O momento é de perplexidade e muita tensão no ar. A coalizão governamental montada pela presidenta Dilma está tensionada, sem unidade interna e com falta de capacidade de diálogo e negociação. As tomadas de posição um tanto autônomas e corporativas dos presidentes do Senado, Renan Calheriros, e da Câmara, Eduardo Cunha, aguçadas com as denúncias de seu envolvimento no esquema de corrupção descoberta na operação Lava Jato, tornam o quadro mais cheio de incertezas. Está ocorrendo uma espécie de fragmentação e diálogo de surdos entre Executivo e Legislativo. O esgarçamento institucional se acentua com a autonomia e o protagonismo da Procuradoria Geral, Ministério Público Federal, Justiça e Polícia Federal. Tudo isto se reflete no terreno da sociedade civil brasileira, com mais desencontros do que agendas coordenadas.
Estamos entrando num momento de clara crise de hegemonia, onde não aparecem intelectuais orgânicos do lado do governo e suas forças, nem na oposição. É um vazio perigoso, quando oportunistas e forças derrotadas, como os donos da nossa mídia dominante, apostam no pior para ocupar espaços políticos a seu favor. É totalmente incerto que campanhas pelo impeachment possam prosperar, pois é dispersa a agente dos que estão contra... contra o que mesmo? Aquelas iniciativas de sustentação nas ruas e praças do governo vitorioso em outubro de 2014 não conseguem galvanizar porque não captam o mal estar que está no ar. A questão da corrupção na Petrobras, envolvendo alguns dos diretores num conluio com executivos de grandes construtoras, só agrava o quadro. A própria campanha de defesa da Petrobras como bem comum empresarial da sociedade brasileira, hoje novamente ameaçada pela privatização, tem dificuldades de criar um forte movimento de resistência.
O pano de fundo é a crise combinada da democracia e da economia. A democracia, conquistada 30 anos atrás, perdeu força, ritualizou-se capturada por interesses fisiológicos e empresariais privados. A política, como bem comum essencial na democracia, está aprisionada, tanto o espaço público dos debates, da construção e legitimação de hegemonias, como a arena institucional da luta democrática, os partidos, a representação, o Congresso. Nosso Congresso é uma confederação de interesses privados, financiados por grandes empresas privadas para defender seus interesses. O Congresso definitivamente não representa a fantástica diversidade social e cultural e a pluralidade de visões e ideias do povo brasileiro. As bancadas BBB - Boi + Bíblia + Bala, com mais da metade do Congresso Nacional - são o sinal evidente de um impasse institucional para a democracia neste momento do Brasil.
A economia brasileira - vista em determinado momento como de um país capitalista emergente - mostrou toda a sua fragilidade. Trata-se de uma economia baseada num modelo de desenvolvimentismo para o crescimento e acumulação de riquezas com condicionalidades sociais. Além de reavivar o projeto de país grande dos tempos sombrios da ditadura, tal opção estratégica levou à reprimarização da economia, que não é sustentável nem social, nem economicamente, muito menos em termos ambientais. A opção feita pelo PT para chegar ao poder de se aliar a setores empresariais para viabilizar um projeto desenvolvimentista com condicionalidades sociais promoveu mudanças, sem dúvida. Foram criados empregos com carteira assinada, subiu significativamente o salário mínimo, fez-se a proteção mínima com o Bolsa Família, avançou-se na educação, entre outros. Mas não mudou a estrutura produtiva voltada à acumulação capitalista, geradora de desigualdades sociais. Distribuímos benefícios do crescimento à metade mais pobre do Brasil, aumentamos o consumo popular e estimulamos a produção de bens e serviços puxado por este consumo. Nada de reforma agrária, reforma tributária, taxação de grande fortunas, enfim nada de uma distribuição mais equânime da riqueza. Aí, bastou a China reduzir o seu ritmo de expansão – de um capitalismo autoritário, diga-se de passagem - que nosso papel de fornecedor de matérias-primas, da mineração e do agronegócio, veio abaixo. Com eles estão caindo os empregos, aumentando a inflação, as rendas das famílias vão sofrer contração e, sobretudo, estamos ameaçados por nova crise no balanço de pagamentos.
O pior em tudo isto foi a própria mudança do PT. Para chegar ao poder renunciou a ser força de transformação e abdicou dos próprios princípios éticos que marcaram a sua formação. Como poder, o PT foi contaminado e virou força subsidiária da expansão capitalista entre nós em troca de um distributivismo de renda capaz de inserir amplos contingentes no mercado, mas não de emancipar excluídos com cidadania ativa. Tal opção de “reformismo conservador”, na feliz expressão de André Singer, se materializou numa coalizão de governo totalmente sem identidade.
Porém, não dá para restringir a análise da conjuntura vivida pelo Brasil unicamente a fatores internos, tupiniquins por assim dizer. Certamente nossa crise econômica tem íntima relação com a crise econômica mundial. Após crise de 2007-2009, o neoliberalimo voltou com toda força. Os grandes grupos econômico-financeiros conseguiram socializar as suas perdas na crise e acabaram impondo uma agenda política aos estudos de ajuste que ignora as vontades populares manifestas em eleições. Isto vale na Europa como na América Latina.
