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TEMPO & PRESENÇA
Ano 7 - Nº 27
Agosto de 2013
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Crítica
 
Violência... Contra as Mulheres!
Por: Ivone Gebara

A palavra “violência” sugere ações de transgressão, de violação, de coação, de profanação, de ruptura de relações. É uma palavra que parece conter uma negatividade destruidora sugerindo imagens de derramamento de sangue, de marcas corporais, de armas dos mais diferentes tipos, de morte e desolação que tocam um individuo ou um grupo. Muitos já constataram essa espécie de presença constante da violência nas relações humanas como se fosse parte de nossa herança biológica cultural.

Provém do latim violare = violar palavra que por sua vez tem sua origem em outra - vis - que significa força.  Assim violência é a degeneração ou a corrupção da força que está em nós, uma força constitutiva e necessária para que nos mantenhamos vivas/os. A violência seria um mau uso da força que nos constitui; seria violar ou violentar o outro e a mim mesma fazendo-me perder o pé na minha própria realidade. Indica que é uma força/energia usada contra o direito dos outros, contra mim mesma, contra a lei que garante a vida de todos. Por isso se pode dizer que a violência é de certa forma a corrupção de nossa força vital, é seu direcionamento para caminhos que diminuem e destroem a vida.

Todos nós temos algo dessa corrupção de nossa própria força vital na vida cotidiana. Qualquer acontecimento ou contratempo pode desequilibrar as nossas forças e voltá-las contra nós e contra os outros. Basta um instante para entornar o caldo ou derramar o leite que está em nós. Entretanto, quando o descontrole chega aos extremos de destruição o denominamos violência. Muitas vezes essa força violenta é associada à ação masculina a ação do vir = homem em latim, mas é uma associação que não deve ser entendida necessariamente como violência direcionada contra as mulheres e nem exclusiva dos homens. Todos nós somos essa vis, força construtora e destruidora, luz e trevas, serpente venenosa e criança.

Como sabemos há muitos tipos de violência. Ultimamente, sobretudo nas grandes cidades se está falando de “epidemia de violência” visto que essa energia destrutiva tem se manifestado de diferentes formas e intensidades. Entre as muitas formas de violência que temos nomeado e denunciado está a violência contra as mulheres. Esta aparece como uma das mais perniciosas, dado a seu caráter quase endêmico em muitas sociedades.  Falar de violência contra as mulheres não é apenas constatar os números de assassinatos ou de mutilações ou de agressões físicas ou morais sofridas pelas mulheres por obra dos homens. Não é recordar a organização social hierárquica que privilegiou por séculos o masculino e silenciou publicamente a voz do feminino. Não é apenas constatar na prática a falta de oportunidades e as diferenças salariais que existem e tantas outras desigualdades. Creio que é preciso também tentar desvendar, na medida do possível, algo em nós que não só permite, mas fomenta a violência contra as mulheres. Por que nós mulheres, além de sermos habitadas por um sem número de formas de violência atraímos a violência masculina contra nós. Qual é o ponto frágil em nós que atrai essa violência? Seria nosso corpo de formas atraentes? Seria a recordação do pecado de Eva que de diferentes maneiras ainda assola o espírito de muitos? Seria uma sociedade milenar que nos tornou obedientes e submissas às figuras masculinas? Seria a convicção imposta de que somos seres de segunda categoria?

Muito embora acredite que todas as respostas a essas perguntas sejam limitadas, existe um duplo movimento cultural na manifestação dessa violência contra as mulheres: um movimento que vem das formas de socialização masculina e um movimento que vem das formas de socialização feminina marcadas por nossas heranças culturais e religiosas. Uma depende da outra embora em intensidades diferentes e conforme as pessoas, as situações e contextos.

Nos processos de socialização masculina há um componente reforçado pelas religiões monoteístas de que o homem é hierarquicamente superior à mulher. Segundo uma versão corrente do mito adâmico o homem foi criado em primeiro lugar e lhe foi entregue o poder de nomear os animais e dominar a terra. E de tal forma isso é considerado verdade que a imagem mais corrente de Deus ou do divino é uma imagem masculina. Há uma simbologia masculina que herdamos que associa o masculino ao Deus todo poderoso criador do céu e da terra. Por isso, ao homem é permitido o domínio da terra e de todos os seres. E na mesma linha, quase sem nenhuma culpa, o macho exerce seu domínio sobre as fêmeas. Entretanto, a forma de domínio sobre as mulheres parece extremamente problemática, complexa e merece uma atenção especial. Embora ligada a outras formas de dominação, tem algo a ver com a íntima relação entre os dois gêneros. Ela não apenas expressa uma forma de manutenção das hierarquias sob o domínio masculino, mas expressa algo de mais profundo que gosto de chamar de originário embora seja um originário simbólico. Originário porque pretendemos que esteja ligado às nossas origens biológicas. Originário porque está presente nas origens de cada ser. Em termos bastante simples podemos dizer que todo homem habitou biologicamente um corpo de mulher antes de nascer. Foi nutrido e cuidado por ele. Esta é uma experiência originária comum entre mulheres e homens com a diferença de que a menina habita o corpo de uma mulher e o menino um corpo diferente muito embora não perceba essa diferença. Essas situações vão se acentuar ao longo da vida e influir na maneira de relacionamento entre mulheres e homens e nas formas de socialização dos dois gêneros. Vão se transformar e construir complexas formas de superioridade e inferioridade nas diferentes culturas humanas.

