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DESASTRES SÓCIO-AMBIENTAIS E A LUTA PELA JUSTIÇA ECOLÓGICA
Ano 5 - Nº 21
Outubro de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
As Cidades Mortas e a Morte dos Lugares: Uma interpretação da obra de Mike Davis
Por: Francisco de Assis Penteado Mazetto

Existem muitas formas de assassinar uma cidade, um lugar, uma região. A mais conhecida e divulgada é pelo esvaziamento econômico, a morte dos meios de produção que é decretada pelos interesses do grande capital, quando o lócus não mais apresenta as condições atraentes para o desenvolvimento do modo de produção capitalista. A ação pontual do capitalismo privado concentra suas atividades em determinado local e período para seu desenvolvimento. E assim tem sido desde o capitalismo mercantil até a sociedade pós-moderna, uma sucessão contínua de nascimento, desenvolvimento e morte dos lugares ao sabor do fluxo do capital. Às cidades e lugares que morrem são imputadas todas as culpas do fenômeno do topocídio, a morte do lugar, não tendo estes a competência para atrair o capital, ou seja, fazer concessões ao capital em prejuízo da classe trabalhadora.
O papel do Estado cresce no século XX, depois de muitas lutas do proletariado no século anterior, com o socialismo real e mesmo no capitalismo keynesiano, mas o poder do capital privado ainda se faz sentir vigorosamente através da santificação da propriedade privada nos meios de produção, institucionalizando o roubo e expropriação às classes proletárias (Proudhon, 1998). As cidades pioneiras do renascimento entram em declínio, pois o fluxo do capital se desloca para a Ibéria e depois para os Países Baixos a custa da intensa exploração escravista da América. Com a Revolução Industrial, as cidades inglesas do carvão se tornam a “oficina do mundo” e o inferno para os operários submetidos às condições subumanas de trabalho e de vida. A II Revolução Industrial decreta a morte econômica das cidades do carvão e o nascimento das cidades do automóvel concentradas inicialmente nos países centrais. Quando em meados do século XX, os interesses do capital se voltam para o processo de desconcentração industrial, os países periféricos, principalmente da América Latina são alvos da nova expansão do capitalismo. A procura de condições ideais para a reprodução do capital no processo produtivo é incessante, sendo que alguns países do extremo oriente agora são eleitos para a ação do capital. A sociedade pós-moderna se revela tão excludente e discriminatória quanto os períodos das primeiras ondas cíclicas do capitalismo (Kondratief).
Mas, além do esvaziamento econômico, existem outras formas nas quais as cidades e lugares são mortos. Existe o aniquilamento total, a destruição material e humana do lugar, representada dramaticamente pelos conflitos armados entre as nações ou por catástrofes naturais. Os exemplos de Pompéia, Herculano, Hiroshima e Nagasaki mostraram como a civilização pode alcançar o poder na natureza para a autodestruição. O equilíbrio do terror nuclear durante a Guerra-fria representou a suprema ameaça de extinção da vida na Terra, fato que poderia determinar a morte planetária ou, pelo menos, da maior parte de suas espécies.
Outras categorias ou formas de topocídio seriam aquelas referentes às ações humanas além da econômica e não excluindo esta. Os conflitos sociais que geram as cidades do medo são tão frequentes nesse início do século XXI que chegam a assolar os continentes atingidos pela intensa urbanização desordenada. As degradações das condições naturais causadas pela sociedade humana aos lugares e cidades podem causar os ambientes degradados, onde as condições sociais acompanham as naturais em grau de deterioração. Também existe uma forma sutil de topocídio, referente ao colonialismo cultural, onde os lugares são descaracterizados culturalmente, perdendo sua identidade própria em favor de uma cultura externa imposta pelo poder econômico e militar.
