Universidade Federal de Sergipe
Centro de Ciências Sociais Aplicadas
Departamento de Serviço Social
Ana Cristina de Sá
“Estradai do sertão, que viaja o cidadão com a enchada, nas costas para plantar milho e feijão, com a sua engenuidade veio a máfia pezada, le trazer grandes descepições.
O sertão de Pernambuco de floresta a cabrobó, durante a semana um trabalho duro, no sábado dançar forró, com as meninas do pé de serra, nunca vi coiza melhor.
Quando chegou a tráfico muitas coizas mudou no sertão uns virarão bandidos, outros virarão ladrão, acabou o sucego. Quem não aceitou a enredo foi espulço da região
Veio trazendo discórdia e questão, as famílias brigando foi uma grande confuzão. Nesta guerra morreu gente fina, questão de gonçalves e benvido, foi aquela explosão”.
José Joaquim dos Santos – 2009.
(Texto não publicado)
RESUMO
Esta pesquisa procura analisar a existência de políticas públicas que contribuam para o desenvolvimento econômico, social e sustentável na região de Floresta (PE), possibilitando aos pequenos agricultores e trabalhadores rurais que sobrevivem do cultivo da maconha substituir essa atividade, bem como as relações existentes entre a repressão ao cultivo da maconha e o aumento da violência na região. Com a pesquisa foi possível compreender vários aspectos que configuram o envolvimento desses homens do campo com o cultivo da cannabis sativa. O primeiro refere-se às condições econômicas e sociais que a região oferecia antes do surgimento da grande produção da planta ilícita, que é um produto bastante rentável. A difícil condição de vida dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores, a geografia e o clima, a construção da barragem de Itaparica, o Escândalo da Mandioca, a crise da cebola na década de 1990 e as guerras de família – por questões de honra – são questões que fazem do município de Floresta um espaço propício aos grandes financiadores do tráfico. No entanto, mesmo com a criminalização desse tipo de cultivo no país, este passa a ser vislumbrado pelos pequenos lavradores e trabalhadores rurais assalariados como um trabalho que lhes propõe melhores condições econômicas do que as que possuíam nos cultivos tradicionais de subsistência. Outra questão diagnosticada com a pesquisa é a violência que tem aumentado na região, devido às ações de repressão praticadas pelos aparelhos de controle do Estado. Aqui foram investigados o primeiro Plano de Desenvolvimento Rural Sustentável do Submédio São Francisco de FHC e o Plano Territorial Desenvolvimento Rural Sustentável do Território de Itaparica de Lula. As maiores dificuldades analisadas para a superação dessa realidade é ausência, nas políticas de desenvolvimento rural para essa região, de ações específicas voltadas para esses sujeitos, que ofereçam alternativas ao plantio proibido e garantam melhores condições de vida para esses trabalhadores rurais e pequenos produtores.
PALAVRAS-CHAVE: MACONHA, ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS, VIOLÊNCIA, TRABALHO E CONDIÇÕES DE VIDA.
ABSTRACT
This survey looks for to analyze the existence of public policies which contribute to the supportable social end economical development in the region of Floresta (PE), getting possible to the agriculturists and rural workers who survive with marijuana cultivation the repayment of this activity, as well as the relations between the repression against marijuana cultivation and the increase of the violence in the region. With the survey, it has been possible to understand several aspects which represent the involvement of those countrymen with cannabis sativa cultivation. The first aspect concerns the social end economical conditions that the region offered before the emergence of the plentiful production of the illicit plant, which is a quite profitable product. The hard life condition of the peasants and the agriculturists of little properties, the geography, the climate, the building of Itaparica deem, the Cassava Scandal, the crisis of onion in the 1990’s and the family wars because – of honor questions – are issues which become the municipality of Floresta in a propitious space for the rich financiers of drug trafficking. However, even with the criminalization of this kind of cultivation in the country, this cultivation has been concerned a job for the plowmen ad paid rural workers, which is proposed to them better economic conditions then the conditions that they owned in the traditional cultivations of subsistence. Other diagnosed issue concerned the survey is the violence that has increased in the region because of the repression actions practiced by state control system. The first Supportable Rural Development Plan of Submédio São Francisco, created by FHC’s government, and Supportable Rural Development Territorial Plan of Itaparica territory, created by Lula’s government. The longest analyzed difficulties for the overcoming of this reality is the absence, in the rural development policies for this region, of specific actions about these subjects, which offered to them alternations to the forbidden plantation and assure better life conditions to these rural workers and producers of little properties.
Keywords: MARIJUANA, STATE, PUBLIC POLICIES, VIOLENCE, JOB AND LIFE CONDITIONS.
INTRODUÇÃO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso tem como principal objetivo investigar a existência de políticas públicas para o desenvolvimento econômico, social e sustentável que proporcionem alternativas para substituição do cultivo da maconha efetuado pelos trabalhadores e pequenos agricultores como atividade de subsistência, em Floresta (PE). Para isso, faz-se uma análise do histórico sobre o surgimento da maconha na região e as implicações desta nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores, como também para o próprio município e a partir daí verifica-se o tratamento que o Estado tem dado a essa problemática.
É relevante considerar que, ao contrário de outros países que possuem tradição no cultivo da coca, como a Bolívia, o Brasil não possui uma cultura histórica do cultivo da cannabis sativa – maconha, apesar da existência de registros do uso dessa por índios - a exemplo da tribo Guajajara no Maranhão, porém não se trata de um cultivo secular (IULIANELLIii, 2004, p. 7). Cabe acrescer, que conforme a pesquisa de campo realizada, a mão de obra utilizada nessa modalidade de cultura no território intitulado pela mídia como Polígono da Maconhaiii reproduz o modelo do agronegócio. Isto em função de os pequenos agricultores serem obrigados a entregar as suas propriedades rurais, constituindo uma vasta extensão de terra disponível para o narcoplantio, além da introdução de trabalhadores rurais assalariados no cultivo, com todas as condições para produção e escoamento do produto, que são estabelecidas pelos financiadores do tráfico, envolvendo esses sujeitos desde a década de 1980.
Soma-se a isto a existência de um grande contingente de pobreza nessa região, principalmente no meio rural, em razão das condições climáticas do sertão nordestino e da grande concentração fundiária, o que é corroborado por Jorge Iulianelli, para quem no Brasil, “a exploração das classes subalternas nas zonas rurais tem sua força na própria concentração fundiária e na exploração da massa camponesaiv, quer por meio do latifúndio, quer pelo agronegócio” (IULIANELLI, 2004, p. 7).
A partir desta perspectiva, percebe-se que a importância de estudar essa temática manifesta-se em várias questões. Em primeiro lugar, nos últimos anos o narcotráfico se torna uma das produções mais rentáveis do mundo, de acordo com o relatório 2007 da United Nations Office on Drugs and Crime (UNDCP). Há, também, muitas pesquisas que são desenvolvidas com o intuito de caracterizar o funcionamento do tráfico, sua repressão, tipos de entorpecentes, os usuários e os malefícios do uso de drogas. Porém, este estudo científico adota uma nova perspectiva, a análise da ação do Estado na região de Floresta, criando alternativas ao cultivo da maconha exercido pelos pequenos agricultores e trabalhadores rurais como atividade econômica de subsistência.
Tal contexto econômico e social requer respostas urgentes e capazes de modificar a realidade desses sujeitos, que são marginalizados e fragilizados pela insegurança, pelo medo tanto dos traficantes, quanto da polícia na medida em que são criminalizados.
Considera-se também que tal atividade compreende não só um meio de vida material e subjetivo, bem como um agravante da questão social, na medida em que representa uma nova forma de exploração capitalista no meio rural.
Neste trabalho acadêmico foram investigadas essa realidade e as políticas de desenvolvimento humano criadas para a região, visando proporcionar condições para a estabilidade e tranquilidade de vida aos trabalhadores rurais e pequenos agricultores. Em suas diversas dimensões, pretendeu-se produzir subsídios para dar suporte aos movimentos sociais dos trabalhadores rurais em sua luta e aos representantes do Estado para transformação desta realidade.
