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BRASIL, PAÍS DE TODOS?
Ano 2 - Nº 5
Novembro de 2007
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Como a Igreja Católica tratou negros e negras nestes 507 anos?
Por: Frei David Raimundo dos Santos

I – INTRODUÇÃO

Nestes últimos cinco séculos de evangelização, a relação entre a população negra e a Igreja Católica passou por várias etapas. Até a proclamação da República, em 1889, vigorou entre a Igreja Católica e o Estado o regime do Padroado. A religião oficial do Estado era a Católica. Quando frei Henrique de Coimbra celebra a primeira missa, no dia 26 de abril de 1500, ele batizou o país com o nome de Vera Cruz. Aquele foi o início do projeto católico/franciscano. Ele foi suplantado pelo Projeto que apoiava a atitude extrativista exploradora.

No que se refere à postura evangelizadora-eclesial, tivemos momentos de profunda opressão, quando a Igreja identificou-se com os colonizadores. Em outros momentos, a Igreja voltou-se para a realidade dos excluídos – período curto - identificando-se e solidarizando-se com o oprimido, assumindo que esse tinha o rosto marcadamente negro, indígena, cigano e feminino, e representava o rosto de Deus.

Ao longo desses séculos, o povo negro católico foi influenciado e formado por quatro projetos de evangelização.

II - 507 ANOS: QUATRO PROJETOS DE EVANGELIZAÇÃO

PRIMEIRO PROJETO

De 1500 a 1842, a proposta era promover a fé cristã, baseada na leitura sob a ótica européia – ocidental colonizadora. Os valores da cultura negra eram menosprezados pela cultura branca dominante. O lugar ocupado pelo negro era o de escravo e a escravidão roubava dele o direito de constituir família organizada, de vivenciar suas tradições culturais, de resgatar suas raízes.

Esse projeto, do ponto de vista do colonizador, era anunciado como sendo a Boa Nova, mas, sob a ótica do povo escravo e oprimido, significava a extinção de seus valores culturais e religiosos.

Infelizmente, a Igreja estabeleceu um forte vínculo com o Império ratificando essa proposta evangelizadora, e jamais se preocupou com uma ação libertadora e salvífica, e sim com os privilégios obtidos a partir dessa parceria. Em outras palavras: a Igreja apoiava o Império nas lutas armadas contra os escravos negros. Calaram-se e se colocaram ao lado dos opressores diante da destruição dos Quilombos dos Palmares e do assassinato de Zumbi, além de estar conivente com o assassinato de Manoel Congo; ambos, como líderes do povo negro, lutaram contra a escravidão e libertação de seu povo. O Império concedia à Igreja poder e status para que ela também pudesse influenciar politicamente nos rumos do país.

SEGUNDO PROJETO

De 1842 a 1968, prevaleceu o projeto de romanização e ocidentalização da sociedade brasileira. O projeto anterior tinha um toque mais popular, português. Agora o objetivo era romanizar a Igreja e colocar o clero como centro.

Neste segundo projeto, denominado “romano-europeu”, o trabalho era pela europeização do país, e isso significava passar por cima das culturas consideradas “inferiores”, a fim de que prevalecesse o processo de ocidentalização. Para isso, abrem-se as portas para os imigrantes europeus, ao mesmo tempo em que se busca a eliminação dos quilombos e bloquear a vinda de novos negros para o país. Os negros eram obrigados a “engolir” o esquema da europeização, favorecendo, assim, a instalação da ideologia do embranquecimento em suas mentes. Aqueles que procuravam manter contato com sua cultura, principalmente através da vivência da fé nas religiões afro, eram impiedosamente perseguidos.

Os missionários catequizavam negros e índios, e aqueles que se rebelavam eram massacrados pelos colonizadores sem a intervenção da Igreja. No máximo, iam ministrar os sacramentos para os condenados.

Ainda fazendo referência à ideologia do embranquecimento, lembramos o artigo 2º, do decreto nº7967, de 18 de setembro de 1945, assinado pelo então Presidente Getúlio Vargas, que diz: "Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional".

