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Las diablas e a disputa por hegemonia no movimento cocalero peruano – um olhar externo
Por: Jorge Atílio Silva Iulianelli
Data: 27/03/2002


De antemão, peço excusas aos grandes especialistas: Ricardo Soberón, Roger Rumril, Baldomero Cáceres e Hugo Cabiezes, por ousar escrever essas notas. Porém, creio que um olhar externo sempre traz alguma outra leitura. Mesmo assim, recomendo aos leitores que busquem as análises desses autores sobre o que se passa agora no Peru. Eles são especialistas da primeira hora e tem muitas informações precisas sobre os processos. As notas que seguem são apenas uma reflexão sobre a questão das relações de poder e da construção da democracia na América Latina. Faço alguns comentários sobre o modo pelo qual se organizaram os cocaleros peruanos nos últimos anos.

A situação peruana em relação à produção de coca é bastante peculiar. Primeiramente, o Peru foi o centro do Império Andino. Nesse Império a produção da folha de coca e seu consumo foram base da expansão territorial e das alianças políticas que os incas estabeleceram. Mamacoca era uma deusa. O cultivo da coca faz parte do patrimônio cultural e de uma das atividades laborais mais importantes das famílias camponesas peruana, no Cuzco ou nos arredores de Lima, o plantio da coca é um elemento pertinente a vida, aos hábitos culturais, ao modo de produção desses povos. Também por isso, em atendimento a um precedente da Convenção Internacional sobre Drogas, de 1961, a coca pode ser produzida como ingrediente aromático de bebidas. Essa é uma das razões de existência da Enaco, a Empresa Nacional de Coca, do Peru, que adquire os produtos dos cultivos lícitos e os exporta, em grande parte para as empresas vinculadas à Coca Cola.

A Enaco foi criada em 1978. Ela é a única firma no Peru que é autorizada pelo governo a comprar e transformar industrialmente a folha de coca. Porém, o Peru é o segundo maior produtor de cocaína na América Latina, segundo o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes  (UNDOC). Essa condição faz com que o governo peruano, em atenção às Convenções Internacionais Anti-Drogas, estabeleça políticas de combate ao cultivo da coca, à sua transformação em cocaína e à sua comercialização. Ora, isso coloca em risco as atividades dos camponeses tradicionais. Deixa‑os sem alternativas econômicas e reféns de ações arbitrárias por parte dos agentes governamentais, muitas vezes em desrespeito aos direitos humanos fundamentais.

Essa situação contraditória foi um dos elementos que favoreceu e fortaleceu a construção de organizações cocaleras. Dentre as quais a Confederación de Productores Agropecuarios de las Cuencas Cocaleras (Conpaccp), que reunia cocaleras e cocaleros da região de Tingo Maria e adjacências. Esses cocaleros eram coordenados por Nelson Palomino, que era dirigente daquela organização. Palomino foi detido pela polícia peruana, permaneceu incomunicável, sofreu agravos à saúde, até bem recentemente, nos anos de 1999. Nesse período despontaram duas lideranças, duas mulheres, que passaram a coordenar a Conpaccp, Nancy Obregón e Elsa Malpartida, que defendiam os direitos de cocaleras e cocaleros em plantar a coca, e em fazer uso tradicional e industrial da coca, como na transformação em folhas de chá, biscoitos ou outros produtos comestíveis.

Até 2003 Nancy e Elza seguiam em defesa de Palomino e dos demais produtores de coca. De tal forma que a liderança delas ampliou o espaço dos movimentos cocaleros na mídia peruana, e mais espaço na política partidária no país. Nancy e Elza passaram a integrar o Partido Nacionalista Peruano. Pouco antes de concorrer ao Congresso, Nancy Obregón fora condenada a prisão, injustamente, por coordenar ações de protesto de cocaleros da região de Tingo Maria. Após terem sido eleitas, Nancy e Elsa passaram a cumprir importantes papéis no Legislativo. Elsa é representante peruana no Parlamento Andino. Essa situação iniciou a provocar um mal-estar entre as lideranças cocaleras no país.

Efetivamente, Nelson Palomino foi libertado. Após sua libertação iniciou a avaliar o comportamento político de Nancy e Elsa  como incongruentes com os interesses das cocaleras e cocaleros, em especial por não se oporem ainda com mais rigor, segundo ele, às ações de erradicação de cultivos do governo. Entretanto, em 2003, o Ministério Público peruano litigou contra Nancy e Elsa justamente por incitarem os camponeses cocaleros contra as ações de erradicação de cultivos de coca. Ademais, atualmente, desde o ano passado, a disputa por hegemonia entre as lideranças cocaleras tem levado a um descalabro de discursos acusatórios de ambos os lados.

O resultado dessa divisão no interior do próprio movimento cocalero é, por certo, o enfraquecimento das demandas do movimento ante a opinião pública peruana, internacional, e ante o governo peruano. Além disso, isso tem aberto espaço para que o Ministério Público peruano reabra processos contra as parlamentares, que ainda estão preservadas pela imunidade parlamentar. De qualquer modo, é importante notar como um movimento cocalero, que conseguiu lograr espaço dentro do poder público, enfraquece sua capacidade de intervenção na medida em que mantém disputas intestinas sem maior profundidade sobre as conquistas que necessitam ainda alcançar

As possibilidades de questionamento à política de drogas peruanas, de aproximação das discussões que são travadas pelo governo boliviano ficam perdidas. Bem como, por exemplo, um claro distanciamento do tom da guerra às drogas, propugnado por Washington como a única política possível no campo das drogas, para o subcontinente latino-americano, deixa de ser viável. É necessário compreender que se precisa ainda de um esforço muito mais concertado para poder se fazer uma proposta alternativa de política de drogas para a América Latina. O marco proibicionista termina por deixar que situações como essa, do Peru, apenas o reforce. Nesse sentido é um erro estratégico uma disputa vazia por hegemonia no movimento dos cocaleros peruanos. Porém, não é fácil estabelecer consensos em espaços sociais para os quais o jogo democrático é ainda um artifício pouco experimentado.