Para a produção de conhecimento científico no âmbito do Serviço Social (do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe - UFS), essa é uma abordagem totalmente inusitada.
Nessa pesquisa o referencial teórico metodológico utilizado é o materialismo histórico-dialético, que exige a abordagem do objeto de estudo inserido na totalidade das relações do capital, reportando para formação econômica e social brasileira a partir das suas contradições. Consiste, também, em uma pesquisa descritiva qualitativa, sendo complementada por dados quantitativos (censitários) secundários.
O campo empírico da pesquisa é a região do município de Floresta (PE), localizado na mesorregião do São Francisco Pernambucano e na microrregião 006 denominada de Itaparica, e ocupa, de acordo com Anuário Estatístico de Pernambuco (1994), uma área de 3.690,3 km², com uma população de 27.368 habitantes (estimativa do IBGE para 2006), com altitude que varia de 300 a 1.050m. A sede municipal se situa a 433 km de distância de Recife e apresenta as seguintes coordenadas geográficas: 8º36’ de latitude sul e 38º34’ de longitude oeste de Greenwich (FILHO; SILVA E LEITE, 2001, p. 2).
Os dados foram coletados através de várias técnicas de pesquisa, combinando fontes secundárias e primárias: pesquisa bibliográfica, jornalística, documental e a pesquisa de campo. Na pesquisa bibliográfica são utilizadas fontes secundárias, como livros e artigos científicos. Na jornalística, utilizam-se jornais da região de Pernambuco, a exemplo do Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco, e em âmbito nacional a Folha de São Paulo, além de material disponível on line, tanto pelos meios de imprensa, como pelos órgãos governamentais e não governamentais que estão vinculados ao objeto de estudo. Na pesquisa documental são utilizadas fontes primárias, como relatórios e documentos existentes em instituições como a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Pernambuco; e fontes secundárias, consultadas em sites do Governo Federal e da ONG KOINONIA, planos, programas, leis, decretos e dados estatísticos publicados pelo IBGE, Incra, Ipea.
O universo da pesquisa é composto por pequenos agricultores e trabalhadores rurais que cultivam maconha como atividade de subsistência nesse município, profissionais ou representantes de instituições que trabalham e conhecem tal problemática e de lideranças de movimentos sociais do campo.
O município escolhido como campo de pesquisa apresenta, de acordo com dados do IBGE, cerca de 1.190 estabelecimentos rurais, com área média de 109,59 ha; desses, 906 cultivam agricultura de subsistência – lavouras temporáriasv. Nesse universo existem 3.447 trabalhadores em atividade e que possuem laços de parentesco com o produtor, que usualmente é proprietário rural agropecuário, como também há 606 trabalhadores rurais sem nenhum laço de parentesco (relatório parcial do censo, 2007). Não foi possível quantificar quantas dessas unidades de produção rurais cultivam maconha e qual a área de terra especificamente utilizada para tal cultura.
Da mesma forma não foi possível quantificar quantos desses pequenos agricultores – proprietários ou arrendatários – e trabalhadores assalariados estão envolvidos com o cultivo da maconha, sendo a definição do próprio universo um desafio que permanece.
O tipo de amostragem utilizada para os técnicos e/ou gestores de órgãos do município e lideranças rurais a serem entrevistados é a não probabilística intencional, em função de sua representatividade e/ou envolvimento direto com o problema em foco. Para os pequenos agricultores e trabalhadores rurais, dados os limites de tempo para o trabalho de campo, a delicadeza do tema e a dispersão desse universo, o tipo de amostragem é a não probabilística acidental, preservando o critério de aleatoriedade. A amostra foi composta pela aplicação de um questionário on-line e 17 entrevistas: com um técnico do governo, um representante do governo, quatro lideranças de movimentos sociais, seis trabalhadores rurais e cinco pequenos agricultores - estes dois últimos envolvidos com o cultivo da maconha. Vale ressaltar que os nomes desses sujeitos sociais não são citados no trabalho para garantir o sigilo dos entrevistados. Inclusive, registra-se a dificuldade de acesso aos pequenos produtores e trabalhadores rurais, que impuseram ressalvas para que as entrevistas fossem realizadas, como a escolha de lugares estratégicos sem iluminação e de difícil acesso.
As entrevistas foram realizadas com base em um roteiro com questões abertas (ver apêndice), no qual se considerou a linguagem verbal e não verbal. A pesquisa primária foi complementada pela observação assistemática não participante no município de Floresta durante 17 dias, e pela observação participante do Fórum Territorial de Itaparica no dia 12 de dezembro de 2008.
Para o processo de análise qualitativa das informações coletadas foram definidas algumas categorias, com base nos dados apresentados pelos sujeitos entrevistados: Estado e Políticas Públicas, Lutas e Perspectivas, Maconha como meio de trabalho e vida, Maconha como um produto rentável, Maconha e dificuldades dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores, Políticas Alternativas de Desenvolvimento, Região e Território, Renda e Condições de Vida e Violência e repressão. Essas são trabalhadas em todo o corpo do estudo.
Dessa forma, tornou-se possível relacionar os dados coletados com as categorias definidas a partir do referencial teórico, procurando verificar a confirmação ou refutação das hipóteses e se os objetivos traçados neste estudo foram alcançados.
Para dar conta do tema escolhido, a partir da análise dos depoimentos dos entrevistados e dos planos governamentais instituídos para a região delimitada pela pesquisa, interligando-a com o debate teórico trazido pelos diversos autores, o desenvolvimento deste trabalho foi dividido em dois capítulos. No primeiro, intitulado Realidade ou condições de trabalho e de vida dos trabalhadores rurais e pequenos agricultores que cultivam maconha como atividade de subsistência nos “novos sertões”, é feita uma breve explanação sobre a proibição do uso, tráfico e cultivo da maconha no Brasil e analisadas as condições de vida dos pequenos agricultores e trabalhadores rurais antes e após do cultivo da maconha, esta como um produto de mercado organizado e comercial caracterizado como “Velhas Secas em Novos Sertões”, bem como as problemáticas advindas desse contexto, a análise destes sujeitos que vêem a maconha como meio de trabalho e vida e o aumento da violência da região, em decorrência das implicações legais e sociais desta lavoura.
No segundo capítulo, com o título Reflexão sobre as propostas de intervenção do Estado: uma análise das políticas públicas de desenvolvimento rural como alternativas ao cultivo da maconha na região de Floresta-PE é abordado o debate conceitual sobre desenvolvimento econômico, humano e sustentável, apresentando o novo paradigma de desenvolvimento, o sustentável; a análise das políticas públicas de desenvolvimento regional como alternativas ao cultivo da maconha no Submédio São Francisco, enfocando suas características históricas e geográficas; as principais propostas de desenvolvimento econômico e humano para a região, tratadas no Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do governo FHC e a problemática da maconha no mesmo; Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Território Rural de Itaparica criado no governo Lula, os eixos para o desenvolvimento territorial nas dimensões econômico, social e sustentável e as alternativas que este estabelece contribuindo para os pequenos produtores e trabalhadores rurais envolvidos com o narcoplantio substituírem esta atividade. Depois da reunião de todas as informações e argumentos, foram feitas as considerações finaisvi.
CAPÍTULO I
REALIDADE OU CONDIÇÕES DE TRABALHO E DE VIDA DOS TRABALHADORES RURAIS E PEQUENOS AGRICULTORES QUE CULTIVAM MACONHA COMO ATIVIDADE DE SUBSISTÊNCIA NOS “NOVOS SERTÕES”
1.1 Maconha: produto proibido
A maconha é uma das plantas proibidas mais consumidas no mundo atualmente, também é uma das mais antigas cultivadas pelo homem. Segundo registros há quase dez mil anos pessoas da Ásia e África a consomem para fins medicinais, por suas propriedades psicoativas e nutricionais, como também para utilidades têxteis. Todavia, a partir do início do século XX, o ato de fumar a planta se prolifera em diversos países da Europa e das Américas, isto é, transforma-se num fenômeno de massa muito associado à sociedade capitalista de consumo.
