Num povoado pobre da Espanha do início do século XX, vivia Mari Gaila. Casada com um sacristão e mãe de uma menina, Mari Gaila pertencia a uma sociedade marcada pela miséria e pela tradicional rigidez religiosa. Com a morte de sua cunhada, uma alcoólatra que vivia a mendigar e ganhar esmolas com o filho deficiente, e a então disputa com a cunhada pela tutela do lucrativo menino órfão, tem início uma reviravolta pessoal e familiar. Mari Gaila segue com o menino a andar por diferentes feiras da região, encantada com o lucro e com uma certa autonomia conquistada. Neste tempo, apaixona-se e comete adultério com um homem, também casado, enquanto o menino deficiente é embebedado pelos outros mendicantes e morre. No velório do menino, na igreja central da região, Mari Gaila é trazida nua e inicia-se o seu apedrejamento pelos demais moradores do povoado. A selvageria só se interrompe quando seu marido, o sacristão, proclama, em latim, as chamadas “divinas palavras”: “quem não tem pecados, que atire a primeira pedra”.
O relato descrito acima é um pequeno resumo de Divinas Palavras, uma famosa peça teatral do início do século XX, na qual o dramaturgo espanhol Ramón del Valle-Inclán põe em cena o grotesco e a barbárie das relações humanas da sociedade de sua época. Entre outras questões, Valle-Inclán expõe o atraso e o “medievalismo” de uma sociedade patriarcal e machista que demonizava e agredia as mulheres. Num emaranhado de incessantes crueldades, como tentativa de incesto, tentativa de estupro, a exploração do menino deficiente seguida pelo seu embebedamento e assassinato, entre outros, o único fato que choca e desestabiliza a ordem social é o adultério de Mari Gaila. Apenas a mulher é culpabilizada, demonizada e agredida.
Um século depois no Brasil, a cada cinco minutos uma mulher sofre agressões e, entre os dados de 84 países do mundo, o Brasil ocupa o 7º lugar como o país onde mais mulheres são assassinadas.1 Ainda que a luta de nós mulheres pela nossa autonomia e igualdade tenha crescido e avançado com significativas conquistas, os dados estatísticos, as notícias e as nossas vivências cotidianas ainda escancaram esse machismo “medievalista” que insiste em permanecer incrustado em nossa sociedade. Mari Gailas, Fernandas, Patrícias e Franciscas ainda continuam sendo mulheres objeto, propriedade e meras fontes de prazer dos seus parceiros e cônjuges. Continuamos sendo agredidas verbalmente em nossos serviços, recebendo salários inferiores, sendo abusadas com gestos, olhares e palavras nas ruas e demais ambientes. Somos agredidas ideologicamente, com as definições do padrão de beleza, de corpo e cabelo perfeitos, que temos que nos ajustar. E ainda, nós temos a culpa pelas agressões que sofremos, como os estupros, afinal, quem mandou nos vestirmos assim, nos comportarmos assim, sairmos em determinados horários? Quem mandou sermos mulheres? Na sociedade da barbárie, são nossos atos que desestabilizam e que merecem ser punidos.
Em meio a essa realidade, no ano de 2006 aconteceu uma significativa mudança na garantia de direitos das mulheres com a criação da Lei Maria da Penha. Pesquisas recentes indicam que, após sua promulgação, 66% das mulheres se sentem mais protegidas. No entanto, elas têm consciência que só leis não são capazes de acabar com essa violência, questão que fica refletida nos dados de aumento das agressões domésticas nos últimos anos, no qual, aproximadamente, uma em cada cinco mulheres reconhece já ter sido vítima de violência doméstica ou familiar provocada por um homem. E neste contexto, se faz importante salientar que as maiores taxas de vitimização de mulheres concentra-se na juventude, na faixa dos 15 aos 29 anos de idade, e que, na última década, essa foi a faixa em que os casos de violência mais cresceram. 2
Os dados dessas pesquisas também mostram que cerca de 1/3 das mulheres não fazem a denúncia formal, mas procuram meios alternativos, como as igrejas, para se abrirem e pedirem ajuda. Isso porque as religiões são lugares de abrigo, consolo, conforto; a fé e as comunidades religiosas têm sido refúgios terapêuticos para um grande número de mulheres agredidas. Contudo, o modo com que essa ajuda tem sido oferecida é preocupante, pois os discursos religiosos e fundamentalistas tiveram e continuam a ter grande parte da culpa por essas violências. Uma culpa simbólica, de uma violência que tem início com os discursos reproduzidos por essas instituições. Como uma das grandes responsáveis pela formação do imaginário social, a religião é utilizada para legitimar a submissão das mulheres, a opressão dos seus corpos, ela naturaliza os papéis hierárquicos entre o homem e a mulher estabelecidos pela sociedade patriarcal, afinal, “essa é a sociedade que Deus criou”! Uma violência simbólica que se faz também princípio da violência física.
Diante desses discursos naturalizados, ou seja, a “Palavra de Deus apenas sendo reproduzida”, como mudar? O que fazer? Torna-se fundamental um estudo libertador das Escrituras ou das ordenanças sagradas de cada religião, uma leitura que desconfie do que aprisiona, do que oprime, e que tenha a vida na essência do seu olhar. As religiões precisam estar a favor da vida e, para que assim elas estejam, muitas vezes se faz necessária uma desconstrução de pensamentos construídos, uma desconstrução de discursos machistas que foram estabelecidos como únicos e naturais durante muitos séculos.
Nesse contexto, também se faz importante evidenciar os esforços exitosos de diversos movimentos pela libertação e defesa da vida das mulheres, um trabalho que tem sido feito com a atenção e os cuidados que questões tão profundas como as religiosas exigem. Organizações feministas, como as Católicas pelo Direito de Decidir, a Marcha Mundial das Mulheres, organizações ecumênicas, como KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, a REJU (Rede Ecumênica da Juventude, são exemplos de organizações que vêm somando forças nessa importante luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pelo enfrentamento à violência de gênero; são mobilizações que sinalizam resistências e passos criativos na construção de uma sociedade mais justa e que tenha efetivamente os direitos das mulheres garantidos.
Por fim dessa reflexão, relembro Mari Gaila, e meu desejo é que as “divinas palavras”, não as ditas no sagrado latim, mas as exclamadas profanamente nos gritos, nos silêncios e nos corpos das mulheres vítimas, possam ser ouvidas e temidas, num caminho ascendente de efetiva conquista de libertação e autonomia de nossas vidas e corpos.
Raquel Lima Catalani, formada em Teologia pela UMESP e graduando Letras pela USP, Raquel é facilitadora da Rede Ecumênica da Juventude (REJU) em São Paulo.