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VOZES DE ALERTA SOBRE A CRISE...
Ano 9 - Nº 28
Junho de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
E se a Criação perguntasse: até quando Senhor?
Data: 03/06/2015

A comunidade de homens e mulheres que se quer cristã é uma comunidade interpretadora da via e não do mercado. Pelo simples fato de apontar Jesus de Nazaré como o seu referencial de sentido, essa comunidade já está inserida na ação de Deus no mundo.
Zwinglio Dias

Jorge Atilio Silva Iulianelli

Resumo: Este ensaio aborda as ações sociais e políticas das comunidades religiosas em função da caracterização da ação antrópica como causa das mudanças climáticas. Faz um conjunto de conexões metafóricas sobre a cosmologia da dominação, que sustenta epistemologicamente os comportamentos governamentais, dos Conglomerados Transnacionais, de grupos e pessoas, que cumulativamente afirmam a possibilidade do crescimento socioeconômico infinito. Este modelo de desenvolvimento termina por ser alienador do trabalho humano, destruidor do meio ambiente e, no limite, autodestrutivo. Em segundo lugar, argumenta que é possível uma outra perspectiva, desde uma cosmologia emancipatória, que alimenta a ação humana cuidadosa, do cuidado-de-si e com toda a Criação. A partir da metáfora cristã, analisa os discursos ecumênicos que sugerem a possibilidade de ações alternativas diante do desastre anunciado e comprovado pelos efeitos danosos que o modelo de desenvolvimento do capitalismo financeirizado, do sociometabolismo capitalista do capital, traz ao provocar a aceleração do aquecimento global. Neste passo, analisa os documentos e declarações da família ecumênica, em especial aqueles que foram publicados entre 2008-2015. Nota que o conjunto dos desastres ambientais afeta de forma desigual às sociedades, grupos e pessoas, tornando suas principais vítimas, mulheres, crianças e idosos, em especial os das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, por exemplo, além daquelas comunidades que vivem nas periferias rurais e urbanas – consecutando em racismo ambiental. Finalmente, faz eco à proposta de uma espiritualidade do cuidado, como contribuição das comunidades religiosas para a trasmutação dos valores, necessária à superação da injustiça climática.

Palavras-chave: Justiça climática, Espiritualidade do Cuidado, COP 21


Os dias e noites se sucedem. Esta regularidade tem levado à crença que sempre haverá amanhã debaixo do sol. De certa forma, a ciência moderna, buscando explicar as regularidades, matematizou, quantificou as relações naturais, sociais, humanas. Já dizia a canção: “o céu de Ícaro é mais bonito que o de Galileu”. Poesia e matemática são dimensões da condição humana. Não há que apartar-se uma da outra. No entanto, a constituição da modernização capitalista que implicou na Mundialização do Capital possui uma face nefasta e destruidora da sociobiodiversidade. Isto significa que a destruição da sociobiodiversidade, assim como a desigualdade e apartação social, e as diferentes formas de preconceito e discriminação, são construções sociais.

A afirmação acima é uma boa e uma má notícia. É uma boa notícia porque nos permite reconhecer que sempre temos algo a fazer com aquilo que somos os criadores. Se o empreendimento humano leva à destruição da sociobiodiversidade, à apartação social e à reificação de preconceitos e discriminações, podemos agir de forma contrária. Por outro lado, os últimos 150 anos de história da destruição da sociobiodiversidade, para centrar nossa atenção apenas a este aspecto de nossa ação coletiva como espécie, tem sido muito ameaçadora. Nunca se exterminou tantas espécies vivas como nestes últimos 150 anos, em especial como nos últimos 50 anos. Nunca se ejetou tantas substâncias na atmosfera, modificando-a e tornando-a altamente poluída, poluente e agressiva à vida, nunca se destruiu de tal maneira a camada de ozônio, deixando-nos a todas as espécies reféns do efeito estufa, com a calamitosa mudança climática.

A correlação entre modelo de desenvolvimento e mudança climática precisa ser revertida. Alterações de clima houve na história do Planeta, mesmo antes da revolução industrial. Eras glaciais foram sucedidas por novos períodos de revitalização. Essa história geológica fez alguns afirmarem que haveria uma dissociação entre modelos de desenvolvimento e as mudanças climáticas. No entanto, os cientistas do Painel Internacional das Mudanças Climáticas reiteradas vezes têm demonstrado que houve uma incidência maior de partículas de dióxido de carbono na atmosfera, devido às novas tecnologias dispersivas deste gás. Como consequência desta ação humana, segundo estes cientistas, há uma aceleração de processos de mudanças climáticas. Estes mesmos cientistas advertem que essa situação tem reversão. E esta reversão depende de ações dos governos, dos conglomerados transnacionais e, também, das pessoas comuns.

Efeitos de tais mudanças podem ser notados em todas as latitudes, bem como a inexistência de planejamento governamental para lidar com eles. Desastres ambientais com maior frequência, devido à alteração no regime de chuvas, provocando inundações, deslizamentos, em áreas urbanas superpovoadas. Bem como pela redução dos índices pluviométricos, a seca em áreas de mananciais, gerando insegurança hídrica, falta d’água, em regiões urbanas igualmente superpovoadas. São problemas que poderiam ser minorados ou mitigados  com processos preventivos, desenvolvidos como política pública governamental. Ações de mitigação necessitam, sobretudo, da organização dos governos para tanto. Porém, não se pode desprezar a necessidade de ações, atitudes e comportamentos de todos os cidadãos do mundo.

Mudanças climáticas não afetam a todos igualmente. Os efeitos atingem de forma mais dura os mais vulneráveis, dentre os quais mulheres, crianças e idosos sofrem mais. As populações tradicionais e das periferias urbanas são atingidos de um modo mais aberrante. Esta não é uma escolha da natureza, ou uma espécie de sorte moral. Esta situação é fruto do modelo de desenvolvimento hegemônico e da pouca eficácia e eficiência de políticas públicas para lidar com tais situações. Especialistas têm identificado essa questão como racismo ambiental. Pois, ao fim e ao cabo, em países como o Brasil, são as comunidades e a população afrodescendente, bem como comunidades indígenas, que sofrem consequências brutais do conjunto de violações aos direitos ambientais perpetradas pelo Estado e pela iniciativa privada em sua sandice de um desenvolvimentismo considerado de crescimento infinito, e que tem como consequência indelével as mudanças climáticas.