As primeiras leis para proibição do cultivo da maconha no Brasil demarcam o período de 1830, porém essas não obtêm qualquer repercussão. O interessante é que até meados de 1917 os produtos derivados da cannabis sativa são comercializados por farmacêuticos e tabaqueiros, como também por médicos que a utilizam para fins medicinais até 1930, além de esta ser consumida durante rituais ou cerimônias religiosas de origem africana e indígena, bem como em reuniões de determinados grupos sociais. A maioria dos cultivos existentes é de pequena escala, restringindo-se o uso ao consumo pessoal.
Apenas no início do século XX, com o aumento da urbanização, é que o uso da maconha cresce consideravelmente nas zonas urbanas; daí passa a ser configurado como um problema social e uma preocupação para o Estado.
A primeira providência tomada pelo governo brasileiro é a reprodução das ações repressivas adotadas nos Estados Unidos (EUA). Nesse momento, a repressão ao uso da cannabis ganha força, isto em razão de um representante brasileiro na reunião da Liga das Nações em 1924, comparar os perigos do uso da maconha com o do ópio (SÉRIO VIDAL, 2008, p. 2).
Em 1921, as autoridades brasileiras que lidavam com as questões das drogas se alinharam às posições repressivas dos EUA, seu principal aliado comercial e político, aderindo aos acordos firmados na reunião da Liga das Nações Unidas através da aprovação da Lei Federal nº 4.294 que “estabelecia medidas penais rígidas para os vendedores ilegais, fortalecia a polícia sanitária nas suas prerrogativas e reafirmava a restrição do uso legal de substâncias psicoativas para fins terapêuticos” (VIDAL, 2008, p. 2).
Depois de vários incentivos para a produção comercial da maconha para fins têxteis e de ter sido ser permitido o seu uso nas regiões Norte e Nordeste, em 1932 com o Decreto lei Nº 20.930, essa passa a ser uma planta proibida no Brasil.
Desde então se estabelece no país as primeiras ações de repressão e controle das substâncias psicoativas. Essa lei também prevê prisão para os traficantes, enquanto os usuários são vistos como doentes que necessitam de tratamento.
Esse fato induz as autoridades brasileiras a incluir a maconha como “substância proibida no país e a promoção de uma campanha para extinguir o seu cultivo e consumo”. No referido Decreto, “vender, ministrar, dar, trocar, ceder ou de qualquer modo, proporcionar substâncias entorpecentes, sem a devida autorização” se torna um crime inafiançável com pena prevista de um a cinco anos de prisão. O mesmo não apenas inclui a maconha na lista de substâncias proibidas, com a denominação de cannabis sativa, mas o seu uso é descrito como uma doença que necessita de internação, além de estabelecer pena de até nove meses para os usuários (VIDAL, 2008, p.2).
No governo de Getúlio Vargas, com a Constituição de 1934, o mesmo impõe o Decreto-lei nº 891 que reforça a severidade da punição para quem comercializa e consume maconha; a pena agora, é de quatro anos de detenção.
No entanto, 11 anos depois, estudos demonstravam que boa parte da população que tradicionalmente fazia uso da planta nessas regiões desconhecia a proibição e a maconha continuava sendo comercializada e consumida, principalmente entre as populações pobres, social e economicamente excluídas (VIDAL, 2008, p. 2).
Depois de 37 anos de instituição deste decreto, é na ditadura militar que esse é novamente reformulado pela Lei Nº 6.368, de forma a intensificar os castigos aos usuários, que recebem pena de seis meses a dois anos e quem for pego traficando, de três a quinze anos de prisão. Vidal (2008, p. 2) explica, “somente depois do início das operações de repressão na década de 1970, surgem os cultivos de grande-escala e o negócio passa a ser empreendido por pessoas também envolvidas com outros crimes”.
Na Convenção de 1988 [das Nações Unidas] as condutas de porte, aquisição e plantio para consumo pessoal são mencionadas, sugerindo que cada país signatário deva tratá-las respeitando os princípios constitucionais e conceitos básicos de cada sistema jurídico-legal e as especificidades de cada contexto (VIDAL, 2008, p. 4).
Prevê-se que os países que regulamentam em algum documento a proibição de consumo e comércio da maconha estabeleçam tais práticas como ofensas criminais, isto é, não são forçados a processar ou produzir penas de privação à liberdade, havendo a possibilidade de sancionar decisões fora da justiça criminal.
Em 2006, a questão das drogas é revista pela sanção da Lei nº 11.343, que no Art. 1º institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad. Nesta são previstas medidas para “prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crime” (Lei Nº 11.343, 23/08/2006). Apesar das inovações com a criação do Sisnad e de medidas de redução de danos, ao invés de criminalizar os usuários – como previa a Lei anterior supracitada - esta se mantém rígida quanto ao cultivo e tráfico de drogas, prevendo maiores ações de repressão e reclusão de 5 a 15 anos, mais multa de R$ 5.00 a R$ 1.500 reais.
Essa breve explanação sobre proibição e sanção para quem consome, trafica e cultiva maconha no Brasil é um dos referenciais teóricos que norteiam essa pesquisa de modo a caracterizar a complexidade e o grau de conflito impregnados nessa questão. Nos próximos tópicos refletimos sobre as razões que levaram os pequenos agricultores e trabalhadores rurais a sentirem-se marginalizados e abandonados pelo Estado e a começarem a cultivar maconha no município de Floresta (PE), inserido na região denominada pela mídia como “polígono da maconha”, devido à presença desses cultivos ilícitos em escala comercial, provocando sérias mudanças na estrutura econômica, social, política e cultural na região.
1.2 Dificuldades Econômicas: abrindo espaço para uma atividade ilícita
Como toda pequena cidade do sertão nordestino, Floresta é um município que tem raízes econômicas originadas da agropecuária em sentido amplo, tendo como atividades principais a pecuária, a agricultura de sequeiro e, em algumas áreas, a presença da agricultura irrigada. Na verdade a área do município em estudo localiza-se na região central do sertão de Pernambuco e se apresenta como um dos trechos mais secos do Nordeste.
Um dos destaques na agropecuária municipal é a pecuária de médio porte com uma produção média de 110.000 cabeças de caprinos, 40.000 cabeças de ovinos e 23.000 cabeças de bovinos (IBGE, censo agropecuário, 2007). Segundo um representante do governo municipal (entrevistado em setembro de 2008), “a criação de caprinos e ovinos é algo muito forte para a região”, contudo, enfrenta problemas em decorrência do clima típico, marcado pela escassez de chuvas. Esse contexto é dificultado por não serem, tais atividades, lucrativas o suficiente para garantir o sustento desses camponeses;
As médias pluviométricas anuais são muito baixas e concentradas, apresentando períodos secos anuais que oscilam de seis a dez meses. As precipitações, um pouco acima dos 400mm, se concentram no período mais quente do ano, no verão astronômico, quando a temperatura média diária é superior a 30ºC. As chuvas caídas, sobretudo nos meses de novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março, se estendem até abril e maio, fazendo com que haja um longo período seco de seis a oito meses – de abril ou maio a outubro ou novembro, conforme a estação (MANUEL CORREIA, 1982, p. 35).
Outra dificuldade deve-se também ao fato de a maior porção do município depender da agricultura de sequeirovii, que em geral é cultivada para subsistência, com predominância de plantios de feijão e milho (IBGE, censo agropecuário, 2007). Já a pecuária é conduzida de forma extensivaviii, possui baixos padrões tecnológicos, além de ser pouco rentável. Por ser dependente das variações climáticas, a agricultura é limitada pelo grande período de estiagem, que acentua grandemente o risco de perda de safra. Por conseguinte, essa situação econômica instável leva parte dos agricultores da região a se dedicarem a outras atividades econômicas ou resulta em esvaziamento do meio rural, “essa transferência de recursos humanos do meio rural para as zonas urbanas é fato preocupante e carente de soluções alternativas [...]” (FILHO; SILVA & LEITE, 2001, p.2). Os dados da Tabela 1 revelam esse processo.