Nos processos de socialização feminina há sem dúvida o componente de submissão à ordem natural e à ordem masculina. Entretanto, aqui também as coisas não são simples. As mulheres também não aceitaram e não aceitam pacificamente seu destino de submissas. Ao longo da vida e da história foram reivindicando espaços e muitos deles de forma violenta muito embora uma violência com outras expressões históricas. As vítimas tornam-se por um lado dominadoras e à sua maneira (rainhas do lar) também reproduzem formas de violência contra elas e contra os homens. Por outra lado, tornam-se também frágeis e desenvolvem formas sutis de manter o masculino dependente delas. A fragilidade, sem dúvida, à primeira vista não é considerada forma de dominação e menos ainda de violência.  Entretanto, se observamos os comportamentos cotidianos das mulheres com aparência frágil são elas muitas vezes as maiores vítimas da violência masculina. Elas acabem excitando uma forma de agressão na medida em que não aparecem como um eu diante de outro, mas como um eu cabisbaixo, medroso, acanhado, escondido, sem voz e sem vez de existir dignamente. Colocam-se abaixo, fazem-se objeto e podem ser mais facilmente agredidas. Sem dúvida, estas afirmações não são absolutas e dependem de muitos fatores, contextos e histórias pessoais. Mas, quero sublinhar que as ações e reações, as palavras e os silêncios, os golpes e contragolpes são intimamente ligados.

A história das mulheres resgatada hoje por muitas historiadoras também nos apresentou a vida de algumas intrépidas mulheres que entraram no mundo masculino da literatura, das universidades, no diálogo com reis e príncipes muitas vezes abrindo mão de sua feminilidade para impor-se em ambientes onde não podiam ser aceitas. De certa forma elas também, querendo mudar o sistema sócio-cultural, o fizeram com certa violência contra elas mesmas. Para transformar uma ordem dada desde cima foi preciso imolar sua vida, dobrar-se às suas próprias convicções e acolher os riscos dessa escolha. Há aqui também uma forma de violência querendo apagar outra, uma violência que manifesta muito mais a vis (força) constitutiva de nosso ser, a vis que leva a liberar e afirmar nossa dignidade e o direito de buscar os nossos caminhos.

Estou abrindo as portas para a suspeita de que a violência dos homens contra as mulheres tem a ver com a violência das mulheres contra elas mesmas e contra uma cultura hierárquica de sujeição. Trata-se de uma forma complexa de violência baseada na necessidade de se ajustar e de obedecer às ordens do criador masculino. E essa ordem as habita e as persegue constantemente. Não querer ser a vontade do outro, mas tendo que ser por força dos processos culturais de educação ou socialização é um drama. Tal situação, longe de gerar uma real submissão gera para muitas descontentamento e finalmente um tipo específico de violência. A sutileza desse processo de violência é neutralizada e naturalizada por uma porção de estereótipos criados pelas mulheres e pelos homens. Os homens são fortes, as mulheres fracas. Os homens têm poder as mulheres não. Os homens sabem as mulheres não. As mulheres cuidam das coisas da casa, os homens das coisas da rua. As mulheres perdem vigor sexual cedo, os homens são sempre potentes. Os estereótipos são formas de crença social que atuam como uma espécie de “dever ser” ou como uma natureza social à qual é preciso obedecer. Em particular as religiões monoteístas acentuaram esses estereótipos dentro de um âmbito antropológico profundo. Ensinaram a submissão a Deus Pai apresentado como figura simbólica masculina, uma submissão que significa fazer a vontade de um Outro sem que se conheça a sua própria vontade. Ensinaram que essa vontade superior sempre quer o melhor, por isso as mulheres devem ser como Maria “a serva do Senhor”. Entretanto, a mediação dessa vontade dita superior foi feita através de figuras masculinas (pais, padres e pastores). São eles que pregam a liberdade e a obediência e são eles que castigam quando, segundo eles, a vontade do todo poderoso não é cumprida.

A ambigüidade e a sombra estão sempre presentes em todas as tentativas de entender os processos de dominação e violência assim como de libertação que nos caracterizam.

Um longo processo, já iniciado por muitos movimentos feministas e outros, tentam buscar novos caminhos e entender de novo as relações entre mulheres e homens, relações que têm a ver com a sobrevivência do ser humano como espécie e com a vida do planeta. Buscam abrir caminhos para curar nossas feridas mútuas através de um reconhecimento processual do que fomos, do que somos e de como gostaríamos de ser. Convidam a repensar o ser humano para além das hierarquias do passado e do presente e de novo entre escombros e fissuras nos ajudam a perceber que nasceram gramíneas que anunciam que a vida, a misteriosa vida ainda está aí. As escamas começam a cair de nossos olhos... Estamos tentando de muitos jeitos e de novo buscar caminhos de convivência entre o lobo e o cordeiro que nos habitam. Estamos percebendo que apesar de tanta destruição nosso coração de carne ainda lateja e nos convida a viver no abraço que celebra a força da vida.

Abril 2013.