Somente em 1960, com a assinatura da Lei Afonso Arinos, que punia todos os atos de discriminação racial, as Congregações Religiosas do Brasil tiraram de seus estatutos e normas internas os artigos e cláusulas que proibiam a entrada de negros (as), mestiços (as) para a vida religiosa.

TERCEIRO PROJETO

A partir de 1968, com as Conferências de Medelim e mais à frente, com Puebla (1979), a proposta passou a ser evangelizar a partir da situação concreta e histórica do povo oprimido e excluído, configurando, assim, o terceiro projeto de evangelização. Este povo oprimido reunia principalmente negros e índios, e as articulações entre esses se faziam necessárias. Nesse contexto, começaram a surgir os grupos de base formados por negros católicos culminando, em 1983, com a fundação do grupo de Agentes de Pastoral Negros.

Em 1988, a CNBB, após muita pressão da comunidade negra católica, assume como tema da Campanha da Fraternidade "A Fraternidade e o Negro". Foi o resultado da mobilização dos grupos de pastorais de base. Essa iniciativa projetou o trabalho dos APNs/Agentes de Pastoral Negros, que conquistaram espaços para reflexão sobre a condição sócio-econômica de homens e mulheres negras, além de despertar a Igreja à participação enquanto agente de promoção de trabalhos que respeitam a diversidade e valorizam a pluralidade cultural e étnica.

QUARTO PROJETO

De 1988 até nossos dias, tem prevalecido o retorno do conservadorismo dentro da Igreja Católica. Volta-se para si mesma e absolutiza um “espiritualismo”, amedrontada diante do Espírito que sopra onde quer, mesmo fora da instituição Católica Romana. A proposta deste quarto projeto de evangelização está muito ligada ao medo da voz dos oprimidos. Na questão racial, havia o medo à revolta negra em prol dos seus direitos. O Cardeal do Rio de Janeiro foi um dos expoentes desse medo, expulsando os religiosos negros que se organizavam em várias regiões do Brasil, tendo como base a cidade do Rio de Janeiro, para lutar por seus direitos e exigindo uma Igreja mais democrática.

O retorno ao conservadorismo e a uma compreensão de oração, desligada dos problemas estruturais do povo, como escolha mais eficaz na solução dos problemas começam a ganhar mais impulso. A tendência dos grupos passa a ser a de realizar trabalhos mais internos, na tentativa de não perder os espaços já conquistados anteriormente. O projeto latino-americano perde um pouco sua força à medida que os agentes negros que tiveram um bom ânimo no começo, perderam-se no caminho, esmorecendo seu entusiasmo na luta. Os negros católicos comprometidos são, principalmente agora, religiosos e religiosas que tentam trabalhar a partir dos movimentos civis, a fim de combater a discriminação racial e outras formas de exclusão. Valorizam a atuação pela construção de um mundo melhor por meio de iniciativas junto ao poder público e no processo educacional, através da constituição de uma rede de Cursos Pré-Vestibulares para Negros e Empobrecidos, para promover a cultura negra e de conscientizar a partir da compreensão da Educação, respeitando a diversidade.

III - COMO O POVO NEGRO CATÓLICO SE ORGANIZOU NESTES 507 ANOS?

A comunidade negra ama a liberdade. Seu avançar social passa pelo religioso. A organização religiosa só é possível se nela há busca por liberdade. A primeira grande experiência dessa busca foi experimentada nos quilombos reunidos em Palmares. A comunidade quilombola, por ser radicalmente livre do domínio do pensar político e religioso dos colonizadores, tinha total liberdade e motivo para rechaçar a influência da Igreja Católica e todos os seus símbolos religiosos. No entanto, não foi isso que aconteceu. O povo quilombola foi capaz de distinguir os valores religiosos, por direito e por justiça que traziam os evangelhos, da prática dos que se diziam "donos" da fé católica: os colonizadores.