Ano | Total hab | Urbana hab | Rural hab |
Floresta |
1970 | 28.163 | 6.013 | 22.150 |
1980 | 32.228 | 8.431 | 23.797 |
1990 | 21.158 | 11.592 | 9.566 |
1996 | 22.551 | 13.275 | 9.276 |
2006 | 27.368 | 22.035** | 5.333* |
Pernambuco |
1970 | 5.252.590 | 2.861.178 | 2.391.412 |
1980 | 6.242.933 | 3.862.943 | 2.379.990 |
1990 | 7.127.855 | 5.051.654 | 2.076.201 |
2006 | 8.485.386 | 7.220.954 | 1.264.432 |
Fonte: IBGE (1971, 1981, 1993, 2006).
* Dados encontrados a partir da soma do número de estabelecimentos agropecuários do município, mais número total de pessoas ocupadas na terra com laço de parentesco com o produtor e total de pessoas ocupadas sem laço de parentesco do produtor.
** Dados localizados pela subtração da população total prevista pelo IBGE para 2006, menos o soma dos dados supracitados.
Os dados da tabela 1 revelam o processo intenso de esvaziamento do meio rural que o município de Floresta tem sofrido nestes últimos cinquenta anos. Ao analisarmos os dados, proporcionalmente ao estado de Pernambuco, esse município possui um alto índice de migração, que demarca entre 1980 a 1996 uma queda da população total do município. Essa pode ter sido acentuada pela política energética do governo para a construção das hidrelétricas, que atingiu 757 famílias da zona rural do município (Oficina do São Francisco, 1992, p. 39), bem como a crise na economia rural local no mesmo ano e a deflagração das guerras de famílias, além das causas estruturais mencionadas por Arivaldo Sezyshta para todo o contexto da região Nordeste.
As causas desta migração nordestina estão, em primeiro lugar, na concentração de terra e nas mudanças nas relações de trabalho. As estiagens frequentes acabam assinalando a hora da partida, mas a cerca, muito mais que a seca, é que expulsa o pobre. Além disso, o desemprego e os salários irrisórios fazem com que jovens organizem sua vida sonhando com o Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília (SEZYSHTA, 2003, p. 36).
Outro tipo de agricultura na região é a irrigada, que se utiliza de melhor tecnologia, da qual os cultivos que mais se destacam são: melão, melancia, cebola e tomate (IBGE, censo agropecuário, 2007), que adquiriram certa relevância para a economia da região. A irrigação está diretamente associada ao latifúndio e ao agronegócio que produzem grandes implicações para o trabalhador da zona rural. Isto é confirmado pelo discurso de líderes de movimento social local,
[...] O melão tem se tornado forte para quem possui terra irrigada e a caprinocultura também, mas só pra quem tem muito dinheiro e terra. A questão da irrigação é boa, mas quando chega água por aqui acontece o que tá havendo em Petrolândia, o pescador não consegue mais vender seu peixe por um preço bom porque chega uma empresa grande para concorrer com ele. Então ele é obrigado a pescar pra vender seu pescado, de graça, para as empresas privadas. Se ele não vender vai morrer de fome [...]. É essa a situação. (Líder de movimento social, entrevistado em 03/09/2008).
Essa situação implica em grandes problemas sociais, como: pauperização, desemprego e exclusão social para o homem do campo, que tem seu histórico de vida baseado na pequena agricultura familiar, que não é forte o suficiente e nem recebe incentivos por parte do Estado para propiciar o mínimo de condições de vida para esses atores sociais. Para Iulianelli (2004, p.7), “um grande problema brasileiro, talvez o maior, é o alto grau de concentração de renda e o abismo da desigualdade social. No caso camponês, a isso se acrescenta à alta concentração fundiária”.
Em razão disto, é pertinente explanar sobre o entendimento dos entrevistados. Eles talvez não tenham condições de fazer uma leitura científica da realidade regional, mas numa perspectiva de senso comum – advinda da experiência do cotidiano – do homem que trabalha com a terra; esses sujeitos conhecem as dificuldades e potencialidades econômicas e humanas do município. Um trabalhador rural (entrevistado em setembro de 2008) faz essa análise, “O feijão é uma coisa boa de trabalhar, se o governo fizesse água pra nós [...]. Tendo a água as outras coisas é mais fácil [...]”.
Diante das características climáticas, geográficas, econômicas e produtivas do espaço rural deste município, expostas acima, conhecem-se as condições de vida dos pequenos produtores e trabalhadores rurais antes do início da grande produção de maconha e o porquê desta ter-se disseminado, explicando as razões desses sujeitos terem sido envolvidos por tal atividade ilícita, que provoca o agravamento dos problemas sociais estruturais.
1.3 “Velhas Secas em Novos Sertões” ix
O tráfico de drogas torna-se uma das atividades mais rentáveis do capitalismo contemporâneo. Tratando-se de um negócio lucrativo, passa a exercer certa influência não apenas na economia mundial, mas também nas locais. Fazendo o dinheiro circular, principalmente em cidades com pequeno fluxo econômico, como é o caso de Floresta (PE), como fonte produtiva.
Abstraindo a característica ilícita da maconha, segundo o raciocínio defendido por Gustavo Gomes (2001, p. 179), no livro “Velhas Secas em Novos Sertões” com o qual esse tópico faz um diálogo – como produto rentável do mercado é inegável que o dinheiro adquirido através do cultivo da cannabis sativa termina sendo investido em atividades legais. Com isso, aquece alguns mercados como da agricultura, pecuária e comércio local, conseguindo abrir ou manter alguns postos de trabalho, seja com o cultivo ou na ascensão do comércio. Isto significa dizer que, como resultado do lucro obtido pelos envolvidos no narcoplantio, há um fomento da economia local com a injeção de capital antes não existente, o que para o autor representa um aspecto positivo deste contexto. Esse aspecto econômico também é mostrado em reportagem do Jornal do Commercio de Recife (17/06/2001, p. 2), “as lojas ficavam lotadas com clientes de Mirandiba, Belém do São Francisco, Floresta e outras cidades do polígono, nos tempos em que o tráfico corria livre na região”.
É pertinente observar que Gomes desenvolve essa questão, mas não perde de vista a variável de que a maconha é responsável por vários problemas sociais e de saúde pública. O que também é ressaltado na fala de uma liderança de movimento social local “de forma geral prejudica toda a sociedade e quem planta termina cancelando seus princípios da sociabilidade” (entrevistado em setembro de 2008). Haja vista que apesar de trazer mais capital para o município, traz também as mazelas da questão social.
A observação deste autor em relação ao surgimento do cultivo da maconha como “nova” e moderna atividade econômica, no sertão pernambucano é que esse tem ganhado enormes proporções, de forma organizada como qualquer outra atividade mercantil lucrativa. Isto em razão da existência de recursos naturais – sol, facilidade de acesso à água pela proximidade com o Rio São Francisco, solo apropriado e localização geográfica – favoráveis a esse tipo de cultivox, destaca-se também o papel dos “empresários” – traficantes – que conhecem as vias de escoamento da produção, mas a principal razão, como já foi colocado anteriormente, é a “retração da produção agrícola” no sertão nordestino – que Gomes denomina de “velho sertão” referindo-se às atividades tradicionais. Este entendimento é corroborado por um dos líderes de movimentos sociais da região (entrevistado em setembro de 2008) quando afirma que dois fatores explicam o envolvimento desse homem, que lida no campo, com essa agricultura não tradicional: a falta de perspectiva de trabalho e a busca para adquirir algo rentável. Detecta-se um consenso na fala dos entrevistados de que o plantio da maconha revela-se uma atividade rentável.
Como já lhe disse anteriormente, quando eu plantava feijão, milho e mandioca, só dava pra comer. Uma roupa pros meninos eu não podia comprar se não o dinheiro não dava pra feira. A renda que ganho na roça de maconha é muito maior. Dá pra usar com a família e ainda sobra. (Pequeno agricultor, entrevistado em setembro de 2008).
Sobre as dimensões do setor, Gomes (2001, p. 188) diz que segundo o relato da Folha de São Paulo, cerca de 20 mil pessoas trabalham nas lavouras de maconha do Sertão de Pernambuco, de acordo com estimativas da Polícia Federal, publicadas pelo jornal. Dados do mesmo órgão demonstram que o Polígono chegou a produzir mais de mil toneladas de maconha.
