato e a precarização do trabalho no mundo camponês. Não é possível observar ambas as situações sem admiti-las como um produto da concentração fundiária, e, por conseguinte, do atraso histórico dos processos de Reforma Agrária. Nestes casos, a socialização familiar inclui, dentre outros elementos, a co-participação dos filhos no processo laboral. Como no caso das famílias camponesas o processo sucessório se resolve tardiamente, a partir da capacidade principalmente do homem em se tornar proprietário, e isto se dá, em geral, após os 30 anos, a Contag adotou como limite da faixa etária que pode ser considerada como a de jovem rural, 32 anos.

É interessante que o novo marco legal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, promova o afastamento da criança e do jovem daquele universo laboral parental. Entretanto, mesmo com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, várias Delegacias Regionais do Trabalho, diferenciam a atividade laboral em empresas agrícolas daquelas vivenciadas na unidade familiar de produção. Até mesmo porque, em muitos casos, esta vivência não é um obstáculo intransponível para a precária escolarização oferecida em muitas zonas rurais no Brasil, como se dá, por exemplo, e, sobremaneira, no semi-árido brasileiro. Este caráter normativo também explica porque para Contag o limite de idade para que uma pessoa identificada ou que se identifica como trabalhador rural seja considerada é de 16 anos.

Em relação à indústria cultural é bastante interessante notar como se dá esta construção da identidade no universo camponês. Aqui vale a pena a observação sobre a capacidade da indústria cultural em criar e atender a diversificação de mercado. Distantes de criar homogeneidade total, a indústria cultural é hábil em criar diversidades parciais homogêneas. Assim, existe uma série de bens culturais que são mais apropriados a uma área cultural que a outra. Por exemplo, no caso do semi-árido, em especial nos sertões do norte da Bahia e sudoeste de Pernambuco, são bens culturais preciosos o tecno-forró, os barzinhos para comer-beber-dançar-fornicar, e as motocicletas, para assegurar status e mobililidade, sobretudo aos rapazes.

Este processo de construção social da identidade não é estático nem natural. Não nascemos com uma identidade, a construímos. O fato das pessoas nascerem e terem os seus processos de socialização num determinado território oferece-lhes uma configuração genérica. Entretanto, é por meio dos processos de absorção, inserção ou exceção em relação ao mundo do trabalho que a identidade camponesa se afirmaria? Ou bastaria a permanência num território rural para que a identidade de jovem camponês se fizesse presente? A construção da identidade social, como estamos analisando, é uma composição desses e de outras características. Trata-se de uma bricolagem. Afirmá-la exclusivamente pela relação com o mundo do trabalho ou com a territorialidade rural parece não corresponder ao processo de sua construção.

A observação sobre a construção social da identidade camponesa está referida aos processos de socialização, à institucionalidade e sua relação com a indústria cultural, e também deve considerar as diferentes inserções possíveis na constituição das contradições do universo agrário. Assim, é possível compreender que nem todo jovem camponês, de origem, permaneça camponês na sua biografia eletiva e afetiva, bem como compreender que jovens que não sejam camponeses de origem possam tornar-se camponeses por adesão àqueles processos sociais. Este quadro teórico talvez permita uma abordagem etno-política tanto dos processos migratórios de saída do mundo rural, quanto de processos de ingresso no mundo rural, como, por exemplo, por meio de assentamentos rurais.

Isto nos permitiria compreender que se, de um lado, a origem familiar é um elemento constituinte da identidade social do jovem camponês, esta não é a única possibilidade para a constituição desta identidade, nem sua condição exclusiva. “É simplista propor que os operários, por exemplo, possam ser definidos exclusivamente por uma atividade produtiva, os indígenas pela sua pertença a uma etnia; os ecologistas por sua defesa dos ecossistemas, e, portanto, os jovens por sua idade. As identidades sociais não são monocausais, pelo contrário, estão complexa e multidimensionalmente articuladas a um conjunto de elementos sociais, econômicos, políticos” (Cruz: 2000, 56). Desta forma também os conflitos de classe, étnicos e de gênero perpassam as macroidentidades geracionais.