Agora, o momento político de cada país depende da forma de resistência e insurgência de sua própria cidadania. O “estouro da cidadania brasileira” – como defino as grandes manifestações de junho de 2013 – não foram capazes de mudar o cenário político. As eleições de 2014 foram realizadas num ambiente difícil de esgarçamento da hegemonia desenvolvimentista montada pelo PT. Dilma ganhou, sem dúvida, mas parece que não levou. Isto não quer dizer que Aécio saiu vitorioso. Pelo contrário, penso que as eleições foram uma espécie de panela de pressão que explodiu. A nossa crise é a dificuldade de definir o futuro a partir daí, num mundo hoje mais interdependente em todos os sentidos, dada a globalização da riqueza e da pobreza, dada a crise ambiental de um planeta único em seus sistemas, mas que compartimos como povos em estruturas de dominantes e de dominados.
O PT saberá se renovar, rejuvenescer? A velha e patrimonialista direita brasileira poderá definir um projeto hegemônico para o país? Duvido das duas opções. Como não vejo alternativas políticas emergentes, sou levado a afirmar que estamos apenas no começo de uma grande crise. O fundamental é abrir trincheiras cidadãs para não perder conquistas democráticas duramente conquistadas entre nós nos últimos 30 anos. Insuficientes? Sem dúvida! Mas base melhor do que voltar a qualquer forma autoritária. Os princípios e valores da democracia precisam ser reafirmados pela cidadania neste contexto, para que possamos inventar uma nova e poderosa onda de democratização, mais radical do que esta que está arrebentando na praia sem perspectivas.
Este é um desafio não só brasileiro, mas na América Latina em seu conjunto. Com algumas exceções e evidentes diferenças, os projetos de centro-esquerda estão em crise. A verdade é que o mundo está em crise larval, mais forte aqui e acolá, menos em outros lugares, mas a crise é profunda. Não há saída à vista para nenhum país.
A civilização capitalista está se esgotando. A possibilidade de um capitalismo verde, real, é como postergar uma crise terminal. É insustentável o modo como produzimos as condições de vida num planeta ameaçado em sua integralidade e organizamos nosso modo de viver em sociedade profundamente desigual, negador de igualdade na diferença. Hoje é uma realidade que 1% concentra mais da metade da riqueza no mundo. Pior, 50 conglomerados econômicos e financeiros têm negócios maiores do que o PIB de 150 Estados Nacionais. Ainda pior, o capital financeiro que circula do mundo, de mais de US$ 700 trilhões, é maior em 10 vezes que o PIB real anual do mundo. Estamos num cassino, dependendo da sorte da roleta, que aponta para 99% de perdedores e 1% de ganhadores, como nos lembram os occupy. Um mundo assim não tem futuro. Nunca dá para esquecer tal quadro em qualquer avaliação de conjuntura. Mas temos responsabilidades, nossas responsabilidades, e devemos pensar na nossa parte, sem esconder as cabeças como avestruzes.
O PT tentou avançar socialmente sem mudar os tais fundamentos da economia de mercado, do capitalismo, enfim. O problema da exclusão e desigualdade social, assim como da destruição ambiental, está nestes fundamentos. Os governos petistas optaram pelo mais fácil: cobrar uma taxa aos ganhadores, mas sem mudar as bases de seu ganho. Criaram, com isto, uma crise maior do que eles, vitoriosos em quatro eleições seguidas. Para uma democracia substantiva ganhar eleições e mandatos é, sem dúvida, necessário, mas totalmente insuficiente. Projetos de transformação, desde aqui e agora, são indispensáveis para a democracia, a justiça social e a sustentabilidade. Dispensar isto é apostar numa “crise favorável”, por assim dizer. O problema que o resultado da falta de vontade de mudar, a submissão a projetos de acumulação capitalista podem gestar um mundo de ainda maior exclusão social e destruição ambiental.
Certamente não estamos diante de um país que necessariamente vai mudar, em transição para uma sociedade mais democrática, participativa, justa e sustentável. O mais provável é que tenhamos anos de crise de hegemonia, com emergência lenta de novos sujeitos coletivos, tanto movimentos sociais e organizações como sujeitos políticos com capacidade de disputa de hegemonia. Serão anos duros, de confusão, de incertezas. Grandes retrocessos estão no horizonte se a vigilância cidadã e democrática relaxar. Além disto, precisamos ter presente que o mundo hoje é claramente interdependente, que não existem soluções totalmente autônomas. O que vejo, num cenário de crise do capitalismo como modelo civilizatório, é que faltam os sujeitos coletivos de transformação, os movimentos cidadãos de dimensões planetárias, que de suas trincheiras levantem bandeiras de transformação de nosso modo de vida insustentável, social e ambientalmente.
Penso que, apesar dos enormes desafios, precisamos apostar nas resistências e emergências, do local ao mundial, e potencializar a sua incidência no sentido de disputa de hegemonia. Esta é a opção estratégica mais ao alcance da mão que vejo neste momento. Nada a esperar de governos, do nosso ou do multilateralismo em crise. Ou nós, cidadãs e cidadãos, reagimos e nos organizamos, exercendo nosso poder instituinte e constituinte, ou o Brasil e o mundo serão muito piores e as condições de vida no planeta ameaçadas definitivamente.
*Sociólogo, diretor do Ibase.