Com essa produção de 1,5 mil toneladas, se o preço (líquido das despesas com insumos) de compra na região for de R$ 50 [cinquenta reais] o quilo, como informa a Folha, isso significa que, anualmente, é gerada e apropriada no local uma renda de R$75 milhões de reais. Como se pode facilmente admitir que uma parte, ainda que pequena, dos lucros da comercialização pertence a residentes no Polígono, será utilizado um valor de referência da ordem de R$100 milhões de reais como estimativa da renda gerada pela maconha e apropriada localmentexi. Ou, aceitando-se a estimativa de 20 mil trabalhadores envolvidos, R$5 mil reais anuais (R$417 mensais) ‘per capita’ (GOMES, 2001, p. 189).
De acordo com os entrevistados, mesmo esse valor que se perfaz com o cultivo da maconha mensalmente não sendo exato, é superior ao que estes atores sociais ganham trabalhando como assalariados rurais ou parceiros nas plantações tradicionais da região. Como estão adquirindo algum recurso, talvez considerem que devido à rentabilidade do produto, este seja um instrumento de melhoria econômica, já que o sertão, neste caso de Floresta, é conhecido também pelo grande contingente de pobreza, principalmente daqueles que vivem na zona rural.
Dessa forma, mesmo que o surgimento da maconha na região provoque muitos transtornos à população, que dela sobrevive, em geral eles ainda vislumbram essa forma de produção ilícita como uma alternativa de enfrentamento para os seus problemas econômicos e sociais. Como desabafa um pequeno produtor “O dinheiro que ganho com a maconha uso no mantimento de casa, calçado, roupa e comida, o trabalhador que entra nessa vida é pai de família que não tem dinheiro” (entrevistado em setembro de 2008).
Assim, Gomes traz a leitura de que o homem do campo sertanejo encontra uma nova forma de lidar com as adversidades climáticas e sociais, através de uma nova cultura agrícola que é o cultivo da maconha, uma produção com caráter empresarial, isto é, como uma organização similar às atividades lícitas do agronegócio. Apesar desse aspecto e do capital gerado por tal produção, o autor não desconsidera as consequências negativas no âmbito da saúde pública e da problemática social geradas por essa nova fonte de renda, como é percebida por este grupo social envolvido com o cultivo ilícito, que assegura a sua sobrevivência.
Mesmo em meio às adversidades que essa região possui, o autor analisa um empreendimento agrícola que obtém sucesso, demonstrando que os problemas climáticos recorrentes existentes na região não barram a possibilidade de desenvolvimento da mesma. Através de atividades lícitas poderiam promover estabilidade econômica e social, principalmente para o homem do campo, questionando: se a atividade ilícita obtém êxito, por que as lícitas estão fadadas ao fracasso?
1.4 A Cannabis sativa uma nova alternativa de trabalho e renda
Como já foi relatado anteriormente, a região de Floresta é uma área produtora de feijão, milho e outros cultivos tradicionais de sequeiro produzidos na maior parte apenas para a subsistência, ao lado de novos cultivos irrigados como melão e melancia. Mas, a partir de um escândalo financeiro que teve repercussão na imprensa da época – Escândalo da Mandioca – as operações de incentivo a créditos rurais feitas pelo Banco do Brasil no município são canceladas, havendo um impacto muito sério para os trabalhadores rurais, pequenos e médios produtores – esse último segmento de agricultores não é analisado nesse estudo –, o que provoca uma grande redução na produção agrícola, desencadeando o aumento do desemprego dos assalariados rurais e a penúria dos pequenos produtores que se tornam mão de obra disponível para o plantio da maconha, os primeiros enquanto assalariados informais e os segundos na condição de parceria – tendo o ganho proporcional ao valor da produção, quando não são obrigados a ceder as terras para o plantio ilícito.
Os entrevistados também enfatizam a importância do referido escândalo da mandioca, nome dado ao golpe aplicado no Banco do Brasil em meados dos anos 1980, em que produtores rurais, através de linhas de créditos, recebiam empréstimos para plantar mandioca, sendo depois descoberto haver mais dinheiro emprestado do que terras para o cultivo e nenhum pé de mandioca plantado.
Mas, conforme os depoimentos coletados, há outros fatores que chamam a atenção por favorecerem a expansão do cultivo da cannabis sativa: a violência da região, resultante do coronelismo, em que as guerras de família camuflam não só uma disputa política, mas a hegemonia dessa produção; a crise da cebola, que levou vários produtores à falência na década de 1990; e sobretudo a construção da barragem de Itaparica na década de 1980, desapropriando várias propriedades rurais e desalojando os pequenos agricultores.
Dois fatores atiçaram o abandono do povo da roça. Primeiro, a falta de emprego e a busca por arranjar algo rendoso. O segundo fator foi o efeito barragem, que desmontou o povo, mas não deu condições de trabalho. Esse povo [ficou] sem ter onde cultivar mais, porque foram retirados das suas terras para dar lugar a barragem. Depois demorou a construção das agrovilas, a juventude sem trabalho começou a produzir no tráfico (Líder de movimento social local, entrevistado em setembro de 2008).
Havendo um processo de desmonte conjuntural, consequentemente se deu uma grande queda na economia, precarização do trabalho, bem como vários postos de trabalhos, principalmente no meio rural do município, deixaram de existir. “É necessário considerar que, na maioria dos casos, o ingresso dos lavradores responde a uma questão de necessidade econômica” (IULIANELLI, 2004, p. 13). Essas razões conduzem os trabalhadores rurais e os pequenos agricultores a se relacionarem com outra forma de cultivo em ascensão, a maconha.
Vulneráveis, vêem no cultivo desta planta ilícita uma oportunidade de trabalho e vida, como demonstra o Relatório de Viagem do Conselho Estadual de Entorpecentes de Pernambuco CONEN/PE (maio de 1988) que já analisa a questão da “produção da cannabis sativa como cultura de subsistência”. Essas idéias são explicitadas na fala de um pequeno agricultor: “pra nós que precisamos, a plantação de maconha é uma forma de sair do sufoco eu e a família. Considero a maconha uma forma de trabalho, porque é dela que tiro o meu sustento e da família” (entrevista setembro de 2008).
Este entendimento, isto é, que o envolvimento desses homens do campo com a maconha é uma saída para a falta de oportunidade, de geração de emprego e renda em atividades lícitas, sobretudo a falta de apoio à pequena agricultura familiar, é consenso entre todos os entrevistados. Bem como que o dinheiro ganho com a atividade considerada ilícita é gasto para a subsistência deles e da família. Nesse sentido, “a atividade do plantio de maconha se torna, desse modo uma ação legítima, conquanto ilegal. A legitimidade é expressa nas afirmações dos lavradores, que indicam que eles se sentem humanizados pelo trabalho naquela lavoura” (IULIANELLI, 2004, p.13).
Apesar disso os produtores e trabalhadores entrevistados colocam um aspecto muito interessante, que as famílias não querem aceitar o dinheiro que eles ganham no plantio – não só por ser um produto proibido, mas pelo risco que eles passam. Contudo, por não terem outra fonte de renda, findam por ceder, aceitando-o e utilizando esse dinheiro para alimentação, vestuário, transporte e moradia. “Eu fiz assim, dividi uma parte pra despesas com roupa, comida e com o que precisasse; e comprei uma casa para morar, que eu não tinha. Se eu não tivesse plantado maconha nunca ia comprar uma casa” (Pequeno agricultor, entrevistado em setembro de 2008).
Outro aspecto que atrai esses trabalhadores rurais e pequenos agricultores a se ocuparem do cultivo da maconha são as garantias e vantagens oferecidas por quem financia o “narcoplantio”, que não são encontradas nas lavouras tradicionais, onde geralmente os trabalhadores rurais assalariados são contratados por proprietários de terra, mas sem carteira assinada; por isso, não têm boas condições de trabalho e não recebem benefícios – moradia, transporte, salário-mínimo e direito a plantio de subsistência. Um assalariado rural indignado desabafa, “trabalhava sem nenhuma condição, não tinha carteira assinada e nem tinha um salário certo” (entrevistado em setembro de 2008).
É verdade que na atual atividade também não há nenhuma garantia em termos de direitos trabalhistas, mas os financiadores do tráfico, quando aliciam os agricultores, oferecem-lhe diversas vantagens: arcam com os produtos necessários para a produção que dura de 3 a 4 meses: sementes, agrotóxico, adubos estrutura hídrica – constroem açudes, poços, cacimba ou desvio ilícito da água de canais, ou ainda carregam enormes galões de água para molhá-laxii –, segurança, armas e a garantia de um mercado consumidor para comercialização da produção. Além de dividirem o resultado da plantação, oferecem, em caso de prisão, pagamento de pensão às famílias e advogado. Alguns dos trabalhadores e produtores rurais expõem que esses incentivos são determinantes para eles se engajarem nessa atividade, arriscando-se.
Mas a principal questão considerada decisiva por todos os entrevistados é a renda obtida com o plantio da cannabis sativa. Onde o valor pago pela lida segundo eles chega a ser o dobro ou triplo do que eles recebem com a agricultura tradicional, ou seja, a diária de um trabalhador rural tradicional é aproximadamente R$ 15,00 reais, nos plantios ilícitos recebem até R$ 35,00 reais, além das vantagens relatadas acima.
O fato mais visível é que não existe divergência de opiniões quando essa atividade é analisada como um meio de vida: “pra nós que não têm dinheiro certo a maconha é um meio de vida. Quando eu me entendi no mundo já comecei a trabalhar com maconha” (Pequeno agricultor, entrevistado em setembro de 2008).
1.4.1 Os problemas impostos à sociedade e dificuldades enfrentadas pelos que sobrevivem dos cultivos ilícitos
Mesmo o cultivo da cannabis sativa sendo visto pelos trabalhadores rurais e pequenos agricultores como uma alternativa de trabalho e renda, é impossível não destacar que essa é permeada de sérias dificuldades, criando um tecido social contaminado por problemas físicos e sociais.
Entre os problemas físicos, é sabido que toda a sociedade sofre com as consequências advindas desse tipo de atividade, não apenas pelos malefícios que provoca a saúde humana na intensidade do seu usoxiii atual, aspecto que transcende ao foco deste trabalho.
Interessa ressaltar os problemas sociais decorrentes do fato da maconha ser um produto proibidoxiv no Brasil desde 1932, que vem sendo corroborado pelas leis posteriores. Atualmente tais sanções para restringir e reprimir o plantio e comércio não autorizado por parte do Estado são cada vez mais acionadasxv. Esse, como órgão regulador da ordem social, quando utiliza da coerção para punir aqueles que se envolvem com o narcoplantio – percebidos e tratados como corruptores da vida social – não leva em consideração o processo histórico que compreende os problemas sociais e econômicos ocasionados na região e que conduzem este grupo social para a atividade ilícita.
Dentre as dificuldades citadas pelos entrevistados, decorrentes do envolvimento com os plantios proibidos, é assinalado o isolamento no período da produção. Segundo Érika Macedo (2004, p.8), esse leva de três a quatro meses, morando debaixo de lonas pretas, com a alimentação precária, cozinhando em fogões improvisados de tijolos, dormindo no chão ou em redes; quando não precisam passar a noite acordados de vigília para não serem surpreendidos pela polícia, carregam enormes galões de água para molhá-la e caso fiquem doentes, não têm perspectiva de socorro.
O dinheiro que a gente ganha numa roça de maconha é muito maior que numa roça normal. Tem a dificuldade de ficar isolado, a perseguição policial, o medo de alguém entregar a roça ou arranjar uma rixa com um vizinho e o medo, né, que a gente tem de ser preso. (Trabalhador rural, entrevistado em setembro de 2008).
Além de serem visíveis as precárias condições de trabalho, o isolamento é muito relevante para o processo da produção, pois um local distante e sem acesso é fundamental para o sucesso do cultivo da cannabis sativa. Isto em razão de não ser conveniente a comunicação entre os que estão engajados na sua lavoura e o restante da sociedade, bem como por requerer dedicação integral – aos cuidados e à vigilância da roça. Essa dificuldade engloba um novo fato, a ausência do convívio familiar e social, onde as relações sociais são fragilizadas, deixando-os susceptíveis a novos padrões de comportamento e de uma nova maneira de ser pensar a realidade que o cerca.
Mas, como a gente tava falando, quem cultiva maconha, no período dos três meses pra tirar a roça se dedica integralmente à plantação até porque eles não podem sair das roças. São lugares escondidos, praticamente sem acesso. (Representante do governo local, entrevistado em setembro de 2008).
Mesmo passando por essas situações precárias, além de serem estigmatizados de traficantes, eles compreendem que é válido trabalhar com esse tipo de cultivo. Primeiro porque conseguem manter as suas necessidades básicas. Em segundo lugar, por adquirirem moradia e transporte, algo que, com os plantios tradicionais eles consideram que jamais obteriam.
Enquanto alguns avaliam que se envolver com o cultivo ilícito corresponde a um trabalho, outros discordam dizendo que se envolvem porque precisam sobreviver, mas não vale à pena. Porque se forem presos perdem não só a estrutura material que conseguiram, bem como a sua liberdade.
Outra dificuldade é a repressão mediante operações de erradicação da maconha, que é muito forte. Um trabalhador rural (entrevistado em setembro de 2008) revela ser o medo da prisão e da morte um problema que o faz viver assustado. “Há muita violência da parte da policia, a coisa não é fácil. Por isso, tenho medo, se não tiver cuidado você é preso ou morre.”
Este temor da morte, que pode vir pelas mãos da própria polícia, conforme fala de um dos entrevistados, e da perda da liberdade como forma de sanção por parte do Estado não é percebida apenas pelos atores sociais. Também o é pelos profissionais que analisam essa realidade, como expressa Iulianelli,
O fato é que entre 1997 e 1999, durante e após a Operação Mandacaru e a Operação Asa Branca, a taxa de homicídios nas cidades da região aumentou. A situação da cidade de Floresta é paradigmática. Nessa cidade, os homicídios de homens aumentaram dentro do período citado, e a diminuição das taxas desses homicídios, naquela cidade, no período seguinte, implicou no aumento das mesmas taxas no entorno (IULIANELLI, 2004, p. 13).
A repressão, o medo da violência tem dois lados. Esses trabalhadores e pequenos agricultores rurais, também temem a violência que os próprios financiadores dos plantios interditos podem praticar contra eles, na forma de agressão física, que pode chegar a óbito. Tal violência visa pressionar esses camponeses e trabalhadores rurais para que mantenham em sigilo os plantios e suas localizações, de forma a minimizar os riscos de a polícia vir a descobri-los.
As dificuldades que passam é o medo pela situação que vivem. A repressão da polícia e o próprio pessoal que coloca a roça também pressionam quem tá plantando para ninguém saber sobre a roça. O que aconteceu com alguém que saía da roça? É morte se a roça for pega, porque vão achar que foi ele que dedurou. É uma vida de cão sem sossego (Trabalhador rural, entrevistado em setembro de 2008).
Analisando ainda as dificuldades sociais, os cultivadores dessa planta proibida ainda sofrem com os lastros morais, ou seja, com o preconceito que os marginalizam, tornando-os invisíveis para o Estado, para os organismos que representam as lutas dos trabalhadores rurais e camponeses e para a sociedade em geral.
Tal omissão por parte dos representantes governamentais reforça a visão capitalista de não intervenção do Estado na problemática social, o que é inerente ao pensar neoliberal.
Não tenho idéia. Não conheço ninguém que planta maconha por aqui, ninguém planta mais. Você não escuta que a polícia achou mais maconha aqui e se escutar é porque a polícia aumenta para fazer uma grande notícia. (Técnico do governo, entrevistado em setembro 2008).