O problema de noções como “mudanças climáticas” é que elas respondem a dois destinos. Pode-se tornar uma noção banal, passando a ser uma explicação para todas as mazelas humanas (panaceia), e com isso perdemos o referencial do que se pretende afirmar com ela. Podemos, por outro lado, compreendê-la em seu significado específico, e ao avaliar os efeitos previsíveis, como faz o Painel Internacional das Mudanças Climáticas, de forma demonstrativa, muito embora o tom apocalíptico nos deixe apopléticos. Porém, como dito acima, não se trata de relaxar ou desertar, mas de indagar; que ações são possíveis empreender, a partir de nossa própria condição, para contribuir com a sobrevivência da vida, sobrevivência nossa, das gerações futuras, de seres humanos e das demais espécies?

Seguramente, essas são ações que se efetivam no campo da escolha de estilos de vida e do modelo de desenvolvimento. E isso é alimentado pelos valores que elegemos para orientar nossas ações. Valores e crenças são elementos que participam de nossas deliberações. Valores e crenças são alimentos espirituais, precisam de digestão espiritual e, até, de excreções espirituais. Há valores e crenças que precisam ser rejeitados e deixados de lado como dejetos. Há valores e crenças que são necessários e serão parte de nosso metabolismo espiritual – desconfio que o metabolismo espiritual participa daquilo que Mészáros identifica como o controle social do sociometabolismo do capital. Metabolismo espiritual tem um nome consagrado: espiritualidade.

Deve haver uma espiritualidade promotora de estilos de vida e de incidência pública que permita desvendar os mistérios do Capeta-Capital, para usar o conceito do Profeta Gentileza. Desvendar tais mistérios é, também, poder expressar o anúncio da Boa Nova, da Malkuta (palavra aramaica para o poder que pode ser invocado, um empoderamento), o Reino, o que na metáfora cristã é a energia impetuosa do vento que nos orienta. A vivência de espiritualidades pode alimentar atitudes, comportamentos, ações pessoais e coletivas. Crenças e valores participam da espiritualidade, porém a espiritualidade, ao menos na metáfora cristã, é uma experiência, uma vivência.

Se considerarmos como Teologia Pública aquela reflexão teológica que se envolve diretamente nas práticas sociais humanas, numa hermenêutica teológica da práxis, bem como aceitando o papel dessa modalidade teológica como a interpretação da práxis cristã diante de desafios humanos, a questão ecológica é necessariamente objeto dessa modalidade de teologia. Por meio da teologia pública, podemos analisar a relevância pública da teologia e da fé cristã, ou ainda, a relevância pública da teologia e das diferentes formas de fé religiosa – se for possível uma teologia pública na órbita de uma teologia do pluralismo religioso.

Ações, comportamentos e atitudes são necessárias para que a vida seja bem vivida, para que possamos eleger entre o uti e o frui, como ensina Agostinho. O mundo do uti é o dos instrumentos, dos meios, dos mecanismos, das utilidades. Assim, Agostinho descreve o fruir das coisas: “As que são objeto de fruição fazem-nos felizes. As de utilização ajudam-nos a tender à felicidade e servem de apoio para chegarmos às que nos tornam felizes e nos permitem aderir melhor a elas. (I. 3,3)”. Rubem Alves, em um artigo que chama “Caixa de brinquedos”, reflete sobre essa reflexão agostiniana. Pode ser interessante tomarmos essa reflexão como parte da que se faz aqui:

A ordem do "uti" é o lugar do poder. Todos os utensílios, ferramentas, são inventados para aumentar o poder do corpo. A ordem do "frui" é a ordem do amor —coisas que não são utilizadas, que não são ferramentas, que não servem para nada. Elas não são úteis; são inúteis. Porque não são para serem usadas, mas para serem gozadas. Aí você me pergunta: quem seria tolo de gastar tempo com coisas que não servem para nada? Aquilo que não tem utilidade é jogado no lixo: lâmpada queimada, tubo de pasta dental vazio, caneta sem tinta... (ALVES, 2004)

Será que é esta a subordinação que precisamos? O mundo do frui é o do deleite, da fruição, da compaixão e simpatia, será que é a partir dessa inutilidade que devemos ordenar nossa vida? Em que a família ecumênica pode contribuir para tanto?

No início…

Campanella tinha a mesma concepção que levou Giordano Bruno para a fogueira da Inquisição: Deus está em tudo. Tillich chamou isso de pan-en-teísmo. O modo com que os medievais e o moderno teólogo luterano conceberam essa presença da eternidade na imanência tem que ver com uma noção sistêmica que os antigos, como Clemente de Alexandria, liam como alma do mundo (anima mundi). E muitas tradições religiosas reconhecem essa presença manifesta na imanência de uma transcendência rediviva. A atitude correspondente a essa concepção é a reverência e adoração. O mundo se abre como um cenário a ser contemplado, porém por meio de uma contemplação participante, porque não estamos em outro espaço ou tempo quando contemplamos o mundo, é no mundo que contemplamos. Essa é uma contemplação ativa, porque nos insere com uma participação inequívoca e inexorável.

Esse mundo, ou cosmos animado imanentemente por uma transcendência inspiradora é regido por leis eternas ou por leis dinâmicas? Se fosse governado por leis eternas, seria ele mesmo estático. Esta é uma cosmologia conservadora. Nela, acreditamos que no futuro haverá apenas modificação do passado. Não há novidade propriamente. Pois, a novidade seria uma possibiidade, não uma predeterminação. No século XVII, o mecanicismo se impõe como cosmologia porque a ideia de um Deus eterno, que impõe leis eternas, era absolutamente inquestionável. Essa ideia migra para a física. E o mundo e o universo passam a ser concebidos com uma regularidade inquestionável. Na cosmologia conservadora e de domínio, o universo é compreendido como eterno e imutável.

Há 15 bilhões de anos atrás, quando esse universo iniciou seu peregrinar, e após uns 4 bilhões de anos, quando esta bola azul solta num cosmos imenso surgiu, e após alguns outros 500 milhões de anos, emergiu a vida nas águas do planeta, em múltiplas formas de vida unicelular… Houve, naquela ocasião, alguma constância. Os oceanos do planeta, nos últimos 3,5 bilhões de anos, por exemplo, mantiveram a concentração de sal - a erosão dos solos e das rochas asseguram isso. Essa salinidade permitiu a emergência da vida. E mesmo o solo se tornou vivo com uma microflora e microorganismos que nele e dele se alimentam. Está tudo cheinho de vida. A nova concepção cosmológica, entende o universo como um processo. Nesse processo a vida agarrou uma oportunidade, felizmente. O planeta se transformou - se transforma - com a vida.