Os Quilombolas poderiam, naquele novo espaço de liberdade, aterem-se somente à sua compreensão religiosa tradicional africana. Entretanto, eles sabiam diferenciar Jesus Cristo e seu Evangelho da prática dos cristãos colonizadores em terras brasileiras. OS QUILOMBOLAS REPROVAVAM a prática religiosa dos cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente, mas, por outro lado, souberam perceber o potencial libertador trazido por Jesus e seu Evangelho e o abraçaram. Na guerra contra os palmarinos, em 1645, chefiado por BLAER - REIJEMBACH, o escrivão relata que encontrou no centro do Mocambo cujo nome era GRANDE PALMARES, um espaço religioso com imagens de Santos Católicos, entre elas a imagem do MENINO JESUS, ricamente adornada com objetos religiosos africanos. A inculturação, tão discutida hoje, já era algo normal, praticada no espaço de liberdade chamado QUILOMBO.

Os Sacerdotes eram escolhidos entre os mais capazes, que possuíam espírito de liderança, sabedoria e profundo conhecimento da natureza. A intimidade com o DEUS PAI TODO-PODEROSO, chamado de OLORUM = OLO + ORUM (senhor do orum, ou seja: senhor de todos os espaços terrestres e celestes), era a principal qualidade nos Sacerdotes. Já entendiam como normal e natural o Sacerdócio casado, bem como o Sacerdócio feminino, dimensões ainda hoje, em pleno século XXI, negadas pela principal religião ocidental.

Os quilombolas desenvolveram outros valores que devem estar presentes hoje na atuação de todos os (as) negros (as) conscientes que atuam em qualquer religião. São eles:

a) A FÉ EM UM CRIADOR

A fé num Deus Criador da vida é uma energia presente em todos os povos do mundo. A fé desenvolvida pelos afro-brasileiros permitia o surgimento de um novo código de postura ética a partir da tradição milenar africana. A observação coletiva desta fé-tradição, canalizando-a para o bem comum do grupo humano, é o que se chama de MÍSTICA.

A Mística dos povos afro-brasileiros dos quilombos apontava para a busca da unidade na diversidade . Para eles, qualquer índio, qualquer branco que quisesse abraçar aquele projeto, mesmo sendo de outras culturas, poderiam ser acolhidos e integrados ao mesmo, pois assim compreendiam a tarefa do homem religioso.

b) UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA E PLURIÉTNICA

Os Quilombos eram espaços de liberdade onde NEGROS, ÍNDIOS E BRANCOS POBRES, juntos, gestavam o AMANHÃ DO BRASIL. Todos os que abraçavam aquele projeto multiétnico habilitavam-se a ser construtores da nova sociedade. Era uma maneira concreta e direta de protestar contra a sociedade colonial vigente de ÚNICA ETNIA, em que índios e negros só tinham espaço na condição humilhante de escravos. A produção e ampliação das desigualdades sociais formavam o principal produto social daquela sociedade colonial. A submissão de todos os que não fossem ocidentais era o objetivo sempre presente, e com essa visão tentaram também MONOPOLIZAR DEUS, tornando-o MARCA REGISTRADA legitimadora de suas ações avassaladoras. Deus privilegia, neste momento, enquanto gerador de uma proposta IGUALITÁRIA e MULTIÉTNICA, sem dúvida, os espaços que valorizavam a Igualdade multiétnica, os QUILOMBOS. No entanto, o poder da persuasão ocidental levou a história brasileira a navegar na CONTRAMÃO do direito e da justiça de Deus por longos séculos, abraçando a proposta colonial de ÚNICA ETNIA DOMINANTE e a desigualdade, dando ênfase no TER e POSSUIR, em detrimento do SER e PARTILHAR.

