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TEMPO & PRESENÇA
Ano 7 - Nº 27
Agosto de 2013
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Mulher, violência e deficiência
Por: Alexandra Meneses Andrade

Quando nos propomos falar da violência nos enfrentamos com um velho problema e, entretanto, pouco refletido, especialmente em nossas comunidades de fé.

A violência é uma situação complexa, em qualquer cenário que se manifeste: familiar, social, mundial. Ao falarmos de violência contra as mulheres e neste caso particular, aquela violência dirigida contra as mulheres deficientes. Precisamos refletir a verdadeira dimensão e as implicações pessoais e sociais deste problema mundial.

Provavelmente, falar de cifras e percentuais de pessoas com deficiência no mundo pode resultar algo retórico, porém queremos insistir em mencionar tais dados, pois essas taxas e índices são altamente significativos nos países em desenvolvimento. Aproximadamente 650 milhões de pessoas no mundo têm alguma deficiência, dentre as quais 250 milhões são mulheres. É assombroso que sendo esta uma cifra tão alta permaneça invisível.

Quando tratamos das mulheres com deficiência temos um panorama desolador, pois se historicamente todas as mulheres foram discriminadas e marginalizadas, este grupo enfrenta uma múltipla discriminação: mulher, pobre, indígena ou negra, analfabeta, mãe solteira, deficiente. Nesta situação, pensar em uma vida digna, plena e abundante, como diz o Evangelho, se torna uma tarefa que requer um grande compromisso com nosso próximo e de uma fé renovada na utopia do Reino de Deus.

Inimigos ocultos

Várias são as causas que podemos enumerar quando falamos de mulher, violência e deficiência. Muitas delas são difíceis de detectar, pois subjazem como inimigos ocultos. A hiper-proteção em vários contextos, familiares e escolares, que terminam por gerar maior dependência emocional, afetiva, física, relativa às pessoas que se encarregam do cuidado e proteção.  Aparentemente, não existiria nada mal na hiperproteção, especialmente se existem razões justificadoras, porém tal hiperproteção traz como consequências vários (d)efeitos: produz baixa auto-estima na pessoa deficiente; autopercepção prejudicada; pobre ou escassa educação, o que traz como consequência a dependência econômica. Esses fatores conjugados fazem com que a mulher deficiente se perceba como “sem valor, inútil, socialmente não aceita”.  Pois, ela não cumpre com os estereótipos e normas estéticas  definidos culturalmente, valorizados pela publicidade e interiorizados como socialmente desejáveis.

A autoimagem se vê como não valorizada ou questionada pela família e pelos amigos, desde que surge a deficiência, devido a percepção que se tem da deficiência. A autoimagem de uma pessoa com deficiência é prejudicada e se configura em um modelo do feio, o não-estético, o não-desejável, pois as mulheres com deficiência não se encaixam nos moldes tradicionais da beleza e do consumo.

A baixa condição social e econômica das mulheres com deficiência pode ser tanto uma causa como o efeito da violência (a que são submetidas). O acesso limitado aos sistemas educacionais, que tem as pessoas com deficiência, se agrava ainda mais quando falamos das mulheres que têm deficiência. As famílias e as sociedades avaliam que não é necessário investir economicamente neste grupo humano (das mulheres deficientes) porque não seria gerado um benefício rentável útil, senão que geraria um custo social. Por conseguinte, o índice de analfabetismo das mulheres com deficiência é mais alto que aquele entre os homens com deficiência.

É fácil imaginar que ante a falta de preparação adequada, o acesso a um trabalho digno e as possibilidades de melhorar suas condições de vida e saúde são muito escassos. Desta forma, permanece o círculo vicioso da pobreza, que esteve presente para as pessoas com deficiência como grupo social. Até mesmo, uma mulher com deficiência que conseguiu concluir seus estudos universitários, terá grande dificuldade em exercer sua profissão e encontrar um posto de trabalho que valorize e reconheça seu conhecimento, capacidade e desempenho. Ao que parece a sociedade encurrala, marginaliza e desqualifica a essas pessoas, deixando-as e em situação de exploração permanente.

Todo este contexto de falta de segurança e vulnerabilidade, dependência física, emocional e econômica, baixa autoestima, auto conceito de imperfeição e feiúra, configuram o espaço no qual a violência encontra todas as condições para se multiplicar e desenvolver.

Deficiência e mitos

Segundo D. Sobsey, *** a explicação dos motivos, para a tendência generalizada aos maltratos contra as mulheres com deficiência, está fundada em vários mitos. Primeiramente, as mulheres com deficiência são retratadas como seres em estado vegetativo e, por conseguinte, são de uma qualidade inferior como membros da sociedade. Qualquer violação e abuso que se exerça contra elas, na mente do agressor ou violador, não tem que ser considerado como se o delito tivesse sido cometido contra pessoas normais.