O conjunto das considerações acima insiste num corte epistemológico, a saber, uma sociologia rural crítica que assuma o tema da juventude sertaneja no interior da complexidade das contradições de uma sociedade capitalista ainda periférica, como é a brasileira, e, no geral, as latino-americanas. Trata-se de um esforço de identificação de uma identidade social específica que é construída em meio ao conjunto das contradições e transformações pelas quais passa o mundo rural. Porém, e talvez seja esta a importância analítica de categorias como juventude sertaneja, o recorte geracional nos permite compreender as demandas em termos de projeto sóciopolítico e sóciohistórico. A noção de projeto trata tanto do presente, espaço social de sua realização, quanto do futuro, espaço social de sua verificação – a noção de verificação posterior aos fatos é algo que filósofos como John Hick (1998) chamam de verificação escatológica.

Levando em consideração estes aspectos teóricos convido para uma apreciação de uma construção social específica, a saber, a da juventude camponesa sertaneja nordestina da região do Submédio São Francisco (SMSF). Isto é facultado tanto por uma ação educativa desenvolvida com os jovens rurais daquela região nos últimos dez anos, quanto pela assessoria político-pedagógica ao Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do SMSF, nos últimos 12 anos, como também por um conjunto de investigações que desenvolvi na área, em especial a partir de 1997, referente aos efeitos do cultivo de maconha para a vida camponesa. Assim, que o que segue não é um estudo de caso específico, mas algumas observações decorrentes daquele conjunto de trabalhos de campo.

O território do Submédio São Francisco foi formalmente reconhecido pelo MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) em janeiro de 2006, como território de Itaparica. A história da região remonta ao processo de colonização, à criação de gado para abastecimento das Minas Gerais no ciclo do ouro. Esta história foi profundamente afetada com as construções das Unidades Hidrelétricas nos anos de 1970. Os desastrosos impactos socioambientais de Sobradinho, e o não menor de Moxotó, que afetaram cidades e cidadãos baianos, por meio de deslocamento compulsório, possibilitaram a reação da população que seria afetada por Itaparica (Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga). Esta reação foi implementada por meio da constituição de uma organização popular (movimento social), de caráter sindical, sui generis: o Pólo Sindical. Esta organização reunia bases de municípios de dois estados, Bahia e Pernambuco. E conquistou uma Reforma Agrária inédita: o reassentamento de seis mil famílias em perímetro irrigado numa mancha do semi-árido nordestino.

Esta conquista foi firmada por meio de um Acordo celebrado entre o governo federal e os trabalhadores rurais, representados pelo Pólo. Com a luta iniciada em 1979, e o acordo celebrado em 2006, o Pólo se tornou um dos atores políticos mais importantes da região. Seus enfrentamentos com a Chesf (Companhia Hidro Elétrica do São Francisco), o Banco Mundial, e os sucessivos governos federais, de Figueiredo a Lula, o abalizaram e continuam a credenciar junto aos reassentados e seus filhos – até mesmo porque ainda não está plenamente concluído o reassentamento de Itaparica. Nos últimos 15 anos o Pólo ampliou sua ação para discussão de outras questões do interesse de seus associados – os 16 STRs da região. Seus temas principais são políticas de produção rural – com ênfase na agricultura orgânica; políticas de gênero e geração; políticas de convivência com o semi-árido e a conclusão do reassentamento de Itaparica.

O ano de 1997 trouxe para o Pólo uma série de injunções que criou aquele novo conjunto de preocupações políticas. Naquela ocasião o governo Fernando Henrique, entre as várias ações políticas de contra-reforma agrária, criara o Grupo Executivo para o Reassentamento de Itaparica, que implementou ações indenizatórias para que famílias que haviam sido reassentadas desistissem da conclusão dos projetos em troca de uma indenização numerária. Foi um ano de elevada tensão entre os gerentes do cultivo de cannabis sativa e lavradores que tinham interesse em outros cultivos, sobretudo na região do município de Santa Maria da Boa Vista. Isto resultou no assassinato de Fulgêncio Manoel Batista, importante liderança do Pólo e do MAB, em outubro de 1997. Além disso, havia um interesse na Secretaria de Mulheres em criar um Departamento de Juventude.

Para a nossa assessoria político-pedagógica isto redundou em dois modelos de ação. Primeiramente, passamos a assessorar a criação e o desenvolvimento do Departamento de Jovens do Pólo. Em segundo lugar, tornou-se uma necessidade uma melhor compreensão do papel da cultura da maconha na região, da sua criminalização e dos efeitos desta criminalização para a vida dos camponeses na região. Na nossa compreensão estas ações desafiadoras embora imbricadas eram paralelas. Não poderíamos onerar ainda mais em risco uma organização popular.