c) TROCA INTERCULTURAL

No Quilombo de Palmares, encontravam-se presentes e convivendo harmoniosamente valores culturais negros, indígenas e ocidentais. Todos sabiam dar e receber, pois se reconheciam filhos do mesmo tronco, que é Deus. As culturas, quando bem entendidas, sempre foram e serão instrumentos de congraçamento. Só é possível surgir conflitos culturais quando um grupo sente-se superior a outro, e assim, a todo custo, insiste em subjugar, limitar ou proibir o que imagina ser ameaça. Um dos maiores ataques à humanidade e a Deus partiu justamente da cultura ocidental dominante que, usando todos os meios violentos possíveis, tentou reduzir a cinzas as culturas indígenas e negras, negando a sua participação de forma igualitária na construção do Brasil ideal que queremos. Justamente essa prática a comunidade negra não aceita adotar. É um dos povos do mundo mais abertos a outras culturas e, ao mesmo tempo, NÃO PERDE TOTALMENTE A SUA PRÓPRIA CULTURA.

d) SIMBIOSE LINGÜÍSTICA

No espaço de liberdade chamado de QUILOMBO, todas as culturas presentes podiam contribuir para a construção da língua ideal, sem discriminação planejada e com grande senso de BEM COMUM. Os vários quilombos são responsáveis pela introdução de mais de duas mil palavras nos usos e costumes lingüísticos do Brasil. Exemplo: MIMO - palavra do corpo lingüístico BANTU, que quer dizer CARINHO, DELICADEZA.

Os Quilombolas colocavam em seus filhos e nas localidades, livremente, nomes Africanos, Indígenas e Ocidentais. Estavam abertos à diversidade, sem problema. Exemplo: OSENGA, ANDALAQUITUCHE, ACOTILENE (Africanos); COLOMIM (Indígena); JOÃO, LIMOEIRO, SÃO JOSÉ DA LAJE, etc. (Ocidentais).

e) VALORIZAÇÃO DA VIDA

Toda estrutura organizativa, social, política e religiosa do Quilombo de Palmares tinha como uma das principais finalidades a VALORIZAÇÃO DA VIDA. Ela consistia em, fundamentalmente, ajudar os quilombolas a crescer com auto-estima positiva, superando toda humilhação passada no contato com o setor dominante colonizador. Gostar de si, de seu povo, seus traços físicos, seus cabelos, de seus costumes, de sua identidade cultural era dizer GOSTO DA VIDA! GOSTO DO AUTOR DA VIDA! Portanto, professar amor à vida era uma forma de vivenciar e professar o amor ao DEUS DA VIDA. Na compreensão antropológica africana, a felicidade de viver deveria ser sempre celebrada. Daí compreendermos que o viver africano é uma eterna liturgia celebrada com o corpo, pois era e é a forma mais autêntica, transparente e profunda de unir VIDA EM DEUS! Tudo é MÍSTICA DE RESISTÊNCIA!

f) INTEGRAÇÃO ECOLÓGICA

Para a Mística africana, a vida não é um atributo só da pessoa humana. As plantas, os animais, a terra, a pedra, a água, o ar, todos têm axé, ou seja, vida. Conseqüentemente havia grande comunhão com todos os elementos da natureza, em que a relação era de parceria e co-responsabilidade.

Se a proposta ideológica dos Quilombos tivesse contagiado o Brasil, jamais teríamos os vários acidentes ecológicos verificados ao longo dos anos. O código ecológico vivido até hoje pelas pessoas que têm consciência religiosa e cultural africana é um dos mais profundos do mundo e com melhor possibilidade de resultados práticos para o bem da sociedade. Não são necessários aprofundados estudos para se perceber a íntima ligação dos Orixás com a visão ecológica do universo.

IV - A RESISTÊNCIA ORGANIZADA APÓS 1888

Depois da Lei Áurea de 1888, o “espírito afro-indígena”, conservado na Senzala durante tantos anos, invade, EM SURDINA, os espaços culturais, sociais, econômicos e religiosos da Casa Grande.