Mais que partículas elementares dissociadas, o cosmo se rendeu à vida. Maturana afirma que a autopoisesis formadora da vida é o amor. Parece que ele cedeu sentido ao clinamem, que os epicuristas afirmavam, como o que faz os elementos se atraírem: o amor. Com o passar do tempo, a biodiversidade se tornou um modo de produção e reprodução da vida. Essa diversidade e diferenciação - oposta a modelos de monoculturas que ainda tentam nos impingir pelo Mercado - promoveu a criatividade, a renovação, a inovação da vida. E houve destruição, e como a dança de Shiva, da destruição emergiu a novidade, a criação, e o novo se fez. Parece mesmo, que se Deus está em todo o criado, é um Deus que aprende, como queria o Socianismo. Ou ainda, que é uma manifestação de um Deus em formação, como afirmava o Mestre Eckhart.

A metáfora cristã é de esperança, ficamos sempre no aguardo do primeiro dia, o Dia da Ressurreição. A morte não tem a última palavra. Tempos de mudanças climáticas são, mais que nunca, paulinos: esperança contra toda esperança. A morte não tem a última palavra? Há a fé marciana que o Senhor age sempre com os que o seguem. Este seguimento tem que ser comprovado no amor a Palavra e por meio dos sinais, as atitudes, as ações em resposta à graça. A Boa Nova não é só para os humanos, é para toda criatura. Na metáfora cristã os portadores da Palavra anunciam para toda criatura a Boa Notícia da Vida: O túmulo está vazio.

E vieram as trevas…

A explosão da vida não é capaz de conter a saga insana do Mercado como idolatria. O Mercado é uma invenção humana. Mercado em si é algo bom, lugar de trocas, de intercâmbio, de diferenciação e diversidade. Então, porque denunciar a idolatria do Mercado? O modo de organização capitalista da sociedade, ou, como chama Metzáros, o sociometabolismo capitalista do Capital, é devorador de corpos e mentes, é destruidor da natureza. Ecocídio e alienação caminham juntos, ecocídio e violência são sinônimos. E o alimento do ecocídio é a noção equivocada de crescimento econômico, mais ainda, de crescimento econômico infinito. Trata-se do erro fatal: ao invés de animar comunidades autossustentáveis criativas, procura-se fazer crescer para depois partilhar…

O PIB usado como medida do aperfeiçoamento de uma sociedade já está comprovado como um equívoco. A construção do Índice de Desenvolvimento Humano era uma aposta de, ao haver a denúncia desse fato, poder haver uma alternativa. Temos, até mesmo, a iniciativa do Butão, de criação de um indicador de medida da felicidade coletiva, socialmente construída, como medida de uma melhor sociedade. Nada disso está ainda em condições de conter a saga insana da crença do crescimento econômico como indicador de saúde econômica. O planeta é finito. Todos sabem. Ar puro, água potável e solo fértil são direitos e são finitos. Na América Latina se produz a reflexão sobre a construção da sociedade do bem-viver, como critério para conter a saga insana do crescimento desmedido.

Dizem que o crescimento econômico é uma necessidade para a redução da pobreza – além de propalarem a estratégia da redução de taxa de natalidade para eliminar uma quantidade imensa de pobres famintos (a considerar os dados da ONU, de 2014, 20% da população mundial). Nada de redistribuir riqueza, basta ter mais riqueza. Porém, os níveis de consumo do Grande Norte, se reproduzidos, esgotariam os mundo de todas e todos, muitas e muitas vezes. Crescer, nessa visão, é consumir, consumir, consumir. Em que medida? Na medida de quem produz para consumir: o Norte global. Para essa lógica, considerações sobre o papel da redistribuição da riqueza socialmente produzida é uma balela. Ainda que os fatos e os argumentos comprovem que tal redistribuição libertariam bilhões de pessoas das condições miseráveis em que vivem.

No mundo pós-industrial, no qual converge um modelo de desenvolvimento com operações extrativistas e industriais ecocidas, conduzidas por Grandes Conglomerados Transnacionais, com um sistema financeiro parasitoide, o desastre é um prenúncio inexequível. Desenvolvimento destruidor e governança corporativa desumana, aliados ao sistema financeiro faz com que as finanças globais cresçam virtualmente e sempre em maior capacidade de “acumulação de capital” representado por meio de números estratosféricos, sem correspondência com a real produção de bens e serviços. As transações financeiras se beneficiam da desregulamentação do dinheiro cibernético e isto lhes potencializa ainda mais os lucros. Esses lucros são gerados pela especulação financeira, fazendo circular trilhões de dólares como se fossem nuvem cibernética nada passageira. É um dinheiro que pousa nas mãos dos investidores e tem como contrapartida a agudização das desigualdades (se há acumulação, há empobrecimento). Pois, os investidores internacionais buscam fazer com que leis e regulamentações aumentem sua lucratividade, dentre outros elementos, por meio da redução ou aniquilação de direitos sociais e direitos trabalhistas conquistados durantes longas jornadas de lutas sociais. Evidentemente, para esses investidores é, também, um empecilho a existência de regulamentações ambientalistas que queiram controlar sua energia.

E as trevas continuaram...

Esse é um modelo de desenvolvimento que se sustenta por meio de forte construção cultural. Depende de muitos sistemas de dominação que se entrelaçam. A primeira e notória dominação é o domínio do meio ambiente. Ele vira mercadoria, todas as relações com a terra e sua biodiversidade devem ser “apreçadas”. Ao colocar preço na terra e na biodiversidade se pode calcular pagamentos por destruição. Pagamento deixa de destruir? O destruído depois de pago se reduz como destruído? O ressarcimento ambiental tem elementos que devem ser considerados, por outro lado, porque comunidades tradicionais, pequenos agricultores, pescadores artesanais, indígenas, prestam serviços ambientais à Humanidade que não pode ser desprezado. Quem os ressarcirá? Quem promoverá tais serviços?

Um segundo elemento destruidor é o das relações políticas e das relações de gênero, relações de poder. As relações de poder tem se construído em lógicas de representação e subordinação que são excludentes e anti-participativas. Este elemento alimenta os modelos hierarquizados, anônimos e isolados da dominação burocrática dos grandes conglomerados transnacionais. Destarte, alimenta o machismo, o patriarcalismo, o androcentrismo, a gerentocracia, a violência de gênero e a homofobia. Trata-se de um elemento de dominação das mentes e atitudes, de um mundo centrado na dominação do macho branco enriquecido. Aí está o valor e as novelas estão aí para reproduzir essa ideia idiota: a mocinha pobre tem que buscar o príncipe encantado, branco, rico, lindo. Trata-se da ideia que dá volta em torno do umbigo do mundo Mercantilizado, em que a mercadoria homem-branco-rico-lindo é o modelo que deve dominar corações e mentes. É ao fim e ao cabo o reinado da plutocracia nos Estados-nação e no sistema internacional.