Esse processo de exclusão e indiferença só aumenta a possibilidade desses plantadores serem aliciados para o mundo do crime, que transcende o cultivo, passando a praticar delitos que antes lhes eram inconcebíveis, a fim de atender às exigências do seu novo universo social. Um exemplo disto são os assaltos que ocorrem nas rodovias do sertão pernambucano que, em sua maioria, são efetuados pelos plantadores a fim de sustentar este sistema ou ressarcir os prejuízos advindos das roças descobertas pela polícia. Esta realidade é retratada pelo Jornal do Commercio na reportagem “População teme ocupar terras”, publicada em 2001, que faz menção a “oito assaltos nas BRs 116 e 428 que foram registrados apenas de terça a domingo da semana passada. As autoridades atribuem à nova onda de violência nas estradas a escassez da maconha na região” (18/03/2001, p.2). Tal escassez é decorrente da política de repressão do Estado a este produto.
Segundo a explanação de um representante do governo local (entrevistado, em setembro de 2008), “essa também é uma situação difícil para a região, porque causa a marginalização da mesma, fazendo com que os investimentos não cheguem à região e todo mundo ache que aqui só tem droga [...]”.
O processo de envolvimento destes pequenos produtores e trabalhadores rurais com o narcoplantio não os define como traficantes, tendo em vista que a prática desses com o laboro da maconha não perpassa todo o seu ofício de lidar com a terra, pois na maior parte do tempo estão envolvidos com cultivos tradicionais, como os demais camponeses ou trabalhadores assalariados. Esses sujeitos, na verdade, são homens de uma região onde os valores são refletidos na sua própria maneira de ser e agir. Valores estes que são transgredidos a partir do momento em que tais sujeitos se inserem nesta modalidade de produção rural, prevalecendo a necessidade de sobrevivência de si e da família.
Eu vejo que o trabalhador e o pequeno agricultor se desfazem dos seus valores e da sua cultura para entrar na realidade do cultivo. É uma coisa difícil, nos anos de 1996 e 1997, quando tinha muita gente aqui plantando e a polícia pegava roça e mais roça. Eu dei uma entrevista à revista Veja, porque era presidente de uma associação dos trabalhadores rurais e disse: que só planta maconha quem não é da roça. Hoje eu vejo diferente: era o homem da roça mesmo que achavam que iam ganhar dinheiro que daria pra viver, mas viram que a coisa é muito difícil (Líder de movimento social local, entrevistado em setembro de 2008).
Outra liderança de movimentos sociais considera como sendo a maior implicação deste contexto o cancelamento dos princípios de sociabilidade por parte dos sujeitos, permitindo que se desconheçam e passem a praticar ações que não condizem com os seus valores tradicionais, “para quem não tem como se virar a maconha é uma forma de garantir a vida. Para a sociedade se a pessoa tem outro meio de viver ela não precisa se envolver com a maconha porque sofre muito” (trabalhador rural, entrevista setembro de 2008),
Depreende-se do que está explanado acima que o Estado, por ser ausente diante de tão grave situação, torna-se incapaz de viabilizar o desenvolvimento econômico e humano para a região. Com isto viola os direitos de cidadania dos sertanejos que vivem no campo, tornando-os susceptíveis a influências prejudiciais a si próprios e à dinâmica social e cultural da sociedade. Essa violação da cidadania por quem tem obrigação constitucional de assegurá-la retrata a marginalização estatal secular e os conduzem à marginalização social quando se inserem no cultivo da cannabis.
1.5 Violência como processo e resultado da política repressiva
Pesquisas demonstram que a violência na região de Floresta remete a fatores históricos, econômicos, sociais e culturais. Estes foram enraizados ao longo do tempo através da cultura do coronelismo, das disputas políticas entre famílias, do abandono do Estado, do cultivo e tráfico da maconha e da repressão policial. As palavras de uma liderança local exprimem claramente essa realidade:
[...] A violência deixada do coronelismo da própria família, ou seja, do comandante da família, como também da disputa política. Outro tipo de violência é o abandono do Estado, que termina gerando a verdadeira violência; e a violência policial vem fortalecer toda essa violência, através de abordagens sem sentido, provoca também a evasão do homem do campo. (Líder de movimento social local, entrevistado em setembro de 2008).
O coronelismo está vinculado à questão do poder dos coronéis sem farda, presente no interior do Brasil, incluindo o sertão pernambucano. Tal poder é manifestado por meio de uma cultura agressiva e moralista. Nas pequenas cidades nordestinas estes coronéis criavam e delegavam leis condizentes com as suas vontades e necessidades, manipulando a situação política de acordo com os seus interesses e de seus pares, gerando uma exclusão daqueles que não faziam parte do seu grupo social, principalmente dos sujeitos ligados à terra, com os quais estabelece uma relação de clientelismo.
Há, também, uma prevalência do uso da força, por meio da violência, quando se trata de fazer valer os interesses dos coronéis. Estes últimos não resistem à evolução da história, porém os métodos utilizados pelos mesmos perpassam os tempos, mostrando-se para a população como algo imperativo, que deve ser respeitado e seguido a qualquer custo. “A violência está relacionada a fatores históricos do próprio machismo do povo do sertão” (Trabalhador assalariado, entrevistado em setembro de 2008).
Para um dos técnicos do governo, a violência é agravada em decorrência das guerras de famílias existentes, inicialmente, em função da disputa pelo poder político do município e por questões de honra; o que agrava ainda mais a questão e, por muitos anos, faz com que a cidade permaneça em situação de calamidade pública, resultando em famílias inteiras dizimadas ou na migração dessas para outras regiões. Atualmente, a partir da inclusão da maconha como produto cultivável na região, a violência encontra outra razão para se manifestar tendo como instrumento seus atores sociais, como vítimas e como agentes.
Um dos fatores mais citados pelos entrevistados como responsável pelo aumento da violência na região é a inoperância do Estado que, durante anos, se esquiva de gerar quaisquer condições para mudar a realidade financeira e humana do município, mesmo sabendo das difíceis condições de vida no sertão nordestino. Este entendimento é endossado por Iulianelli, que afirma serem os camponeses “cada vez mais objeto de uma ausência de política pública”, chegando a se referir à previsão feita por Pedro Malan de que a zona rural brasileira terá sua população reduzida a 5% em 2013, e utilizava esse dado como justificativa para o não investimento do Estado em políticas públicas para o pequeno agricultor.
Essa indiferença das autoridades governamentais culmina na fragilidade econômica dessa região, que não consolida seu desenvolvimento econômico fundiário na agricultura camponesa, apesar da área média das propriedades serem pouco mais de 100 hectares. Isso deixa o espaço aberto a novas atividades produtivas, a exemplo do cultivo da maconha, e este se torna mais um ingrediente para o crescimento da violência. Este quadro social abre espaço para a inserção dos grandes financiadores do cultivo e tráfico, que surgem como um novo elemento nesta dinâmica econômica e social e que traz as soluções que são esperadas da parte do Estado e não vingam que são as condições de trabalho e sobrevivência para os homens do campo. Porém, atrelado à sua presença, como mencionado acima, há um aumento da violência já existente na região, tanto por parte dos mesmos como da polícia.
O Estado, que sempre esteve insensível quanto à constituição de cidadania, quando percebe que o controle do município está nas mãos dos financiadores do plantio da maconha utiliza-se da reordenação política e da coerção social para acabar com a atividade proibida. É interessante pontuar que a tentativa de dar fim ao cultivo da maconha através da repressão, sem gerar políticas para o desenvolvimento econômico, social e sustentável da região, tem aumentado os problemas financeiros e sociais vivenciados pelos trabalhadores e pequenos agricultores rurais do município. O Estado termina por não obter êxito na erradicação do cultivo, pois suas ações são quase exclusivamente de caráter policial e, de acordo com Iulianelli (2004), não há ações no sentido de educar, promover a saúde ou propiciar o fomento financeiro da região. Tal realidade é percebida no discurso de um trabalhador rural (entrevistado em setembro de 2008): “Acho que esse aumento da violência pode tá ligado ao aumento da polícia, tem um monte de grupo de operações para prender o povo, só não chega investimento para o homem do campo”.
Endossando o pensar dos atores sociais e do referido autor quanto a esta temática, focando na violência policial direcionada aos envolvidos na cultura da maconha, Ana Maria Mota Ribeiro diz,
As ações de repressão às drogas, trazidas pelo Estado à região se auto-apresentam para a população local através da figura de um Estado pesado e lento, sem estrutura ou orçamento, sem condições materiais. Um Estado – que apesar de lento, mantém-se posicionado no paradigma “proibicionista” [...] (RIBEIRO, 2006, p. 4).