Por volta de 1750, acontece o fortalecimento das Irmandades do Rosário dos Homens Pretos e outras associações congêneres. Grande objetivo delas era, a partir da fé e estrutura do poder católico, influenciar nas lutas pela implantação das leis de libertação. Além disto, as irmandades criaram táticas simples e eficientes que as transformaram num dos principais instrumentos de libertação do povo negro. Eram associações que aglutinavam homens livres, que trabalhavam, e uma percentagem do ganho de cada um era colocada num caixa comum todo mês. Se aquela agremiação (por suposição) tivesse 100 membros, eram 100 pessoas trabalhando e contribuindo a cada mês. Com aquele dinheiro, comprava-se a liberdade de 30 negros (as). No mês seguinte, já eram 130 associados trabalhando e contribuindo com o caixa comum. No final desse mês, em vez de comprar a liberdade de 30, comprava-se a liberdade de 50, e assim se sucedia, aumentando progressivamente o número de libertos.

Após a assinatura da lei áurea, de 1888 até 1970, não se consegue muitas informações sobre os trabalhos desenvolvidos pelos negros católicos dentro das estruturas eclesiais. A Igreja passa por um rígido processo de romanização e tudo o que não for da cultura romana (ocidental - européia), é tido como impuro, demoníaco, etc. Nesse prisma, o negro sofre por fortes incompreensões.

Por volta de 1937, temos um exemplo: a Irmandade do Rosário de São Paulo é ameaçada de ser transferida do Largo do Paissandu, região central da cidade de São Paulo, para ser colocada em outro lugar. No local, seria feita pela prefeitura uma grande urbanização e a colocação um busto do Duque de Caxias. A resistência e a força religiosa da Irmandade foram determinantes para a prefeitura mudar de planos. Até hoje, a irmandade está firme e continua a ser ponto de referência histórica para a comunidade afrodescendente paulistana.

As irmandades continuam até hoje, capengando, sem a força política e ideológica dos tempos áureos. Grande parte está sob a direção de pessoas negras e brancas de direita, no espectro político brasileiro.

Em 1978, acontece a retomada da organização dos negros católicos. Era a época em que a Igreja no Brasil estava refletindo o documento de trabalho preparatório para o encontro dos bispos, em Puebla, no México. Alguns padres, leigos e religiosos negros percebem que o documento está muito bom quando leva à reflexão sobre a situação dos empobrecidos e fazia uma "opção preferencial pelos pobres". No entanto, em nenhum momento o documento teve a coragem de dizer que aquele pobre tinha um rosto negro e/ou indígena. A constatação é levada à CNBB e essa cria uma força-tarefa cuja missão era escrever um texto sobre a situação do negro e o mesmo iria em anexo, dando subsídios aos bispos que iriam participar de Puebla. Terminada esta missão, esse grupo resolveu não esperar pelos bispos e começou a se articular enquanto negros e brancos comprometidos com a causa do Reino de Deus, a partir da chave de leitura afro-brasileira.

O grupo inicial começou a chamar outras pessoas e, periodicamente, fazia encontros de aprofundamento do assunto, em Brasília e São Paulo. O movimento cresceu em número e consciência política. Boa parte dos participantes vinha das CEBs, pastorais sociais e movimentos populares; alguns estavam totalmente comprometidos com partidos políticos de esquerda.

Apesar de ser aberto às demais religiões, o trabalho era marcadamente católico. A grande maioria, talvez 99%, era participante das várias pastorais e CEBs da Igreja.

Ao começar a discutir uma campanha nacional junto aos Bispos do Brasil para convencê-los a aprovar o tema do negro na Campanha da Fraternidade de 1988, parte das lideranças do GRUCON (que pregava o ecumenismo) foi radicalmente contra. Acreditavam que havia interesse do clero negro em ter domínio do processo. Mesmo assim, a campanha foi adiante e a votação na CEP da CNBB foi largamente a favor da proposta de incluir a discussão.