Um terceiro elemento é a deformação cognitiva. O conhecimento é ainda centralizado e centralizador. Todas as pessoas e toda sociobiodiversidade é transformada em acessório do Capital. Bem dizia Gentileza; o Capeta Capital que domina todos e tudo. As culturas são vistas como instâncias locais, provincianas, que devem ser substituídas pelo modus operandi hegemônico e homogêneo da Mcdonaldização do mundo. Há uma cultura global sendo imposta. Evidente que a diversidade cultural e a interculturalidade são bem-vindas para a construção de um mundo no qual as horizontalidades permitam convivialidades. O que não se busca é a hegemonia de uma cultura global sobre as demais organizações culturais diversas construídas historicamente. Até mesmo a inundação de informações pode contribuir a este fim de hegemonia de uma cultura global e o afastamento da criação coletiva e cooperativada da busca da verdade.

Qual ser humano se deseja neste mundo ecocida? Seres  humanos motivados pela ganância e egoísmo, capazes de ganhar dinheiro. Seres humanos capazes de promover o bem-estar, ou seja, consumir, consumr, consumir. Seres humanos capazes de competir, num mundo de alpinismo social. Seres humanos capazes de acumular, porque o ter é fundamental. Assim explicita Korten e ninguém, ou quase ninguém, concordaria com esse credo (des)humanizador tão explicitado. Porém, esse modelo tem orientado o atual modelo prevalecente de um desenvolvimento autodestrutivo, de uma ideia de sociedade da apartação social e da destruição do meio ambiente. Este é um mundo no qual a subordinação do trabalho é identificada como elemento para a produção de riqueza.

Mészáros já denunciou: precisamos da riqueza da produção. Produzir não pode estar em função de mais e mais lucro, produzir precisa estar subordinado às necessidades humanas. Podemos ir além, produzir tem que estar subordinado às necessidades humanas e à sustentabilidade da teia da vida na qual estamos inseridos. Seres humanos e as demais espécies têm direito à sobrevivência com dignidade. O modelo da produção de riqueza, que se realiza como se o crescimento pudesse ser infinito, alimenta apenas a radicalização e agudização da desigualdade de distribuição de riquezas. E o pequeno grupo que acumula de forma desmesurada a riqueza socialmente produzida vive no mesmo Planeta que todos nós. Ou seja, o modelo ecocida é, também, um modelo suicida.

E a família ecumênica falou...

Seguramente, este diagnóstico e aquela história não são novidades. Há muito tempo as Igrejas têm se postado ante tais realidades e buscado animar as comunidades a resistirem, serem resilientes e não sucumbirem ante à Idolatria do Mercado e seu sacrifício Ecocida. Na Eco 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, que aconteceu no Rio de Janeiro, em 1992, houve simultaneamente uma atividade do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), reunindo lideranças das igrejas cristãs de todo mundo, também, no Estado do Rio de Janeiro. Como elemento profético se escolheu a Baixada Fluminense como o lugar desta atividade paralela – naquela ocasião havia atividades paralelas ocorrendo no Aterro do Flamengo, para discutir como a sociedade civil poderia interferir naquele processo. Desde Nova Iguaçu, do Centro de Formação do Moquetá, aquelas lideranças religiosas estavam afirmando que não haveria maior cuidado com o meio ambiente, sem que se cuidasse das populações que estavam em maior risco de vulnerabilidade, sem cuidar dos pobres do mundo.

Antes daquela ocasião, “Justiça, Paz e Integridade da Criação”, foi escolhido como programa do Conselho Mundial de Igrejas. Esta foi uma decisão ainda na década de 1980, na Assembleia realizada no Canadá, em Vancouver. Várias iniciativas para mobilizar as lideranças religiosas, com vistas a fortalecer o papel das comunidades religiosas como comunidades promotoras de uma vida sustentável foram realizadas. Simultaneamente, várias denúncias de violações de direitos ambientais e da insanidade em se manter o mesmo modelo de desenvolvimento do crescimento infinito foram realizadas. Seguramente, as lideranças religiosas têm um papel na construção de comportamentos, atitudes e ações, pessoais e coletivos, para promover um mundo no qual todas e todos possamos viver, as criaturas de todas as espécies, em todos os continentes. As lideranças religiosas têm participado ativamente das Conferências da ONU para a Mudança Climática, desde os finais da década de 1980. E desde 1995, quando da COP 1, em Berlim, o CMI tem enviado delegados às suas diferentes edições.

Um olhar sobre as declarações expressas entre 2008 e 2014 pode nos oferecer uma compreensão da voz da comunidade ecumênica. O Manifesto de Upsala, redigido em 2014, dirigido à COP 15, realizada em 2015, dizia que a preocupação com as mudanças religiosas, numa perspectiva ecumênica, inclui as lideranças de todas as religiões, não apenas os cristãos. Por isso, o Manifesto é das Lideranças Religiosas (como são as demais declarações que analisaremos). E afirmam que o cuidado com a nossa casa comum é algo partilhado por todas as Religiões. Enfatizam o papel que as Religiões têm na mudanças de estilos de vida e padrões de consumo. Com humildade reconhecem que a vida no planeta é um dom. Notam que o efeito antrópico tem provocado alterações danosas e se questionam se há condições de cura para isso. E fazem uma advertência: mais que nunca o mundo necessita de liderança mundial política visionária e  extraordinária!

Ou seja, para as lideranças religiosas o problema das mudanças climáticas não é um evento natural, é um fenômeno sociopolítico e necessita de uma solução política, uma solução de governança global. Diante do risco que as mudanças climáticas representam, havia clareza que a manutenção dos padrões de desenvolvimento, se não pudesse orientar a manutenção de elevação da temperatura ao redor de 2º C, nos deixaria à beira da catástrofe. Clamavam, pois, para que os governos assumissem compromissos que pudessem contribuir para a salvação de toda a vida no Planeta. Diante disso, notando a responsabilidade do Norte Global no desastre, indicava algumas medidas que poderiam dirigir em outra direção nossa condição temerária. Dentre estas, podemos destacar: - o propósito em reduzir as emissões de gases em 40% até 2020, 90 % até 2050, nos países ricos; - a transferência de tecnologia do Grande Norte para o Grande Sul em larga escala e sem custos...

Conclamavam, também, às diferentes comunidades de crença a: informar e inspirar às pessoas que tomem medidas responsáveis para mitigar os efeitos das mudanças climáticas; desafiar as lideranças políticas e da iniciativa privada a tomar atitudes responsáveis em seus países; lutar pela justiça climática, com atenção à questão do aquecimento global, como ação espiritual, com vistas ao amor e à solidariedade. Por isso, o foco é em abandonar e se contrapor à cultura do medo e temor por uma cultura da esperança. Há um apelo para que as comunidades sejam comunidades de alegria e esperança, em agradecimento ao maior dom recebido, a vida.