As cidades do medo se apresentam como uma constante na modernidade, uma sociedade cada vez mais desigual e egocêntrica e cada vez menos igualitária e solidária. O 11 de setembro de 2001 inaugurou a “era do terror”, segundo alguns cientistas sociais. Mas, há muito tempo o clima de violência tem sido uma constante na história humana, intercalado pela pax do vencedor, do dominador. As cidades criadas pela Revolução Industrial impuseram a exploração e a repressão aos proletários e também serviram de teatro para a desarticulação das classes oprimidas com a finalidade de eternizar o domínio das classes dominantes detentoras do poder econômico. Para desarticular a classe trabalhadora nada mais útil do que açodar a insegurança pública e o individualismo do capitalismo de consumo. A ausência do Estado em suas funções vitais, provendo os citadinos dos serviços públicos essenciais, ativa um poderoso efeito desagregador da comunidade urbana abrindo espaço para as atividades ilegais geradoras da violência urbana.
Os ambientes degradados em termos naturais e humanos, fruto do avanço da civilização sobre os recursos naturais cada vez mais escassos, a fim de manter o moderno padrão de consumo, eclodem por toda a superfície do planeta marcando cicatrizes já perceptíveis do espaço em órbita da Terra, tamanha é sua magnitude. Para Mark Davis, o ecocídio é fortemente evidenciado no território norte-americano e da antiga União Soviética oriundo dos testes de armamentos químicos e nucleares em áreas pouco povoadas, mas que até hoje sofrem os efeitos nocivos dessas atividades. Foram enormes os custos ecológicos e humanos da Guerra-fria. No rescaldo do conflito Leste-Oeste, os acidentes com usinas nucleares como o mais grave deles – Chernobyl – deixaram seqüelas tão fortes como no caso dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki. As cidades se tornam, cada vez mais, em ambientes artificiais, adaptados às preferências e exigências do homem civilizado. Esta transformação tem um alto custo no que tange ao consumo de recursos naturais, muitos deles não-renováveis como os combustíveis fósseis. A sociedade do desenvolvimento sustentável, das fontes de energias alternativas, limpas e renováveis, ainda é uma utopia perdida em um futuro imprevisível frente aos imperativos da economia de mercado, do lucro imediato, concentradora de renda e disseminadora de pobreza.
Os desequilíbrios ecológicos e sociais também trazem de volta o tempo das grandes epidemias que assolavam as populações dos séculos passados. Mark Davis relata um trabalho de um epidemiologista e uma ecologista no qual discriminam com exatidão as inter-relações entre as políticas administrativas municipais de Nova York e os surtos epidêmicos de tuberculose e AIDS nos anos 80. Com as políticas neoliberais de enfraquecimento das instituições assistenciais nos governos republicanos de Nixon e Ford nos anos 70 e sua continuidade pelos governos Reagan e Bush nos anos 80 foram responsáveis, em nível municipal, na gestão dos prefeitos Koch e Giuliani, na operação “desmonte” de serviços urbanos essenciais como o de bombeiros nas áreas mais pobres do Bronx, Brooklyn e Harlem, que foram reduzidos em grande número o seu efetivo. Os freqüentes incêndios dos anos 70 e 80, acidentais ou criminosos, causaram a total degradação desses bairros: “Os incêndios destruíram redes sociais vitais ancoradas nos bairros, além de casas. Depois deles, o número de sem-teto e de violência nas ruas cresceu a níveis que não eram vistos desde a Depressão.” (Davis, p. 449). Segundo Davis, para os pesquisadores, a elevada incidência de tuberculose e AIDS dos anos 80 em Nova York tem relação direta com a política do “Estado Mínimo” para os pobres, aplicada por governantes neo-conservadores. O aumento considerável de usuários de drogas injetáveis dos anos 70 e 80 nas áreas degradadas, antes restritos a nódulos pontuais da cidade, se revelaram um poderoso agente de disseminarão das epidemias. As cidades, ou partes delas, podem ser mortas pela própria ação governamental.   