Frente ao crescimento dos APNs, vários grupos negros civis começaram a atacá-los. Chegavam a afirmar que era impossível que uma pessoa autenticamente negra pudesse permanecer na Igreja Católica, pois essa, historicamente, explorara o povo negro. Não conseguiam perceber que o grande desafio seria este: fazer com que as estruturas que um dia oprimiram o negro agora se colocassem a serviço desse mesmo povo negro.

O ano de 1987 é considerado o ano de ouro dos negros católicos. O despertar da consciência negra estava acontecendo em todos os cantos do Brasil. A aprovação e preparação para a Campanha da Fraternidade de 1988 estavam criando oportunidades. A Igreja, apesar de muitos conflitos, estava sendo o grande espaço de ressurreição do povo negro. Um setor da Igreja, através dos próprios negros e brancos solidários, estava cumprindo o seu papel de evangelizadores integrais e inculturados e isso estava gerando uma nova visão.

As articulações específicas dentro do mundo negro católico ganharam corpo. Eis alguns casos:

1- Realiza-se o I Encontro Nacional de Padres e Bispos Negros, com boa participação e com propostas concretas, inclusive enviando cartas para Roma solicitando abertura para início dos estudos do Rito Católico Afro-Brasileiro.
2- As Religiosas Negras de Jesus Crucificado ganham impulso. Além de realizarem seus encontros nacionais, o fazem também em nível regional.
3- Os Franciscanos Negros decidem convocar o I Encontro Nacional de Franciscanos Negros.
4- Religiosos negros de outras congregações começam a despertar para essa realidade. Por exemplo: Verbitas Negros, Missionários Negros do Sagrado Coração de Jesus, Irmãs Negras da Assunção, Negritude Capuchinha, Negritude Xaveriana, Salesianos Negros, etc. Várias dessas articulações só conseguiram clima interno para realizarem seus encontros alguns anos depois.
5- Em nível estadual, ganharam corpo os Encontros Estaduais de religiosos (as), seminaristas e padres negros. Em algumas dioceses, esses encontros não foram bem compreendidos. É o caso dos religiosos do Rio de Janeiro cujo IV Encontro Estadual foi realizado sob grande tensão. Proibido pelo Cardeal do Rio de Janeiro, chegou a ser manchete nos três principais jornais do país, em nove emissoras de rádio e em três redes de televisão, durante dois dias.
6- As jornadas dos Menores Contra a Discriminação ganham um grande impulso sob a animação do entusiasta e convicto da causa, saudoso Padre Batista. Vários estados começam a trabalhar a questão do menor, trazendo à luz esta denúncia: a grande maioria dos menores abandonados é composta de negros. Em cada dez menores assassinados, nove são negros!!!
7- Realiza-se o I Encontro de Formandos e Formandas Negros. A característica desse encontro foi singular: só iria reunir aqueles que estavam vivendo situações de conflitos em suas Congregações e por trás do conflito estivesse presente a questão racial. Foi no Convento Franciscano do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis/RJ, sob a coordenação da Articulação dos Franciscanos Negros, e com uma rica reflexão desenvolvida por Frei Leonardo Boff.
8- Cresce a reflexão sobre a situação da mulher negra na sociedade. Começa-se a dizer abertamente que o homem negro em processo de libertação das estruturas discriminatórias da sociedade precisa ser capaz, também, de olhar para a sua relação com a mulher negra: não estaria ele reproduzindo contra a mulher negra a mesma opressão que sofria da sociedade?

Com a chegada do ano de 1988, ano em que se escolheu como tema da Campanha da Fraternidade "A Fraternidade e o Negro", a Igreja teve uma bonita e profética atitude: reconhecer que ao longo da história do Brasil ela esteve mais à mesa da Casa Grande, almoçando com os senhores de fazenda, que nas senzalas, ajudando o povo a ler o evangelho da libertação, lutando por seus direitos.

A Campanha da Fraternidade de 1988 mantém e prolonga o "período de ouro" dos negros católicos. Em várias dioceses, os APNs assumem um nível de organização invejável. É o caso da Arquidiocese de Vitória/ES. A aproximação com o bispo local é trabalhada faz crescer uma relação madura, sincera e incentivadora por parte do bispo auxiliar de Vitória. Nas suas colocações, vê-se uma Igreja que faz um grande esforço para que o negro tenha voz e vez dentro do conjunto da Igreja. Ele demonstra lutar junto, para que o negro tenha todo o espaço dentro da Igreja. No entanto, ele lembra indiretamente a mútua responsabilidade. Além de voz e vez, é preciso ter radical compromisso com o ser Igreja, ajudando-a a se libertar de uma história de omissão e construindo uma nova história. Em outras palavras: é fundamental lutar pelos direitos e deveres dentro da Igreja. Em várias regiões do Brasil, os APNs tinham um discurso cerrado pelos direitos, mas pouco se falava nos deveres. Esse aspecto foi determinante para aumentarem os conflitos em todas as regiões do Brasil. Foi fundamental resolver esse problema de identidade que tem prejudicado os negros católicos ao longo dos anos, atrofiando o processo de crescimento.

Várias dioceses, com prática pastoral libertadora, questionavam se os APNs eram pastoral ou movimento? Se fossem assumidos como pastoral, ter-se-ia um tratamento próprio, como todas as demais pastorais. Do contrário, como movimento, ter-se-ia um tratamento comum dispensado aos demais movimentos. O motivo da dúvida: em muitas regiões, os APNs se apresentavam como movimento mas queriam um tratamento de pastoral.

No encontro das CEBs em Duque de Caxias, em 1989, é distribuída uma cartilha com o título: "Brasil: assuma seu rosto". O objetivo era o de aprofundar a ligação com as CEBs e partilhar um pouco o rumo da caminhada APN. Ali, em 14 pontos, se apresentavam os objetivos dos APNs.

Em várias dioceses, periodicamente, representantes dos APNs participavam da reunião do clero local para partilhar a caminhada. Isso mostrava que no diálogo e busca de entendimento estava a solução dos conflitos. Infelizmente, assim que um setor dos APNs , nesses diálogos, dizia que não era pastoral orgânica mas sim um movimento, os padres, líderes leigos, bispos, foram mudando o tratamento: passaram a tratar os APNs como movimento e não mais como pastoral.

Algumas dioceses chegaram mesmo a anunciar que não aceitariam a Campanha da Fraternidade de 1988 em suas dioceses. Já outras seguiriam o material paralelo elaborado pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, na Igreja do Brasil, em 25 anos, uma Campanha da Fraternidade tem suas deliberações não aceitas por um conjunto de dioceses. Isso é o suficiente para convencer de que o tema tinha muita verdade e questões para serem trabalhadas. Não se podia ter medo da verdade ("a verdade vos libertará"). A imprensa divulga a atitude separatista e o grupo de religiosos tenta partilhar sua reflexão sobre o conflito. Assim se expressaram: "É só isto o que queremos: que a população negra ressuscite nesta sociedade! Ressuscitar na sociedade é poder beneficiar-se de tudo aquilo que nós produzimos e não podemos usufruir"!

Outras dioceses conseguem criar boas equipes de Campanha da Fraternidade de 1988, contando inclusive com religiosos negros, e desenvolvem um bom trabalho diocesano. É o caso da Diocese de Niterói, que foi uma das mais atuantes, enquanto estrutura orgânica, de todo o Estado do Rio de Janeiro.

A questão da liturgia inculturada ganha impulso no seu despertar em todo o Brasil, provocada pela Campanha da Fraternidade de 1988. Em quase todas as regiões onde se anunciava a realização de uma missa, casamento ou batizado afro, o espaço era quase sempre pequeno para o público interessado. A eucaristia voltava a recuperar o seu sentido mais profundo de festa, alegria, refeição, partilha. A comunidade negra começava a estudar e pesquisar mais o assunto e assim surgem vários textos refletindo sobre a questão. Fica-se surpreso com o número pequeno de padres e bispos que se fecham ao diálogo sobre o tema; ao mesmo tempo, descobre-se que há muitos leigos fechados. Desse fato, vem o questionamento: Como vencer a formação conservadora passada pela Igreja nestes 500 anos?

Apesar de todos os encontros e desencontros, foi o período da história da evangelização do Brasil em que o povo negro, através de seus convictos agentes, mais caminhou e construiu a proposta que podemos chamar de projeto alternativo de evangelização. É algo pequeno, mas intenso!

Conflitos de poder surgem nos APNs e esse grupo se afasta da hierarquia da Igreja, assim como já havia se afastado, anteriormente, nos anos 80, o Grupo de União e Consciência Negra. Articula-se, dentro da CNBB, outro nome: a Pastoral do Negro, com o objetivo de ocupar o espaço vago deixado pelo conflito dos APNs com setores da Hierarquia da Igreja. A Pastoral do Negro tenta retomar o ritmo e encontra grandes dificuldades. Passa a ter uma sala e um padre liberado para a missão de articulação dentro da CNBB, mas não encontra muita receptividade no conjunto da Igreja e dos Bispos... Tem atuação, mas sente que poderia crescer 100 vezes mais...

Ao longo desses 507 anos, o negro católico viveu como um pêndulo. Na década de 80, a ação do negro católico e de setores da Igreja funcionou como se fosse o desamarrar do pêndulo. Todo pêndulo, ao ser desamarrado, tende a ir para o outro lado e não parar no meio, como em situação de repouso. Repouso é um estágio a conquistar. O mesmo acontece com a caminhada do povo negro: os conflitos que surgiram devem ser entendidos como naturais, fazendo parte do processo de libertação; no entanto, o objetivo de todos não é o conflito, mas sim o equilíbrio, que virá com as conquistas das garantias da cidadania do povo negro na sociedade e na Igreja.

V - CONCLUSÃO

Acreditamos que estamos vivenciando uma das fases mais nobres da comunidade afro-descendente brasileira. Estamos num ritmo de produção de reflexão bastante fértil. A produção intelectual é fase decisiva para ajudar na mudança que sonhamos. A articulação das forças afrodescendentes civis com as religiosas nunca estiveram num estágio tão avançado como nos últimos cinco anos.

A experiência educativa popular e racial iniciada pela Pastoral do Negro juntamente com o Grupo de Religiosos, Seminaristas e Padres Negros através do GRENI cresceu e se alastrou em toda sociedade periférica do Rio de Janeiro e do Brasil. Estima-se mais de 2.300 grupos de cursos pré-vestibulares comunitários da Educafro e outros, em várias religiões e entidades, sendo que boa parte trabalha a questão racial. O Pré-vestibular Educafro, para Afro-descendentes e Carentes, que nasceu a partir da Pastoral do Negro, já é uma grande realidade e está mudando o perfil dos afro-descendentes brasileiros.

Houve um grande avanço da atuação dos negros católicos na conquista pela implantação de políticas públicas nos quatro cantos do Brasil; tudo isso feito em sintonia com as demais entidades do movimento negro. As Ações Afirmativas nas universidades e nos estabelecimentos bancários passam a ser a grande bandeira dos negros católicos, com grande sucesso e resultados concretos sentidos pela própria comunidade negra em geral.

O PROUNI – Universidade para Todos, plano de concessão de bolsas de estudos de ensino superior, do governo federal, em universidades filantrópicas ou não, nasceu nessa luta e já colocou mais de 100 mil afro-brasileiros em universidades particulares. Esse resultado será largamente visto nos próximos 10 anos, quando esses alunos estiverem formados e inseridos no mercado de trabalho. A opção pelo investimento em Educação está sendo um dos passos mais acertados para a comunidade afrodescendente nos últimos anos.

Frei David Santos, OFM, fundador de uma rede de 255 Pré-Vestibulares para Afrodescendentes e Carentes – Educafro. Contato: freidavid@franciscanos.org.br