Nesta mesma direção, a declaração “Chamado à Justiça Climática”, redigida a partir do CMI, por um conjunto de eticistas, afirmava a necessidade do cuidado com os mais vulneráveis. Fazia-se a mesma conclamação a uma atitude responsável por parte das lideranças políticas. Falava-se da necessidade da elaboração de um Pacto dos líderes mundiais ao redor da criação de condições que favorecesse à vida no Planeta. Infelizmente, os resultados pífios da COP 15 mostravam que os líderes mundiais estavam moucos com relação às lideranças religiosas e os eticistas da família ecumênica. Porém, a denúncia e o anúncio não caíram no vazio e as comunidades religiosas cada vez mais chamam para si a responsabilidade em construir ações, comportamentos e atitudes que contribuam com a sustentabildade da vida.

O CMI e a Fedração Luterana Mundial, em 2009, por ocasião da COP 16, em Cancun, expressaram a voz profética da família ecumênica. Desta feita, se perguntavam: onde as igrejas estão nesta ocasião? Reconhecia que os líderes mundiais falharam na COP 15. Notava a história do engajamento das igrejas, ao longo de décadas, na proposição de iniciativas que podem favorecer à salvação do Planeta. Então, faz um apelo a partir do acordo que foi negociado na Rio 92, quando os líderes internacionais assumiram a existência de uma atitude ética fundamental. E denunciam: isto não tem sido assumido pelos Estados pactuantes. O Princípio de Precaução e o Princípio que associa as mudanças climáticas ao modelos de desenvolvimento econômico, igualmente tem sido negligenciados. E afirmam que as Igrejas clamam por Eco-Justiça e esperam que esta seja a atitude dos líderes políticos mundiais na COP 16, que foi realizada em Cancún.

Em 2011, o Forum Interreligioso sobre as Mudanças Climáticas, Meio Ambiente e Direitos Humanos, de Genebra, faz uma Chamada para Ação. Nesta declaração, observando a baixa intensidade das ações governamentais, indica a necessidade de uma ação articulada da sociedade civil. E admoestam aos governos que atendam às resoluções do sistema ONU que indicam a participação da sociedade civil. E declara o interesse em uma junção de forças das lideranças religiosas com outras lideranças da sociedade civil, das organizações não-governamentais na construção de um cenário de maior justiça climática. No mesmo ano, as lideranças religiosas africanas emitem uma declaração, “Justiça climática por uma paz sustentável na África”. Nela afirmam que os processos políticos e econômicos devem estar orientados por uma perspectiva ecológica, sustentável. Bem como, indicam haver necessidade de uma renovação moral, para a qual as comunidades de fé podem oferecer enorme contribuição.

Em especial, isso implica em reconhecer que o desenvolvimento de uma nação não pode ser medido em termos de crescimento do Produto Interno Bruto. Ao contrário, deve ser mensurado pela maior capacidade partilha e amorosidade. O desenvolvimento não será alcançado se os projetos dos que acumulam forem copiados por todos. E para isso as tradições africanas trazem contribuição, na medida que elas inspiram a vida em comunhão com a Terra e os seres vivos, em harmonia com as forças vitais. Os seres vivos, de todas as espécies, são concebidos na tradição espiritual africana, como companheiros dos seres humanos. Os líderes religiosos africanos assumem a responsabilidade de comunicar às comunidades religiosas a ameaça das mudanças climáticas e seus efeitos, além de serem exemplos para que as lideranças políticas mundiais, dentre outras medidas, abandonem o PIB como indicador de desenvolvimento. O mundo não suporta práticas que se baseiem na noção de crescimento infinito. O mundo precisa da redução do abismo entre países ricos e pobres, como medida fundamental de justiça climática. E clamam por isso aos líderes dos países africanos que rejeitem acordos que mantenham a exploração do meio ambiente e do povo dos países da África.

Na Rio +20, em 2012, o secretário geral do CMI expediu uma declaração à Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, da ONU. Nela adverte que é necessário interromper o modelo da economia da ganância (greed economy). Esta atitutde irresponsável de manutenção desse modelo econômico é a raiz dos atuais desafios socioambientais, até mesmo da aceleração das mudanças climáticas. E indica que as comunidades da família ecumênica são comunidades de esperança: “Nós temos esperança”. Deus criador e sustentador da vida, renova toda a Criação, pelo Espírito, e por isso a vida prevalecerá. Na mesma direção, a 10ª Assembleia do CMI, que houve em Seul, na Coréia do Sul, reafirmou o papel das Igrejas em estarem atentas às mudanças climáticas e seus efeitos adversos para toda a criação, em especial para as comunidades vulneráveis, em todo o mundo; reforça a necessidade de estimular às igrejas e comunidades a se unirem para cuidarem do meio ambiente e da justiça econômica; conclama as igrejas a olharem para além dos interesses nacionais, em especial em função da COP 19, que se reuniu em Varsóvia (2013), e se regozija pela atitude do governo estadunidense em rejeitar a instalação do Campo de Prospecção Keystone, no estado de Nebraska.

A declaração interreligiosa, de setembro de 2014, por ocasião da semana do clima, promovida pela ONU, teve por título “Clima, Fé e Esperança: Tradições de Fé Unidas por um Futuro Comum”. Nela se expressa o reconhecimento ainda mais abalizado cientificamente do efeito antrópico que dirige as mudanças climáticas. Notam que se amplia a consciência em relação às mudanças climáticas em todo mundo. Afirmam que as mudanças climáticas são o maior obstáculo para a erradicação da pobreza. Como líderes religiosos se comprometem a promover o risco de desastres ambientais, adaptação, desenvolvimento baseado em baixo consumo de carbono, educação para lidar com as mudanças climáticas, reduzir os próprios modelos de consumo e o uso de combustível fóssil – que são medidas possíveis para as ações institucionais e pessoais. Denunciam o empecilho criado, sobretudo, pelos Estados Unidos, em fazer com que se cumpram os tratados sobre mudanças climáticas. Retomam a afirmação da responsabilidade do Grande Norte com a promoção do desenvolvimento do Grande Sul. Conclamam aos líderes mundiais e Ministros do Meio Ambiente que estariam na COP 20, que se reuniu em Lima, no Peru, a assumirem compromissos com a baixa emissão de carbono e o controle do efeito Estufa. Com isto esperavam que os Países se comprometessem com o limite do aumento do clima a um nível menor que      2º C.