A demanda por atividades com a juventude rural nos levava a procurar entender o contexto e os contornos desta população. Precisávamos de maiores informações sobre os comportamentos, hábitos, valores – a cultura – da juventude camponesa do SMSF. Partimos das noções de juventude que vinham alimentando o debate urbano. Empreendemos um levantamento de dados estatísticos sociais demográficos deste segmento naquela região. Identificamos a quem os sindicalistas chamavam de jovens. A própria pessoa que fora escolhida para coordenar o Departamento de Jovens era identificada como uma jovem camponesa filha de reassentados. O Pólo possuía um classificador para os trabalhadores rurais que identificava trabalhadores rurais e trabalhadores rurais para-rurais. Os últimos eram aqueles que exerciam atividade agrícola e não viviam nas zonas rurais, mas nas sedes dos municípios. Este classificador também era utilizado para identificar os jovens.

Este é um classificador espacial: dependendo de onde a pessoa habita. Porém, ele tem outro componente que não pode ser perdido de vista, com duas dimensões: exercício de atividade agrícola, e parentalidade (família de origem). Assim, na composição desta identidade havia, de início, estas três componentes básicas: espacial, laboral e parental. Havia, contudo, a questão do espaço social de participação do qual migravam os jovens que vinham participar de um processo sócio-educativo construído por meio do movimento sindical. As pessoas eram praticamente das comunidades eclesiais romano-católicas da região. Ou seja, havia uma sobreposição de participação: a juventude camponesa articulada pelo Pólo era também articulada pela igreja católica.

Como a presença da juventude articulada por meio da igreja católica precedia a existência do Departamento de Jovens, e como o interesse do Departamento era dar um passo diferente na formação política daquela mesma juventude, não pareceu problemático este fato. Além disso, as ações de formação de cooperativas de produtores, nos reassentamentos, que se dera também em 1997, criaram alguns grupos juvenis de jovens trabalhadores rurais nos reassentamentos – em especial nos municípios de Rodelas, Orocó e Santa Maria da Boa Vista. Isto criou este segundo contingente. Portanto, eram agregados pelo Departamento de Jovens do Pólo pessoas classificadas como rurais e para-rurais. Até o ano 2000 o Departamento de Jovens trabalhou com um corte etário: 15-24 anos. Porque? Esta foi uma opção arbitrária em usar a faixa da OMS.

O que constatamos é que as organizações sociais fazem opções pelos sujeitos que são transformados em sujeitos políticos. Ao mesmo tempo em que desenvolvíamos estas atividades com o Pólo na região atuavam com jovens rurais o Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Instituto Xingó, diferentes pastorais da igreja romano-católica (em especial Pastoral de Juventude no Meio Popular, Pastoral de Juventude Rural, CPT), a Codevasf - Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Projeto Amanhã), o Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada (naquele período exclusivamente por meio de uma Escola Família Agrícola), o MST. De todos estes atores nós nunca tivemos uma relação direta com o Sebrae e o Instituto Xingó. Como todos os outros tivemos relações por meio dos jovens camponeses e, também, relacionamentos institucionais formais.

Não existe um denominador comum para definir juventude camponesa, muito embora as pessoas com as quais se articulam e desenvolvam as ações dessas instituições sejam classificadas assim. Em alguns casos a abordagem é bastante próxima, a saber, a preocupação em criar condições de organização e mobilização da juventude para superar os dilemas em torno de projetos de desenvolvimento rural sustentável. Por desenvolvimento rural sustentável, sintética e esquematicamente, se entende ações articuladas de produção agrícola, com responsabilidade ecológica e promoção da cidadania. Este objetivo permitia a articulação das organizações populares com as governamentais e não-governamentais.

É necessário reconhecer que esta juventude camponesa que utiliza as organizações como meio e mecanismo para suas articulações o fazem, sobretudo, para desenvolver ações culturais (Iulianelli: 2002). Esta é uma parcela da juventude camponesa. Como a presença da igreja romano-católica é muito extensiva, esta pode não ser uma parte menor. Porém, há várias outras faces da juventude camponesa. Neste caso, devemos, mesmo numa região, num território (complexo de região, cultura, características locais), considerar a pluralidade dos atores que compõem esta juventude camponesa.