O segundo mito é o da mercadoria estragada. A pessoa com deficiência é considerada como uma mercadoria defeituosa, portanto sua vida não vale a pena ser vivida ou respeitada. Este raciocínio pode ser estimado por um violador ou agressor sexual no momento de escolher sua vítima, como algo que diminui o grau de seu sentimento de culpabilidade.

Outro mito é o da insensibilidade à dor. Muitas pessoas com deficiência mental e emocional são descritas como insensíveis ao sofrimento. Assim, o agressor e violador pode crer que, considerando que tais pessoas tem um entendimento menor da realidade que vivem também sentem menos. Entretanto, existem pesquisas que demonstram que as pessoas com qualquer deficiência sofrem maior trauma emocional em consequência de situações de abuso, em comparação às pessoas sem deficiência que sejam vítimas de abuso.

Há, também, o mito da ameaça da deficiência. As pessoas com deficiência física, mental ou sensorial são vistas como perigosas e como uma ameaça à sociedade.

Finalmente, há o mito da incapacidade de defender-se. esta é uma percepção da vulnerabilidade das pessoas com deficiência. Esta perspectiva é usada pelo agressor, além de ser algo que seria derivado da imagem débil da pessoa com deficiência, uma imagem vitimizada que a sociedade promove dessas pessoas.

Esta breve descrição dos mitos, conceitos e preconceitos que existem ao redor do tema e da condição da deficiência nos desafia como sociedade e como igrejas. A sociedade, ainda que de forma lenta, está dando passos na direção da inclusão, acessibilidade, oportunidades e visibilização das mulheres e homens com deficiência. A igreja como referente de justiça, solidariedade e amor está chamada a se converter numa comunidade inclusiva. Afinal, não deveria nela haver acepção de pessoas. A igreja deveria propiciar e facilitar espaço para que todas as pessoas se sentissem acolhidas, salvas (e curadas), dignas e convocadas a ser parte de sua missão. O Evangelho nos pede, nem mais, nem menos, que seguir o exemplo do Mestre, quem sem pena, nem vergonha, foi capaz de ter atos de amor, concretos, em favor das pequenas e dos pequenos, entre os quais havia pessoas deficientes.

A violência na qual vivem as mulheres deficientes tem efeito devastador em suas vidas: o medo, o silêncio, a perda de esperança, de valor próprio, de autonomia. Por isto, é necessário que, como igrejas, comecemos a desvelar este problema que existe em nossa sociedade e a nos tornarmos conscientes que é nosso papel atuar para superar este preconceito, como aquelas e aqueles chamados a ser sal e luz.

Promover debates em torno do tema em nossas congregações, criar programas de prevenção ao abuso sexual, abrir os espaços para reabilitação e tratamento às mulheres deficientes (e não apenas essas) que sofreram violência sexual, discipular as famílias que têm familiares com deficiência sobre a mudança de atitude para promover a autoestima, a autonomia, as formas de detectar o perigo e a violência sexual, a independência, o desenvolvimento de habilidades sociais. Não se pode esquecer, também, que a hiperproteção torna os deficientes mais vulneráveis.

É necessário entender que todas e todos podemos fazer algo. Em primeiro lugar, sair da lamentação que imobiliza e acomoda. Devemos passar a jogar um papel muito importante, envolvendo-nos nas atividades dos centros de cuidado, terapia, reabilitação, educação das mulheres com deficiência, com o fito de termos controle cidadão (civil) efetivo, que monitore os serviços, exigindo que sejam éticos e responsáveis, livres de todo ato de violência.

Este é um problema que nos incumbe a todas e todos, nos desafia a nos posicionar de forma clara e definida, como discípulos de Cristo, a fim de alcançar que este grupo social, de pessoas historicamente marginalizadas e esquecidas, encontre nas igrejas espaços de graça, amor e aceitação.

Alexandra Meneses Andrade **

* Artigo publicado originalmente em “Signos de Vida.” Nº59, agosto de 2011. Pág.16-19.

** Equatoriana, metodista, trabalha na Sede do Clai (Conselho Latino-Americano de Igrejas), e é deficiente.

*** SOBSEY, D. Modifying the behavior of behavior modifiers: Arguments for countercontrol against aversive procedures In Perspectives on the use of non aversive and aversive interventions for persons with developmental disabilities, Brooks/Cole Co. NY, 1990