O desafio permanece aberto. E agora, em Paris, no ano de 2015, em julho, teremos a reunião da COP 21. Mais uma vez as lideranças religiosas e a família ecumênica fará manifestações para que os pequenos avanços feitos não sejam perdidos, e, sobretudo, para que as atitudes necessárias, ainda não tomadas, venham a ser efetivadas. Também o Papa Francisco uniu sua voz a dos líderes religiosos, que fizeram a Chamada para a Ação, na COP 20. E em abril de 2015, o Vaticano sediou o encontro dos líderes religiosos pelas mudanças climáticas. Naquele encontro, O Rev. Olaf Fykse, fez uma declaração, “Direito à Esperança”, em nome do CMI. Nela afirmava que “nenhum poder no mundo pode destruir a sede por dignidade humana e por vida em comunidades justas e sustentáveis”.

Na mesma declaração, o Secretário Geral do CMI, reconhece que as igrejas contribuíram, no passado, com a disseminação de uma visão mecanicista do mundo. Nela o meio ambiente era visto como um recurso subjugado aos interesses humanos. Tal visão não questiona, diz ele, o desenvolvimento insustentável que ainda persiste. Observa que as ações para enfrentar as mudanças climáticas têm sido adiadas. Afirma que as igrejas têm feito chamados a ação, que têm sido negligenciados pelas lideranças mundiais e homens de negócio.  Por outro lado, tais chamados têm recebido intensa resposta das comunidades de fé. Foi Nelson Mandela quem afirmou que o  povo tem direito à esperança, dignidade, paz, e que isso apenas se encontraria com o respeito democrático ao direito de todas e todos. “Como sacerdotes de Deus”, diz Olaf, “deveríamos oferecer o que é necessário neste momento histórico: o direito à esperança”.

Os líderes religiosos, ao final do encontro no Vaticano, elaboraram a seguinte declaração: “Declaração dos líderes religiosos, líderes políticos, homens de negocio e mobilizadores do desenvolvimento”. Nela reconhecem o efeito antrópico, afirmam que há suficiente evidências científicas para afirmar que as mudanças climáticas, a destruição da biodiversidade, a desigualdade social, incluindo o tráfico de pessoas. Essa capacidade destrutiva humana deve ser mitigada pela ação ética e religiosa. Afirma a declaração que “neste amplo cenário moral, as religiões mundiais têm um papel vital”. Reconhecem que a resposta à mitigação das mudanças climáticas não é questão de inexistência de recursos mundiais  financeiros e tecnológicos. E, por isso, os chefes da Nação devem ter consciência que a COP 21 pode ser o último momento para dirigir esforços reais para criar condições de não atingirmos uma elevação de temperatura em mais 2º C. Afirmam: “A mitigação das mudanças climáticas requer uma transformação mundial rápida, para um sistema energético renovável e outras fontes de energia de baixa emissão de carbono (low-carbon energy) e uma gestão sustentável dos ecossistemas”. Cuidar da mitigação das mudanças climáticas é cuidar do fim da pobreza, bem como, do fim de todas as formas modernas de escravidão.

O Conselho Latino-Americano de Igrejas produziu, com os auspícios do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, um material para reflexão das comunidades protestantes da América Latina, sobre Mudanças Climáticas. O caderno termina com a Declaração do CLAI, sobre Mudanças Climáticas, datada de 1988, no âmbito de um seminário sobre desenvolvimento rural, a qual afirma que reconhece a situação humana de pecado, que permitiu um desenvolvimento destruidor do meio ambiente.  Em abril de 2014, o CLAI realizou, na América Central, uma declaração por ocasião do Encontro Centro-Americano sobre Negociações Climáticas: “Pronunciamiento del Encuentro centroamericano sobre negociaciones climáticas con énfasis en pérdidas y daños, y legislación frente al cambio climático.”

Nela se afirma que não se pode permitir que a temperatura mundial suba além de 1,5º C. Além disso, os governos centro-americanos devem aplicar políticas do bem-viver, ou seja, políticas de uma convivialidade sustentável, com crescimento e emissão de caborno zero, com uma economia que atenda às necessidades das pessoas e comunidades, sem que ninguém fique de fora, sem que ninguém sofra com os riscos da vulnerabilidade social. O Documento também afirma a necessidade do reconhecimento da Dívida Ambiental (Climática), como estabelecido na COP 19, em Varsóvia, para que sejam arcados internacionalmente os danos e as perdas provocados pelas mudanças climáticas. Por isso, reclamam que se constituam sistemas efetivos de monitoramento das perdas e danos provocados pelas mudanças climáticas. Propõem ainda que seja criado um Tribunal Regional de Justiça Ambiental, para que exista, efetivamente, um sistema de justiça climática que seja vinculante aos países da América Central.

O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Conic, afirmou em sua assembleia de 2013 que é compromisso das igrejas cristãs a luta por justiça social e ambiental. Reconhece que a ação humana tem provocado a destruição ambiental. E que a injustiça socioambiental é fruto de relações sociais distorcidas. Por isso afirma que as Igrejas promovem o cuidado com as pessoas e com o meio ambiente, como uma forma de espiritualidade, que inspira novas relações com o Estado e a esfera pública.

Nossas Igrejas contribuem para isso, educando para novos comportamentos em relação ao meio ambiente, desenvolvendo uma espiritualidade que integre a vida humana com a criação como um todo e promovendo processos participativos que cobrem do governo a implementação de políticas públicas que garantam o manejo responsável dos recursos naturais, sua conservação, recuperação e uso adequado. (CONIC, XV Assembleia Geral Ordinária,  8 a 10 de março, 2013, Seção IV, § 5)

Entre 2008 e 2015, as comunidades religiosas, por meio da família ecumênica, fizeram diversas declarações internacionais, tanto dirigidas à América Latina quanto a outros continentes. Estes documentos, por sua vez, deram origem a outras declarações nacionais. Seguramente, podemos contar como um dos efeitos a expansão das articulações religiosas em favor da justiça climática. E isto têm levado as comunidades eclesiais a criarem ações e articulações que favoreçam a participação das pessoas de fé em experiências de controle social de ações de mitigação das mudanças climáticas. Dentre essas ações estão as respostas rápidas a desastres, o apoio a comunidades vulneráveis que enfrentam situações crônicas, e, sobretudo, a sustentação de uma espiritualidade provocadora do cuidado com toda a criação.

E a esperança se faz ação...

