Esta edição do BDV aparece após uma saraivada de notícias que indica os efeitos da economia das drogas no País, nas áreas urbanas e rurais. Em especial, assistimos, não sem indignação, ao cerco militar de comunidades da periferia urbana, no Rio de Janeiro, sobremaneira a do Complexo do Alemão. Essa região é um conjunto de favelas, da zona norte do Rio de Janeiro, que se expande por vários bairros: Ramos, Olaria, Bonsucesso e Inhaúma. Há mais que quarenta dias e noites seguem os tormentos para aquela comunidade. Esta operação policial, que envolve também a Força Nacional, já resultou em dezessete óbitos e 50 feridos. Não é legítimo o discurso da contenção às práticas delituosas sem repressão policial. Na verdade, a noção de Estado democrático e de direito inclui aquela do papel repressivo legítimo do Estado – uso legítimo da força. Na teoria liberal isso implica no reconhecimento da defesa das pessoas e do patrimônio, uma perspectiva crítica o afirma a partir da defesa dos interesses coletivos e do Bem Comum de todas e todos. Porém, é ilegítimo que ações de eficácia duvidosa prossigam, ademais quando se fundamentam na criminalização de populações e espaços sociais marginalizados e periféricos.
Na mesma seqüência de notícias, além de várias operações da Polícia Federal de apreensões de grandes quantidades de drogas nas estradas brasileiras, foi apresentada recentemente, num programa de variedades, de domingo, numa das maiores redes de televisão, uma matéria sobre a erradicação de uma grande área de cultivo de maconha em Pernambuco. Indicou-se, naquela matéria, que a maconha era produzida em terras do governo federal, na cidade de Santa Maria da Boa Vista. Não apenas erradicou-se a área de cultivo, como foram detidos importantes gerentes do cultivo na região, como Negro de Lídio. Foram erradicados 1,2 milhões de pés de maconha nessa operação.Há apenas dois reparos a serem feitos.
Primeiro, as terras não são do governo federal, são uma conquista dos camponeses da região em luta por assentamento irrigado, em litígio durante o processo de construção da UHE Luiz Gonzaga (Barragem de Itaparica). Tanto assim, que a Polícia Federal adverte que os proprietários das terras poderão perdê-las (serão expropriadas para fins de Reforma Agrária) se ficar estabelecido qualquer vínculo com o plantio, doloso ou culposo. A identificação das terras como sendo do governo desqualifica a luta social que a conquistou. Além disso, faz parecer que a adesão ao cultivo da maconha foi uma escolha absurda. Basta conhecer as condições de vida e trabalho na agricultura lícita, e os seus resultados econômicos para divergir de semelhante opinião. E há ainda a questão da presença histórica do cultivo na região, desprezada absolutamente pelas políticas públicas para este tema.
Em segundo lugar, o gerenciamento do cultivo da maconha naquela região já criou sérios focos de tensão. Durante o final da década de 1990, naquela área, houve cooptação de mão‑de‑obra, também, por meios violentos, até mesmo com seqüestro de trabalhadores rurais. Isso levou às lideranças camponesas na região, que impulsionaram a conquista do reassentamento irrigado no sertão, a levantarem denúncias sobre esses processos. Culminaram esses fatos com o assassinato de Fulgêncio Manoel da Silva, em Santa Maria da Boa Vista, em outubro de 1997. Essa tensão e a convivência tolerante entre camponeses, que se agregam à cultura de substâncias qualificadas como ilícitas, e que se dedicam às culturas lícitas, carece de maiores interpretações das Ciências Sociais. No limite, isso pode chegar a crises de legitimação de autoridade e representatividade dos diferentes grupos sociais. E essa dimensão da questão desaparece na reportagem.
Por isso, como anunciamos no número anterior, teremos nesse ano uma atenção ainda mais dirigida para o cultivo da maconha e seus efeitos para a vida camponesa. Trata-se de um fenômeno econômico, que apenas na região de Pernambuco, segundo Gustavo Maia, do IPEA, em estudo de 2001, faz girar 100 milhões de reais por ano. Uma cifra bastante significativa para as débeis economias municipais daquela região. As questões históricas, políticas e sociológicas serão analisadas nos próximos números. Nessa edição partilhamos dois estudos com as nossas leitoras e leitores. Ana Gualberto, estudante de História, na UERJ, e assessora do Programa Egbé, em KOINONIA, apresenta uma análise das ações dos escravos na Feitoria Real do Cânhamo. Ela indica como a economia do cânhamo também foi incorporada como elemento que favoreceu às lutas de libertação dos afrodescendentes. A análise das notícias, apresentada no período de abril de 2005 a maio de 2007, sobre a erradicação de cultivos de maconha no Brasil é elaborada por este Editor. Nela podem ser identificadas as flutuações regionais desse processo e seus efeitos para as famílias camponesas das regiões em que o cultivo da maconha é presente e notado pela mídia.
É isso aí,
Boa Leitura!
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