É certo que existem algumas características comuns. Na medida em que a juventude se articula por meio destas organizações sociais tradicionais (igreja, sindicato), ela termina por incorporar o discurso político e contribui, assim, para a reprodução social das instituições e de seu discurso, por um lado. Por outro lado, a presença desta juventude camponesa nestas instituições traz elementos perturbadores, provocadores de estranhamento, como por exemplo, neste caso do movimento sindical, a maior parte dos jovens, até hoje envolvidos pelas ações do Departamento de Jovens, não é, nem tem procurado, se sindicalizar. Isto traz o questionamento: qual o papel que uma organização sindical tem ao articular a juventude camponesa? Qual o papel tem a juventude camponesa numa composição com as organizações populares? Muito embora estas sejam questões significativas para o debate, elas não nos interessam aqui. Estão aí apenas para identificarmos que existem estranhamentos neste processo. O fato de serem instituições tradicionais os meios pelos quais a juventude camponesa se articula nem por isso torna menos significativo.

Talvez, como exercício, valha a pena discutir a gênese e estrutura da identidade da juventude camponesa sertaneja do SMSF. Creio que os elementos de socialização são altamente importantes. Primeiramente, devemos identificar o fomento que a parentalidade camponesa traz e perceber que ela está totalmente associada à atividade agrícola. A permanência na atividade agrícola é uma característica da identidade da juventude camponesa, mas não exclusivamente, ela está associada, ao meu ver, também, à luta pelos direitos dos camponeses. Por isso, estas instituições tradicionais do campo, tais como a igreja e o sindicato são muito relevantes na composição desta identidade. Ela oferece consistência histórica.

Esta consistência se dá tanto na construção do projeto de permanência, quanto no projeto de alternativa à permanência. É claro que quando se vincula a identidade à territorialidade a não permanência é um elemento de exclusão. Porém, há que se pensar até que ponto a constituição social da identidade é desfeita na alternativa permanência. Por isto, creio que uma componente que não pode ser desprezada na construção social da identidade é a da participação sociopolítica, me parecem equivocadas as abordagens que não identificam esta dimensão porque desprezam um elemento fundamental da nossa condição humana. Neste campo joga um papel importante a indústria cultural.

Porém, se aqui acima estão citados elementos endógenos (inputs) da construção social da identidade da juventude camponesa sertaneja. Existem elementos que podemos caracterizar como exógenos. O primeiro deles é a relação da juventude camponesa com a terra. Trata-se da posse formal da propriedade, este é um elemento explicativo das opções por permanência ou construção de alternativa – juntamente com as condições precárias da atividade agrícola. Desconsiderar este elemento faz parecer fortuito a masculinização das zonas rurais, bem como o celibato masculino, assim como a maior escolarização das mulheres nas zonas rurais. Estas são relações que se estabelecem a partir destes elementos: a posse da terra e as condições de trabalho na terra.

Se observarmos, por exemplo, o que se passa com a juventude sertaneja diante da produção de maconha, teremos outras constatações que valeriam a pena aprofundar. As pesquisas que temos desenvolvido na região do Submédio São Francisco[1] nos oferecem um retrato da situação dos jovens envolvidos com plantio de drogas ilícitas. Torno a repetir que esta é uma informação qualitativa, talvez aplicável a algumas situações concretas apenas. Entrementes, a comparação do envolvimento de crianças e adolescentes no plantio mostra que há muitas correlações entre essas observações e a situação em geral das crianças e jovens camponeses que trabalham na agricultura familiar.

É interessante notar que os jovens que trabalham no plantio da maconha, em geral, não estão nos processos organizativos de jovens rurais, eclesiais ou sindicais. Estes jovens optam por um estilo de vida que lhes deixa em situações-limite. Primeiramente, se vêem numa condição de trabalhadores rurais. Plantar maconha é uma atividade agrícola como outra qualquer. Ela exige uma parcela de terra, um cuidado com as sementes, um acompanhamento da cultura, a colheita, a venda da mercadoria colhida (processo de geração de mais-valia). Entretanto, plantar maconha é se associar a uma atividade qualificada como ilícita.

A ilicitude do ato faz com que os plantadores, inclusive os jovens, tenham que decidir sobre como se relacionarão com os outros plantadores do mesmo produto, de outros produtos e com o aparelho de repressão do Estado. Isto deixa aos jovens opções como ter armas e manterem-se presentes todo tempo na área de plantio (quase em uma espécie de retiro ou aprisionamento). Se usássemos a linguagem foucaultiana diríamos que a biopolítica do controle do corpo no plantio da maconha exige dos jovens uma atitude estóica: eles têm que abandonar toda possibilidade de prazer em nome da produção. Ora, o controle biopolítico do Capital exige o mesmo de todo operador do mercado, de todo ser humano reificado pelas relações capitalistas.