A forma de combate ao cultivo da cannabis sativa praticada pelo órgão repressor do estado – Polícias Militar e Federal –, desencadeia novas problemáticas sociais, que surgem como processo e resultado dos métodos abusivos utilizados pelas mesmas. Estes se configuram em agressões físicas e psicossociais, cujo alvo não se restringe apenas à figura dos sujeitos envolvidos nos cultivos, mas também a população em geral e principalmente os jovens.
Se Floresta é violenta! Às vezes, quem vive nesse movimento tem seu acerto de conta com quem tá no meio. E a polícia, que tem abusado, sabe o que eles dizem por aqui? Papai faz, mamãe cria e nós mata. E já ouvi várias histórias de judiação que eles fazem com o povo pelas estradas e nesses povoados aí pra dentro (Líder de movimento social local, setembro de 2008).
Como já foi dito no tópico anterior, esses atores sociais também são vítimas de violência por parte dos financiadores do plantio da maconha “empregadores”, de forma punitiva, visando impedir que esses trabalhadores rurais e pequenos agricultores abandonem esse meio, evitando que os plantios sejam descobertos ou ainda por questões pessoais.
O policiamento, que é muito forte e utiliza da sua força para intimidar o pessoal que tá na roça plantando e a população que não tem nada a ver, mas quanto a quem financia eles nem mesmo investigam. As pessoas que botam a roça, os que pagam por ela, como já disse eles também utilizam da violência para proteger suas roças de maconha (Liderança social local, entrevistado em setembro de 2008).
Essa questão não é algo dissociado do abandono do Estado, pelo contrário, apenas reforça. Pois, quando não existe um governo garantindo proteção social e econômica à sociedade, outros organismos se instalam gerando modificações nos ambientes e aumento dos problemas sociais.
Confirma-se, com todos os fatos elencados, que o cultivo da maconha surge na região como um recurso de trabalho para esses homens do campo. Entretanto, a entrada nesta atividade ilícita implica no surgimento de novas problemáticas, a exemplo do porte de armas hoje ilegal - tráfico de armas – e outras atividades ligadas à marginalidade, como assaltos, e até mortes para “queima de arquivo” ou por encomenda. Trabalhadores rurais e pequenos agricultores de cultura de subsistência não apenas sofrem violência dos traficantes e polícia, mas passam a praticar atividades ilegais, gerando um ciclo de violência aleatória não reconhecido pelo Estado.
Se o Estado realmente tivesse interesse em acabar com a maconha, com os recursos que existem ele já teria extinto. Mas ele é conivente com a questão do cultivo, não adianta a repressão. Precisava-se realmente é de um plano de trabalho e de desenvolvimento de políticas públicas para o homem do campo (Líder de movimento social local, entrevistado em setembro de 2008).
Paralelo à atuação repressiva, que caracteriza a política antidrogas, o Estado precisa fazer-se presente com ações que resgatem os valores afrouxados pela realidade das drogas, enquanto fonte de renda. Isto com políticas públicas norteadas pelo respeito à dignidade humana, asseguradas constitucionalmente. Isto é, que a ação policial não venha imbuída de agressão física aos pequenos agricultores e trabalhadores rurais e aos seus familiares, propondo e implementando ao invés disso alternativas legais de renda.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AGROMESF – Agência Regional de Agronegócios Familiares do Submédio São Francisco
APPs – Áreas de Preservação Permanente
ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural
CAPS – Centro de Apoio Psicossocial
CINDESF – Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento Sustentável do Submédio São Francisco
CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco
CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco
CONEN/PE – Conselho Estadual de Entorpecentes de Pernambuco
CONSAD - Consórcios de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra a Seca
FAO – Projeto de Cooperação Técnica da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura
GPCA – Gerência de Policiamento de Crianças e Adolescentes
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFOCS – Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas
IOCS - Inspetoria de Obras Contra as Secas
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
PAA – Programa de Aquisição de Alimentos
PDM – Plano de Desenvolvimento Municipal
PDRSMSF – Plano de Desenvolvimento Rural Sustentável do Submédio São Francisco
PDSTR – Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PRONAF – Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PRONAT – Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais
PROTER – Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais
PSF – Programa da Saúde da Família
PTDRS – Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável
PTDRSTI - Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável do Território de Itaparica
SAF – Secretaria da Agricultura Familiar
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SDT – Secretaria de Desenvolvimento Territorial
SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
SMSF – Submédio São Francisco
SRA – Secretaria Regional do Ambiente
UOD – Unidade de Observação e Demonstração
UNDCP – United Nations Office on Drugs and Crime
i A estrutura do texto foi mantida a íntegra.
ii Filósofo, pesquisador da CAPES, professor de Filosofia da Educação na Estácio de Sá, coordenador do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço.
iii O Polígono da Maconha é formado por um quadrilátero imaginário que liga as cidades de Caraibeiras, Salgueiro, Ouricuri e Petrolândia, tendo como limite o Rio São Francisco. Este é território de Pernambuco, embora o plantio da maconha também ocorra nos estados da Bahia e do Ceará, que, por razões pouco claras, raramente são referidos nas reportagens policiais sobre o assunto. Os municípios onde há maior concentração da produção são Floresta, Cabrobó, Orocó, Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu, Petrolândia, Itacuruba, Caraibeiras, Lagoa Grande, Carnaubeira e a região indígena de Uma. A maioria desses municípios faz parte do Submédio São Francisco, que abrange algumas cidades da Bahia e Pernambuco, além de fazer fronteira com os estados de Sergipe e Alagoas. As estradas que dão acesso a esses estados são utilizadas pelos traficantes para escoamento da produção, como também estes são considerados áreas de tráfico da maconha.
iv Por camponês compreendem-se pequenos agricultores familiares que, com a ajuda de equipamentos simples, produzem para o seu próprio consumo, com venda eventual da produção de excedentes.
v As lavouras temporárias são totalmente colhidas em poucos meses. Precisam ser replantadas no ano agrícola seguinte; típicas do sertão nordestino são o milho e o feijão, mas nesse conjunto também se cultiva a planta da maconha, que é uma lavoura temporária.
vi Nesta edição do Boletim Drogas e Violência no Campo será publicado apenas o capítulo I. Na próxima edição publicaremos o Capítulo II [nota do editor]
vii Nas áreas secas, dependente da chuva para o crescimento das plantas cultivadas.
viii Criação de gado em grandes extensões de terras, sem grandes recursos tecnológicos.
ix Referência direta ao título do livro de Gustavo Maia Gomes, de 2001, utilizado como referencial teórico deste tópico.
x De acordo com relatório da Assessoria de Comunicação Social da Polícia Militar de Pernambuco. A maconha necessita de muita luz, uma característica típica do clima do sertão; e água, facilitada pela proximidade com o Rio São Francisco para a irrigação. Quando a área da plantação fica no sequeiro os “grandes produtores” furtam água das tubulações que abastecem as cidades.
xi Pode se aceitar o cálculo como renda gerada no local (valor da produção). Mas, dificilmente essa renda é apropriada localmente.
xii Existe a maconha irrigada nos reassentamentos da barragem de Itaparica e de sequeiro. O sistema de irrigação varia enormemente do ponto de vista tecnológico, desde os convencionais em larga escala aos rudimentares em pequena escala.
xiii A relação entre maconha e saúde humana gera controvérsias. Como foi referido no tópico “Maconha: produto proibido”, de início não se relacionava a planta a agravos a saúde, ao contrário tinha caráter de medicamento.
xiv Também foge dos objetivos deste trabalho entrar no debate a favor ou contra essa condição de legalidade, mas apenas mencioná-lo; bem como que nos países desenvolvidos há distintas decisões jurídicas a respeito, sendo o caso favorável mais conhecido de liberação o da Holanda.
xv A exemplo da criação da delegacia permanente da Polícia Federal instalada no município de Salgueiro (PE), a aproximadamente 200 km do município de Floresta.