A família ecumênica tem se esforçado por promover a justiça socioambiental, a justiça climática. Criar um coração unido ao redor da promoção da justiça climática é um desafio. Quando em 2013, houve o tufão Hayan, que arrasou as Filipinas estava ocorrendo a COP 21. Yeb Saño, que participava da Conferência, representando aquele país, disse que faria uma greve de fome enquanto não fosse assumida pelos países uma política séria que interrompesse a insanidade do atual modelo de desenvolvimento, que impusesse ações para que o aquecimento global fosse inferior a 2º C. Apesar disso, naquela reunião, países como o Japão, por exemplo, retrocederam em suas propostas para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

O Jejum pelo Clima, então, foi assumido como uma proposta dos líderes religiosos, para enviar uma clara mensagem aos governantes do mundo: é preciso alterar o modelo de desenvolvimento. O propósito de alterar e mitigar os efeitos das mudanças climáticas reuniu redes católicas, protestantes, o CMI e a Aliança ACT (ACT Alliance), uma rede de mais de 140 organizações, presentes em todo mundo, que atua em favor do desenvolvimento, promoção de direitos e na resposta a emergências. A proposta é que todo primeiro dia dos meses do ano de 2015 as pessoas possam jejuar pelo clima. Se possível, coletivamente, e reunindo personalidades, informando as autoridades dos países, e de olho na COP 21, que acontecerá em dezembro deste ano em Paris.

Outra ação simbólica e libertadora é a Peregrinação pelo Clima. Esta ação se inciou a propósito da COP 20, em Lima, em continuidade à Peregrinação pela Justiça e pela Paz, que seguiu à Década Ecumênica da Paz, encerrada na Jamaica em 2010. Há peregrinos saindo de várias partes do mundo. Africanos pretendem chegar à Europa, a pé e de bicicleta, saindo de seus rincões no continente. A maioria dos peregrinos é da África e da Europa e deverá concluir sua peregrinação, que iniciou em janeiro, em Paris. Isso deve acontecer durante a COP 21. É um peregrinar na direção da justiça climática, peregrinar como metáfora da peregrinação que fazemos como cuidadores da Terra, cuidadores da Vida.

A força de ações simbólicas, como essas, não se pode medir. Elas impulsionam as comunidades a se tornarem ainda mais resistentes e resilientes, criativas e inovadoras, diante de desafios dramáticos. A Aliança ACT tem atuado em quatro áreas prioritárias: ampliação da consciência científica e moral das mudanças climáticas e seus efeitos; desafiando líderes políticos; desenvolvendo soluções inovadoras e cooperando efetivamente com as comunidades – em especial as que sofrem desastres ambientais decorrentes das mudanças climáticas. Uma campanha internacional que reúne ACT e outras organizações cristãs européias, chamada “Tempo para Mudança Climática” (“Time for Climate Change”), que entre as ações propõe uma petição que seja enviada às autoridades nacionais que participarão da COP 21. Propõe também um exercício criativo: que mundo sonhamos para 2030? O site para participar dessa campanha é: http://climatejusticeonline.org/

No dia da Terra, 22 de abril, de 2014, ACT Aliança lanlou mais uma campanha: Aja agora pela Mudança Climática (ACT Now for Climate Change). É uma campanha que reúne igrejas, líderes religiosos, para promover apoio a todas as pessoas que são afetadas pelas mudanças climáticas. KOINONIA – Presença Ecumênica e serviço, também, participa dessa campanha. A campanha propõe que todas as pessoas que quiserem possam enviar uma mensagem aos líderes mundiais, sobre quais medidas tomar para evitar a continuidade de ações que levarão ao desastre. Trata-se de criar o constrangimento moral internacional, que os leve a considerar a necessária atenção a quem se vê diretamente afrontado pelas consequências do modelos de desenvolvimento do crescimento infinito, consumista, dispersador de gás carbônico, alimentado pela energia do combustível fóssil... O site para participar dessa campanha é: http://actclimate.org/.

No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente foi propulsor de políticas nacionais para o controle das mudanças climáticas. Nos anos de 2009 e 2010 foram elaboradas legislações sobre isso. O Decreto 7390/2010 regula o cumprimento do Plano Nacional de Mudanças do Clima, que prevê ações até 2020.  O plano traz algumas metas e demonstra iniciativa governamental de controlar o processo e mitigar as situações geradas pelas mudanças climáticas no país. A capacidade de controle social da sociedade civil sobre tais políticas é ainda ínfima, e o conhecimento das igrejas e comunidades religiosas dessas políticas e da necessidade de controle social sobre elas é igualmente reduzido, para dizer o mínimo. A construção de uma agenda propositiva das igrejas e comunidades religiosas, além das organizações ecumênicas de serviço, precisa tomar em consideração esta e outras faces da legislação ambiental nacional.

Efetivamente, embora exista legislação com esse interesse de controle sobre os efeitos das mudanças climáticas, em especial referente ao controle da emissão de CO2, há várias lacunas. Nada existe sobre o controle dos organismos geneticamente modificados, o extrativismo, a modalidade de agronegócio existente, dentre outras questões, e seus efeitos para a agudização dos problemas gerados pelas mudanças climáticas. Estamos diante de desafios que, certamente, têm nas ações simbólicas uma dimensão necessária. No entanto, precisamos mais que isso como comunidade ecumênica nacional e regional. O Brasil tem um papel no regionalismo sul-americano e latino-americano com efeitos ambientais graves. Tomemos, apenas, como exemplo, a Ferrovia Atlântico-Pacífico que atravessará o Peru. Os custos socioambientais desse empreendimento são elevados. E a reflexão sobre tal obra ainda não está iniciada. Poderíamos tecer outros exemplos, como a exploração de xisto a noquífero Guarani, ou mesmo o desastre socioambiental atual com a construção da UHE Belo Monte.

Onde está a experiência de Deus?

Como diz Paulo, se Cristo não ressuscitou, é vã nossa esperança. A esperança é a chave de leitura da experiência cristã. O otimismo vazio indica que não há o que temer. A esperança, apesar das temeridades, ousa motivar a ação, ousa nos fazer carne da carne, terra da terra. A imagem que nos legaram da Terra desde o universo escuro, aquela bola azul, sugerem Hathaway e Boff, pode ser uma evocação do Espírito que está no mundo e em nós. Ela é nossa unidade. Nós e todos os seres vivos, nós e as rochas, mares, oceanos, rios, florestas, estamos unidos. Estamos todos interconectados. Somos parte desse planeta que paira num universo, com o qual também se interconecta. Essa imagem como nos chama as pessoas a cooperar umas com as outras, todas cooperando com a própria Terra. Não há um fora.

O Cristianismo e uma versão específica da teologia judaico-cristã contribuíram para o desencantamento do planeta, sua dessacralização. A destruição do planeta, no entanto, não foi ação de todos os seres humanos. Alguns moveram a máquina de destruição. Não podemos falar isso dos povos nativos das Américas, da África e da Ásia que estão no Grande Sul. Porém, todos sofremos as consequências da máquina de destruição, de gentes (pobres) e da sociobiodiversidade. A redução da terra à mercadoria, da vida à mercadoria e do trabalho à mercadoria precisa ser interpretado espiritualmente, como negação de Deus em nós e na sociobiodiversidade.