O jovem que resolve plantar maconha na região do SMSF tem esta opção diante das possibilidades da precarização do trabalho rural, como para-rural que se emprega para atender às necessidades dos camponeses integrados, ou se vê como integrado, ou ainda com as possibilidades da atividade agrícola de pequeno produtor auto-suficiente, ou mais um refém do êxodo rural. Todas estas opções lhe rendem um ingresso financeiro menor que aquele da atividade no cultivo da cannabis sativa. Entretanto, naquele cultivo o jovem se vê confrontado com a ameaça da morte, tanto pelos concorrentes (outros plantadores de maconha), como pela ação do aparelho de repressão do Estado.

Essa opção do jovem tem, então, duas componentes básicas. Primeiramente, trata-se de uma opção econômica. Ele tem nesta atividade a possibilidade de um recurso que imediatamente pode ser convertido em bens muito valorizados em sua região: moto, cachaça, dinheiro para levar jovens aos motéis, para sair com prostitutas, etc. Certamente, não isto, mas também esta situação ajuda a compreender o maior envolvimento masculino nesta atividade produtiva. Em segundo lugar, ele se vê como um aventureiro, um lutador, explicitamente, que enfrenta inimigos que não estarão a sua altura enquanto conseguir escapar – os produtores concorrentes e a polícia. Finalmente, ele passa a ser um sedutor, alguém que é atraente, pela coragem e pelos bens que possui, para as mulheres.

Esta situação é de tal maneira que a pergunta sociológica mais correta seria não o que leva estes rapazes a optarem por esta estratégia de sobrevivência. Porém, seria mais correto questionar: porque os outros não estão nesta? Evidentemente, que olhar para esse jovem que não participa das ações que articulam a juventude camponesa sertaneja para lutar pelos próprios direitos (econômicos, sociais, culturais e ambientais) permite-nos ter um olhar ainda mais acurado sobre estes. O fato é que a constituição da identidade cultural da juventude camponesa sertaneja nordestina do sertão do SMSF não será explicado apenas pelo fenômeno do êxodo rural, ou da masculinização dos camponeses – a situação agrária é um forte ingrediente para entender estes fenômenos. O que permitirá entender é a construção dos projetos sociais que a juventude camponesa opta em função das reais condições de existência e de reprodução social.

Considerações finais:

Após este conjunto de reflexões precisamos considerar que uma componente da análise da identidade cultural dos jovens rurais é o projeto de mundo rural em vista. Necessitamos notar que não existe um futuro inexorável. Parece que a sociologia rural enfrenta um axioma semelhante ao da sociologia da religião. Este afirmava que com o secularismo assistiríamos ao fim da religião. Porém, como naquele caso, parece que o mundo camponês teima em se manter. A discussão sobre juventude rural precisa assumir o caráter relacional e provisório desta identidade e o papel que ela tem na construção de políticas públicas e ações sociais específicas. No caso do SMSF, a juventude camponesa sertaneja nordestina apresenta pelo menos três configurações: a) os que assumem a herança das lutas sociais locais e pleiteiam direitos coletivos por meio de organizações que mobilizam ações culturais locais; b) os que diante da precarização do trabalho e dos processos sucessórios procuram alternativas fora do SMSF – por meio da migração; c) os que diante da precarização do trabalho e dos processos sucessórios procuram alternativas no plantio da maconha.

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[1] Em 1999 fizemos uma entrevista estruturada com mais de 1500 jovens, participantes da 1a. Olimpíada da Juventude Rural do Submédio São Francisco; no mesmo ano fizemos entrevistas abertas com camponeses e autoridades públicas na região, ao todo mais de 30 informantes privilegiados; no ano de 2000 entrevistamos, em grupos focais, jovens camponeses, e, por meio de entrevistas abertas outras autoridades públicas, informantes privilegiados, ao todo mais de 50 indivíduos. No anos de 2001, os jovens do Departamento de Jovens do Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco desenvolveram uma Gincana, que atingiu mais que 3.000 pessoas, em sete municípios do Submédio São Francisco, com o tema “Luta pela Paz”. No mais, mantemos levantamento constante do material da grande imprensa, das pesquisas dos órgãos públicos e dos organismos multilaterais.

Jorge Atílio Silva Iualinelli. Filósofo, Doutor em filosofia pelo IFCS/Ufrj; coordenador do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA-Presença Ecumênica e Serviço; professor de Filosofia da Educação na Unesa-RJ; consultor técnico do Unicef sobre violência contra criança e adolescente.