A morte cultural da cidade vem sendo acelerada através da cultura de massa dos tempos modernos emitida pelo modelo do american way of life, muito mais poderoso do que a imposição cultural dos impérios do passado. O modo de vida estadunidense, sua música, seu idioma, seus costumes e hábitos de consumo pasteurizam as culturas nacionais moldando-as à ordem dominante. Em escala regional, o fenômeno também é observado, mesmo no espaço interno dos países centrais. O avanço da especulação imobiliária na ilha de Manhattan, por exemplo, desaloja os antigos moradores do histórico bairro do Harlem, celeiro da cultura negra americana, enviando-os para as áreas periféricas mais distantes. Os tradicionais ritmos afro-americanos vindos de Nova Orleans e Chicago encontraram grande acolhimento e divulgação mundial nas casas noturnas do Harlem nas primeiras décadas do século XX, assim como a música gospel dos cultos religiosos. Os novos centros comerciais implantados no bairro descaracterizaram suas tradicionais feições, tornando aquela área urbana um lugar comum, igualmente aos outros núcleos comerciais da cidade, tudo isso em nome de uma revitalização econômica.
A imposição da uniformidade cultural, portanto, pode atingir também a própria diversidade das nações dominantes e retratam mais do que qualquer coisa, o meio efetivo de como o sistema dominante utiliza determinados padrões culturais para viabilizar a ação colonialista e imperialista.
As cidades mortas apresentam a tendência de se multiplicarem, cada vez mais, seja por um ou mais motivos. Segundo dados históricos, a corrida do ouro nos EUA deixou para trás, após o esgotamento das jazidas, mais de 6 mil cidades fantasmas, muitas delas remanescentes nos dias de hoje. Atualmente registram-se mais de mil cidades fantasmas no território estadunidense, oriundas da estagnação econômica nas regiões das indústrias metalúrgicas e automobilísticas, que perderam grande parte dos empregos, transferidos para o extremo oriente asiático, nas plataformas de exportação das multinacionais do setor.
A morte das cidades no Brasil foi observada ao longo dos ciclos econômicos, principalmente o do ouro e do café como ficou bem evidenciado na obra de Monteiro Lobato. Por um lado, propiciou a conservação do patrimônio arquitetônico e imaterial pela população sobrevivente. Por outro, decretou a partida de intensos fluxos migratórios para outras regiões a procura das “oportunidades” de inserção no mercado de trabalho.   
No Brasil, a ação extremamente concentrada do capital, tem privilegiado o crescimento dos centros regionais representados pelas cidades médias, em detrimento das pequenas cidades que, paulatinamente, vêm perdendo economia e população nas últimas décadas, com exceção talvez da frente pioneira da soja e pecuária no centro-oeste. Este último exemplo, contudo, ocorre à custa de um avanço predatório sobre o cerrado e da Floresta Amazônica, prejudicando e desarticulando as comunidades dos povos da floresta e das reservas indígenas.
Na lógica da economia de mercado, não há espaço para um efetivo planejamento territorial com o objetivo de diminuir as disparidades do desenvolvimento econômico. Somente um Estado forte no sentido de administrar políticas sociais e reformas de base com poderes de interferir a estrutura social do país pode alterar, substancialmente, a perversa oscilação do sistema capitalista, no qual os períodos de retração econômica são sustentados pela classe proletária, através do arrocho salarial, desemprego e supressão dos direitos trabalhistas conquistados depois de tantas lutas.

REFERÊNCIAS:

BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no Século XIX, Espetáculo da Pobreza. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.
ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
DAVIS, Mark. Cidades Mortas. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 2007.
LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2008.
PROUDOHN, Pierre Joseph. A Propriedade é um Roubo. Porto Alegre: L & PM Editores, 1998.
TUAN, Yi-fu. Topofilia, Um estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.

 

*Doutor em Geografia, Professor no Departamento de Geociências, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora.