A saúde encontra-se nessa reflexão como uma das possibilidades de sentido dos corpos em sua construção cultural. Falar de saúde é dar expressão ao corpo em sua integralidade. É escutá-lo como corpo expressivo, sensível, vulnerável, transcendente, marcado por experiências pessoais singulares e coletivas que podem ser de inclusão ou de exclusão ao defrontar-se no cotidiano.
Para Jacques Le Goff 1 o jogo da saúde e da doença pertence à história, acima de tudo pelo confronto que este binômio apresenta aproximando ou não o corpo de sua finitude: “a doença pertence à história, em primeiro lugar porque não é mais do que uma idéia, um certo abstracto numa ‘complexa realidade empírica’, e porque as doenças são mortais. [...] A doença pertence não só à história superficial dos progressos científicos e tecnológicos como também à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições, às representações, às mentalidades.” Desse modo, será sempre fundamental investigar os jogos de poder que permitem às diferentes culturas criarem seus critérios para estabelecer sua concepção de saúde e de doenças, bem como os usos e abusos a que ambas estão sujeitas criando culturas próprias e refletindo sobre os corpos. E nesse bojo cultural, a religião como uma de suas instituições importantes na formação de mentalidades, não pode ser esquecida.
Lugar comum ou sintonia com as perspectivas da Organização Mundial da Saúde 2 seria afirmar que a saúde é muito mais do que a ausência de doenças. Constitui-se em um direito muito mais amplo de afirmação da vida e de construção da cultura, na qual o ser humano tenha acesso não apenas às suas condições básicas (de alimentação, moradia, higiene, educação, trabalho, lazer, prática de esportes e acesso ao conhecimento e tratamentos médicos disponíveis na sociedade em que vive), mas que haja espaço para seus desejos e vontades. É preciso mais do que sobreviver para criar cultura e ser, ser humano, no mundo.
A indignação cotidiana com uma organização cultural que desqualifica os muitos corpos para preservar a vida de alguns salta no caminho como exigência de que nossas reflexões não sejam apenas revisões aos saberes importantes acumulados na história da humanidade.
Os corpos maltratados, descartados e sofridos se impõem nessa reflexão sobre religião e saúde. A incidência elevada deles nas estatísticas, sua despersonalização, sua quantificação e redução aos espaços que outros corpos não circulam precisa ser nomeada de saída, mas não como ênfase em processos de vitimação da maioria da população brasileira ou do mundo, mas como visibilização necessária de um cenário que está longe de ser alterado. É importante que esteja em foco, como realidade da qual não se pode desligar se quisermos de fato tratar de saúde e religião no universo cultural plural em constante construção no qual nos movemos. Ainda que as denúncias possam e precisem ser feitas, há uma subversão dos corpos no reinventar a saúde no cotidiano que em muito supera tanto a tentativa da ciência positivista em dominar os conhecimentos sobre a saúde do corpo para afastá-lo da morte, quanto a mercadorização em que se transformou a saúde na economia de mercado capitalista.
O corpo em seu movimento cotidiano, através de diversas linguagens, anuncia seus desejos e sentidos. Criando cultura, cultivando projetos e sonhando horizontes proclama a vida com dignidade, afirma sua saúde na contramão de um sistema que multiplica as formas do morrer. Desse modo, a cultura compreendida como uma construção social significativa para os seres humanos a partir de suas relações, exige que se considere a diversidade e pluralidade como sua marca fundamental. Segundo Ernst Cassirer 3, o ser humano está aberto ao processo de construção cultural por necessitar da mediação simbólica para organizar sua existência no mundo. Isto é, ele:
Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são parte deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. [...] Já não é dado ao homem enfrentar imediatamente a realidade; não pode vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. [...] Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum. [grifo acrescentado]
O universo simbólico, do qual a religião faz parte, não é neutro no que diz respeito ao tema da saúde. A busca de explicações da saúde e da doença em causas sobrenaturais ou como manifestação da vontade dos deuses é uma realidade observada em diferentes civilizações já desde a Antiguidade. Cada sociedade com maior ou menor intensidade recorre às tradições religiosas disponíveis para ler e enfrentar seu cotidiano.
Historiadores como Jean Delumeau e Jacques Le Goff, que contribuíram para o conhecimento sobre a Idade Média no que diz respeito à sua construção do pensamento e das marcas profundas sobre a concepção ocidental de mundo, apontam para o fato de que as pestes, as doenças graves sem perspectivas de curas eram atribuídas a pecados individuais ou coletivos. Esse fato gerou ao longo da história inúmeros processos de exclusão social, de rituais de sepultamento de pessoas vivas e incontáveis condenações à morte, como mecanismos de proteção e "salvação" da coletividade.
A profunda aproximação de saúde-doença e vida-morte com a vontade divina, foi eixo da construção de uma interpretação punitiva às pessoas portadoras de doenças graves. Isso se pode observar no caso da hanseníase (denominada lepra, na época), ao longo da Idade Média. O combate não era à doença, mas à pessoa enferma. A pessoa perdia sua identidade civil e religiosa. Ou se praticava o extermínio delas ou sua exclusão da comunidade era precedida por rituais civis (de julgamento, em alguns casos) e rituais religiosos, nos quais a pessoa doente era declarada morta, com possibilidade de ressurreição após a morte, segundo a vontade de Deus.
O processo de culpabilização da pessoa estava em paralelo com uma perspectiva de que o transcendente se movia na base da troca, da recompensa, da retribuição ao mérito das pessoas. Não raras vezes, ainda hoje, algumas pessoas se perguntam: “O que eu fiz para merecer isto, meu Deus?”
A Aids em seu princípio histórico, no início dos anos 80, do século passado, trouxe à luz um repertório de preconceitos e estigmas que estavam adormecidos na consciência de muitas pessoas ou silenciadas propositalmente por outras. A constatação do aparecimento do vírus fez emergir não apenas as questões de ordem da saúde, mas trouxe à tona questões de cunho moral e religioso que prontamente se organizaram em um discurso normativo culpabilizador do corpo e suas relações.
A compreensão que associa a doença a um castigo divino e a cura a uma benção, fruto de arrependimento da pessoa pelo pecado, ficou mais fortemente abalada pela associação que a Aids trouxe não apenas com os medos ancestrais das doenças e da morte, mas por trazer à tona a questão da sexualidade vivida, mas sem permissão de ser debatida, refletida. O fato de não enfrentar as questões fortes e pendentes da sexualidade não é privilégio das religiões. Muitos outros setores sociais e campos de saber não a enfrentam. Fazer piadas tem sido um jeito de adiar a discussão séria e disseminar preconceitos e estigmas.
Na tradição judaico-cristã, que é uma das matrizes religiosas presentes na realidade brasileira, predominou uma concepção teológica sacerdotal, oriunda do século IV a.C., na qual as purezas e impurezas do corpo manifestavam a benção ou castigo divino. A despeito de não ser esta a única concepção teológica veiculada na Bíblia sobre saúde e doença, foi esta a que prevaleceu em sintonia com outros simbolismos culturais e religiosos de outras matrizes.
Independentemente de concordarmos ou não com tal associação – e, particularmente, penso que temos de confrontá-la duramente –, é de se constatar que nesse aspecto residem tramas de poder dos discursos religiosos mais predominantes. Há mecanismos de controle sobre a corporeidade e o social que normatizam a vida trazendo reflexos econômicos e políticos fundamentais. Não é à toa, por exemplo, que em muitas partes do Brasil se vive com a crença de que a morte é da vontade de Deus. “Deus deu, Deus tirou...” Pergunto, as crianças do nordeste morrem de vontade de Deus ou de fome? E a crescente epidemia de Aids é por castigo de Deus ou por mecanismos que não nos permitem rever e dialogar sobre as relações sociais de poder de gênero, de classe e de etnia que atravessam as múltiplas questões que envolvem a sexualidade. Os mecanismos simbólicos de aprisionamento dos corpos é uma das forças da religião, não há como ignorar este dado ao tratar da temática da saúde.
A correlação estabelecida entre o comportamento das pessoas e sua culpabilidade, entre o mal ou a doença que acontece em seu corpo parece ser uma necessidade humana de explicar seus impasses diante da morte, e, não menos importante para os mecanismos de controle promovidos religião. Desse processo de culpabilização, forte no imaginário de várias tradições religiosas, a perspectiva do sacrifício e do sofrimento, como caminho de arrependimento e de oferenda, estabelece sintonia com a perspectiva de um sagrado que se manifesta por meio da retribuição.
A perversidade desta leitura teológica precisa ser enfrentada duramente se quisermos afirmar o compromisso de Deus com a vida, e vida digna para todas as pessoas. Muitos dos processos de “cura divina” anunciados por diversas igrejas encontram lugar nessa subjetividade que não é apenas religiosa, mas é a mesma que preside as relações de mercado. O espaço é o da troca, da busca de recompensa, de resolução imediata dos problemas. Desmistificar a doença e devolver às pessoas o controle sobre seus corpos é entrar em conflito com discursos que “demonizam” o corpo por sua doença e o controlam em nome da religião.
Os discursos religiosos, que justificam o sofrimento e o propagam como elemento redentor, são presas fáceis dessa subjetividade humana que se subordina ao outro, por não se perceber como vítima e que aceita a culpabilização imposta pelo sistema. Se esse imaginário prevalecer na experiência da Aids pouco se poderá fazer frente à lógica da economia de mercado. As idéias teológicas fundamentalistas estabelecem controle sobre as pessoas com finalidade de normatizar comportamentos políticos, econômicos, culturais e sociais. Não dá para não reconhecer que tais processos religiosos estão extremamente articulados à lógica do atual mercado capitalista globalizado.
A religião tem um potencial muito grande no processo de formação de opinião sobre a questão da saúde, entre outras importantes para a vida, e dependendo de como encaram a situação podem contribuir muito ou atrapalhar muito. Em relação ao HIV/Aids várias tradições religiosas têm cooperado muito no que concerne ao aspecto cuidando da vida, acompanhando e solidarizando-se com as pessoas soropositivas e seus familiares. No que diz respeito à prevenção ainda temos sérias dificuldades e elas podem ser maiores ou menores na dependência das concepções religiosas e teológicas e aquelas de cunho cultural que se misturam com questões teológicas e dogmáticas.
Para exemplificar melhor, muitas tradições religiosas cristãs, afro, indígenas têm superado ou se pronunciado fortemente contra uma perspectiva teológica de que a Aids é castigo de Deus e que a culpabilidade é do indivíduo exclusivamente. Esta concepção perversa desconsiderou o início da Aids que atingiu inúmeras pessoas nos processos de transfusão de sangue, em crianças nascidas de pais e mães soropositivos, ou de homens que contaminaram suas mulheres em vista da vida sexual ativa dentro e fora de casa, sem assumi-la de fato. Com isso, o aumento vertiginoso da soropositividade entre mulheres casadas, oriundas de relações “pseudo-monogâmicas”. Enfim, não há como não considerar que diante de um processo social de desigualdade de acesso à informação, à educação escolar básica, à saúde digna, à moradia e demais condições básicas de vida que aprofundam a gravidade da epidemia, a religião cumpre um papel fundamental de alargar ou aprisionar horizontes.
Sabemos que as tradições religiosas com seus entraves culturais transformados em dogmas no que diz respeito à sexualidade é um dos grandes complicadores no processo de prevenção, pois algumas tradições terão explicitamente o problema quanto ao aconselhamento do uso de preservativos (seja para casais dentro ou fora do matrimônio). Mas se este é um ponto de problema e preocupação, penso que o mais grave é a falta de diálogo aberto sobre os muitos tabus e interditos sobre a sexualidade. O não-dito é o principal problema pois muitas pessoas vivenciam sua sexualidade sem ter a possibilidade de discernir o que é melhor para elas, pois não se fala sobre esta realidade da experiência humana.
Considero que, em uma sociedade em que a erotização do corpo é promovida em diversos processos de mídia e de marketing, direcionadas não apenas ao mundo adulto, mas ao infantil, adolescente e jovem, a religião, em suas distintas tradições, não poderá se omitir de enfrentar a questão da sexualidade.
No âmbito das esferas institucionais de poder, que necessitam trabalhar a revisão de paradigmas, de aspectos culturais misturados a teologia e dogmas, a tensão está estabelecida e isto é importante pois acena para perspectivas de mudança, não tão breves, mas mudanças que enquanto não chegam fortalecem o que chamo de movimento transgressor nas práticas de base e nos movimentos ecumênicos de cuidado com a vida.
Penso que entre as tradições religiosas envolvidas fortemente com a questão da Aids prevalece o movimento de solidariedade e de busca de caminhos de como acompanhar as pessoas e famílias que tem alguém soropositivo, bem como contribuir dentro de seus limites institucionais e, muitas vezes, com práticas locais transgressoras a estas, para contribuir efetivamente no processo de prevenção e controle da disseminação da epidemia.
Muito já se caminhou nas ações pastorais solidárias das tradições religiosas para superar o decreto de morte às pessoas portadoras do HIV ao fazer a vinculação desta realidade a um castigo divino. Contudo, esse decreto continua sendo dado como recado às pessoas, no seu dia a dia, pela globalização. Por não enfrentarmos diálogos mais profundos e ecumênicos sobre a sexualidade, ainda estamos distante de denunciar os dogmatismos em sua historicidade e afirmar a vida acima de tudo.
Finalizo minhas contribuições e me coloco no diálogo e na escuta atenta às demais contribuições. Não raras vezes penso que, em nosso diálogo da religião e saúde, em especial em temas como a Aids, a intrépida ironia poética de Carlos Drummond de Andrade em “No meio do caminho” é a que acolhe minhas retinas fatigadas e me faz andar, apesar das pedras no meio do caminho.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
unca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Le Goff, Jacques et all. As doenças têm história. Lisboa, Portugal: Terramar, 1985, p.7,8.
“A saúde no entender da OMS é um estado de completo bem-estar físico, mental e social. A 32ª Assembléia Geral da OMS estabelece 10 pontos básicos que devem ser incluídos entre os cuidados primários da saúde: educação sobre os principais problemas de saúde, prevenção e controle dos mesmos; alimentação e nutrição adequados; água de boa qualidade; saneamento básico; cuidados de saúde materno-infantil; imunização contra as principais doenças infecto-contagiososas; prevenção e controle de endemias locais; tratamento de doenças e traumatismos; promoção de saúde mental; fornecimento de medicamentos básicos.” (Cunha, 1987, p.15)
Cassirer, Ernst. Antropologia Filosófica. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Mestre JOU, 1972,p. 50,51.