A destruição agressiva com as máquinas de destruição que nossa espécie continuar a construir, para além do que já destrói, não é uma ameaça a Terra, é uma ameaça a todos nós. No limite, é uma ameaça a Deus. Pensar na Terra como repleta de Deus é pensar não em um Deus onipotente, senão em um Deus frágil. A metáfora da encarnação e da crucifixão nos diz isso: Deus morre! E morre assassinado por seres humanos. Os seres humanos crucificaram Jesus, podem destruir a Terra, podem matar Deus. Essa identificação entre nós e a Terra, mais que concebê-la como uma casa que habitamos, nos faz pensar na Terra como parte de nós, de nosso corpo experimentador, de nosso espírito experimentador, o espírito humano e o Espírito na Terra.

Ao termos todas aquelas notas sobre o empenho destruidor da Plutocracia Gerontocrática do Capitalismo Mundializado, com o pesadelo avassalador do crescimento econômico inifinito, precisa de outros valores, que conduzam a outras atitudes. Se nos propõem o consumismo, temos que contrapor com a saciedade das necessidades. No lugar de um desejo incomensurável, a necessidade limitada de nosso corpo. Se nos propõem a ganância do ter, contrapomos a satisfação do ser, da constituição de nosso espírito curioso e criativo. Se nos propõem o produzir, produzir, contrarrestamos com o trabalhar para viver e não viver para trabalhar. Se nos propõem o domínio de toda terra, contrapomos com o cuidado!

Nesse sentido, a exploração que faz este ensaio é de uma teologia pública na chave da teologia ecofeminista e da libertação. Esta é, em sentido lato, teologia pública. Há um sentido técnico de teologia pública que incluiria um diálogo com o livre mercado, ou com a teoria econômica neoclássica (Sobre esse tema ver: KOOPMAN, 2010). Certamente, não nos filiamos a este significado técnico se esse diálogo não for concebido como um duro diálogo crítico. No entanto se aceitamos o conceito de teologia pública como discurso profético, entre as diferentes faces da família ecumênica, da sociedade civil e dos interstícios das relações com os sistemas político e econômico, é a esta modalidade de teologia pública que essas reflexões respondem. Uma tal teologia pública pode favorecer à elaboração de uma espiritualidade da práxis. As exigências que o ecocídio traz são de profunda contraposição às raízes do modelo de desenvolvimento do crescimento infinito, ou, como chama Mészáros, da produção da riqueza.

Somos fracos para tanto. Precisamos ser humildes e reconhecer nossa fragilidade humana. Fragilidade que nos leva à arrogância de nos supormos acima de todos os outros seres vivos, acima de todo o meio ambiente. Somos apenas parte integrante da sociobiodeversidade. Precisamos ser promotores da justiça socioambiental, da superação do racismo socioambiental. Porém, essa necessidade que é parte do cuidado, tem que estar arraigada no cuidado fundamental. A ameaça do ecocídio, do biocídio em talvez, como dizem Hathaway e Boff, suscita uma questão religiosa e espiritual mais fundamental: qual o futuro do planeta? É apenas colocando a necessidade desse cuidado que faz sentido a experiência de Deus.

Santo Tomás havia identificado um dado teológico fundamental: a linguagem da experiência de Deus, que os humanos podemos articular, sempre será analógica. Só experimentamos Deus no mundo e com as demais pessoas. Por isso, a injustiça, como a construção social da desigualdade social, dos preconceitos e das discriminações étnicas, raciais, de gênero, geracionais, sempre serão um ato contra Deus. Ubi pauper ibi Deus, pode ser dito: onde está o pobre aí está Deus. Ato contra Deus é ato contra os pobres e deserdados do mundo. A mediação de Deus é que permite notar essa nossa interdependência com a comunidade biótica. Somos integrantes da biosfera como dádiva de Deus.

A atual ameaça à Terra precisa ser identificada como ato humano de soberba. A soberba é um ato desestruturador da condição humana, porque ato de lesa-divindade. A divindade está em nós. Quando nos queremos fazer Deus, então nos desumanizamos. De certo modo, o modelo epistemológico que orienta o modelo de desenvolvimento é o da suposição da onisciência humana. Não podemos conhecer tudo e ter confiança em processos supostamente naturais. A suposição da regularidade infinita, e, por conseguinte, da mera necessidade de organização tecnológica para responder às mudanças climáticas, que seriam parte de um ciclo geológico, é absurda. O que está em jogo é a possibilidade de nos reconhecermos em nossas limitações, e saber que contar com o cuidado fundamental é aceitar que nossa liberdade pode ser experimentada por meio de cuidado com nossa interdependência bioterrenal.

Há uma espiritualidade do Mercado Total, do desenvolvimento com crescimento infinito, que deseja a homogeneização. A sociobiodiversidade como se alça em contraposição a esse modelo por influxo do Espírito. Vale recordar que Vigil chama a atenção para o papel da diversidade religiosa nessa sociobiodiversidade, o que nos leva a pontuar que uma teologia pública, em resposta ao desafio do ecocídio, precisa ser elaborada em chave da teologia do pluralismo religioso. Porém, não estamos agora retomando o discurso teológico. Estamos a interpretar a espiritualidade como uma prática. Prática humana, bioterrenal, alimentada pela sociobiodiversidade, que inclui, como dito, o pluralismo interreligioso.

Essa espiritualidade do cuidado é o elemento mais fundamental para redescobrimos o Deus que está em nós e em todos os seres do mundo. Essa é uma tarefa humanizadora das religiões. José Maria Vigil fala de uma espiritualidade interreligiosa. Essa tem como tarefa primeira ser uma mensagem de libertação para todos os pobres do mundo, todas mulheres e todos homens deserdados da Terra. Diz ele: “Está por ser construída uma teologia interrelligiosa da libertação, comum para os pobres desta terra e para todos os seus aliados na esperança” (VIGIL, 2006, 447). Concluamos estas já não muito curtas reflexões com as palavras da Carta da Terra, que poderia ser a resposta divina à pergunta da criação, até quando?

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época que a humanidade deve escolher seu futuro. Á medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro reserva, ao mesmo tempo, grande perigo e grande esperança (...). A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros ou arriscar nossa destruição e da diversidade da vida (...), devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com a comunidade terrestre como um todo, bem como com nossas comunidades locais. (Carta da Terra)


Filósofo, educador, assessor de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, professor do PPG Educação da UNESA (RJ), colaborador-referente  do Programa FEES do Conselho Latino-Americano de Igrejas, editor do BLOG Pastoral do Meio Ambiente da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, nomeado como assessor do Grupo de Trabalho de Incidência Pública de ACT Alliance por indicação do FeACT Brasil.