“Que o nosso amor seja uma oração... ¹”
F. Pessoa

“....Como é, pois que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? Partos, medos e elamitas; habitantes da Mesopotâmia, da Judéia, da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia próximas de Cirene; romanos que aqui residem; tanto judeus como prosélitos, crentes e árabes, nós nos ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus.” (At 2. 8-11)

Oração pela Unidade – uma brevíssima história

Uma pesquisa rápida sobre a Semana de Oração pela Unidade conduz á Escócia, ano de 1740.  A iniciativa é associada a um movimento de reavivamento da fé cristã. As ações do movimento incluíam orações por todas as Igrejas. A proposta transcendeu fronteiras, seu significado, sentido e até mesmo motivações se transformaram ao longo da história.

A iniciativa de oração comum ancorava-se na compreensão de que a união entre pessoas de diferentes Igrejas contribuiria para a renovação das próprias Igrejas por meio da ação do Espírito Santo. Os movimentos de reavivamento ancoram-se na crítica às institucionalidades, que, ao se apegarem por demais a dogmas e disputas de poder, perdem o seu vigor de anúncio, profecia e testemunho.

O pano-de-fundo histórico das iniciativas de oração pela unidade relaciona-se às mudanças geradas pelo Iluminismo e pela gradativa transformação do próprio papel e da presença da religião na sociedade. Diferente dos contextos em que havia o predomínio de uma única tradição religiosa,  a partir do Iluminismo e do processo de modernização, diferentes expressões religiosas manifestam-se publicamente, da mesma forma, crescem vozes contrárias à religião.

Essas mudanças apontavam para a importância das Igrejas dialogarem com esses novos tempos. Como as Igrejas falariam de paz se estavam envolvidas em guerra?  Como exigiriam das pessoas respeito e diálogo se entre elas havia tensão e conflito?

Tais questionamentos, não partiam das instituições religiosas, mas de pessoas, na sua maioria leigas, que praticavam sua fé. Eram movimentos que aconteciam geralmente, às margens das instituições eclesiais.
Nessas tensões e questionamentos está o embrião do movimento ecumênico e da própria Semana de Oração como a conhecemos hoje. A superação da compreensão de que as Igrejas são adversárias ou concorrentes está na raiz da Semana. É necessário que Igrejas reconheçam-se como parceiras. A cooperação entre elas fortalece o seu próprio testemunho. Abrir-se para a experiência do encontro, ultrapassar os conflitos significa testemunhar a fé no Deus vivo. Esse encontro, se concretiza no reconhecimento dos próprios limites das Igrejas, enquanto instituições. Valores do humanismo, entre eles, liberdade, justiça, paz, não absolutismo religioso tiveram influencias nessas iniciativas.

O resgate dessa noção ampla de unidade presente nos antecedentes da Semana de Oração, é relevante porque recuperar as motivações iniciais presentes no encontro para a oração entre cristãos e cristãs de diferentes confissões. Não eram encontros que tinham como objetivo central a defesa de interesses específicos. Eram, sim, encontros que desejavam expressar um testemunho público de Igrejas. Este testemunho deveria estar ancorado nos valores centrais do Evangelho: comunhão, misericórdia e reconhecimento da própria fragilidade e limite da religião, enquanto instituição humana. Esta fragilidade era denunciada pelos conflitos e pela divisão entre as confissões.

A proposta de oração pela unidade, como todas as iniciativas humanas, também passou por seus momentos de crise e enfraquecimento. Em 1908, Paul Watson promoveu a primeira vivencia da Oitava da Unidade Cristã. Esta proposta não foi bem aceita por muitos cristãos. O motivo da não aceitação foi que Paul Watson, um ex-sacerdote anglicano convertido à Igreja Católica Romana, compreendia a unidade como o retorno das Igrejas da Reforma à Igreja Católica Romana.  

Essa compreensão começou a ser revista em 1935 a partir de Paul Couturier. Segundo ele,  a oração pela unidade da Igreja deve acontecer da forma como Cristo deseja e com os meios que Cristo quiser. É este o entendimento presente nas Semanas de Oração pela Unidade nos tempos atuais. A unidade não deve ser forjada. Ela precisa acontecer de forma livre e espontânea. A unidade também não deve estar a serviço dos interesses humanos, mas ela precisa ser expressão do amor de Deus. A oração pela unidade é uma resposta a este amor, que será sempre limitada, pois os limites de nossa humanidade não alcançam a grandiosidade e graciosidade do amor de Deus.

Oração pela unidade – é preciso ir além do cristianismo

A proposta da oração pela Unidade contrapõe formas diferentes de presença da religião na esfera pública.  A primeira delas é o testemunho de que as diferenças não nos separam, ao contrário, nos fortalecem. Cristãos e cristãs que oram juntos podem oferecer um testemunho público mais coerente e ousado. Isso porque, orar com o outro exige que se reconheça o valor positivo das diferenças. Enquanto que cristãos e cristãs que não oram juntos e que não conseguem ir além de suas fronteiras, podem correr o risco de um testemunho autocentrado, que satisfaz aos caprichos e interesses próprios.
Religiões, por natureza, são ambíguas. Elas podem promover Deus no mundo, mas também podem atuar contra Deus. O cristianismo, enquanto religião, sofre dessa ambiguidade também.
Em um contexto de emergência de novas forças sociais, de temas complexos e de acirramento de conflitos esta característica ambígua das religiões tende a ser intensificada. O contexto de mudanças rápidas e profundas como o que vivemos, apresentam para as religiões e, por conseguinte às Igrejas, o desafio da abertura para deixar-se questionar.  Sua atualidade residirá nessa abertura, que possibilitará que os fundamentos presentes nas confissões não sejam defendidos como absolutos. Eles precisam ser atualizados e, em alguns casos, relativizados para recuperarem seu sentido. Essa atualização apenas acontece na abertura para o diálogo e para o questionamento de suas verdades. Da mesma forma, as práticas religiosas, precisam ser confrontadas por tais questionamentos. A oração é uma dessas práticas. Por que oramos? Essa é a pergunta necessária. É essa a pergunta que está presente no tema da Semana de Oração pela Unidade de 2015. 

O encontro entre Jesus e a samaritana foi possível por causa do deslocamento que Jesus precisou fazer entre a Judéia e a Galiléia. Para chegar à Galiléia era preciso passar pela Samaria (Jo 4. 4), uma região não bem vista por judeus.

As motivações para o preconceito entre judeus e samaritanos eram antigas. Os judeus não toleravam os samaritanos porque eles tinham rompido os laços com a monarquia do sul, que exigia a centralização do culto em Jerusalém (1Rs12). Além disso, quando os assírios invadiram a Samaria, deportaram a maioria da população local. Foram os assírios que povoaram a Samaria com estrangeiros. Cada estrangeiro adorava um Deus diferente (2Rs17.24-34). Para os judeus, os samaritanos eram misturados demais e plurais demais. Eles não era puros o suficiente. 

Os samaritanos, por sua vez, também não toleravam os judeus. Isso porque, em torno do ano de 128 a. C. João Hircano, líder judeu, destruiu o templo construído por samaritanos no monte sagrado de Gerazim. As antipatias mútuas tinham motivações políticas e religiosas.

Jesus, provavelmente não era alheio a esses conflitos. No entanto, para chegar ao seu destino final, ele precisaria passar pela região de conflito. A superação dos preconceitos era necessária.
Quando a samaritana chegou no poço para buscar água, Jesus não perguntou as razões pelas quais aquela mulher apareceu ali, em uma hora inapropriada. Havia um horário preestabelecido para mulheres irem ao poço. Jesus também não se retirou do local e nem ameaçou a mulher. Ao contrário, fez para ela um pedido inusitado: “Dá-me um pouco da tua água”. Na pergunta estava implícito o reconhecimento de que tanto o poço quanto a água, um bem precioso para ambas as culturas, pertencia aos samaritanos. Cabia a mulher o domínio do poço.

O pedido por água revela a  própria condição de Jesus: fragilidade e de necessidade do outro. Os conflitos entre judeus e samaritanos teriam que ser colocados em segundo plano. Não haveria pedido por água se Jesus não tivesse relativizado a concepção da supremacia judaica em relação aos samaritanos.

Se a samaritana deu a água para Jesus ou não, o texto não diz. No entanto, a pergunta provocou um debate teológico profundo. Esse debate aproximou tanto os dois que a samaritana testemunhou publicamente este encontro. Mulheres não podiam circular sozinhas e muito menos expressar-se publicamente. Jesus, por sua vez, permaneceu dois dias entre os samaritanos. Neste encontro nem um nem outro perderam sua identidade.
O Brasil, é um país tão plural e misturado quanto era a Samaria. Aqui, o convívio entre diferentes culturas e religiões nunca foi pacífico. 

O cristianismo já chegou no Brasil com a tarefa de esvaziar a religião do outro, no caso, os indígenas. Esvaziar a religião do outro significa tirar dele aquilo que lhe confere sentido de vida e visão de mundo.
A chegada de diferentes expressões do cristianismo provocaram novos conflitos e  disputas. Religião e violência, no Brasil, são lados de uma mesma moeda.

Nos últimos anos, nota-se o  fortalecimento de manifestações religiosas exclusivistas e violentas. O discurso do ódio religioso em relação a culturas, povos e religiões diferentes tem sido um indicador que as querelas antigas ainda não foram superadas.

Da mesma forma, o discurso de ódio contra pessoas LGBTs e mulheres indicam que uma religião que não se atualiza entra no terreno perigoso de defender a tradição de forma tradicional, como diria Giddens. Ela apenas reforça padrões de comportamentos.  

Da mesma forma, a estranha mistura entre interesses econômicos, religião e política representativa revela outra face obscura da religião, que é a do apego ao poder. A aliança entre religião e agronegócio no Brasil revelam que tanto a religião, quanto o direito, a política e a opinião pública podem tornar-se armas contra Deus ². O extermínio dos povos indígenas por causa da defesa dos interesses do capital são o exemplo real disso.
Este contexto leva a Semana de Oração pela Unidade a motivar profeticamente  cristãos e cristãs a reverem suas concepções e práticas. Não oferecemos um testemunho coerente com a vontade de Deus se o discurso e as práticas religiosas anulam e matam as diferenças que nos formam como nação. Também desvirtuamos a oração quando ela serve apenas para reafirmar nossas próprias verdades. A oração é diálogo com Deus. O diálogo provoca, inquieta e transforma.

Para o cristianismo brasileiro está colocada a provação de não ser uma religião que se fecha em si mesma. A abertura será necessária para que não sejamos como a religião que vê a figura humana aprisionada, sem vida e sem desejos em um vitral, enquanto figuras de estola rezarão aspersões .

Que o amor e a fé em Deus se expressem em orações que se deixem inundar pelo sonho plural de Deus!