Somos levados a falar em crime como se esta expressão traduzisse um conceito
natural que tivesse um denominador comum e estivesse presente em todos os tempos
ou em todos os lugares. Crimes, porém não passam de meras criações
da lei penal. Não existe um conceito natural que os possa genericamente
definir.
As condutas criminalizadas não são naturalmente diferentes de
outros fatos socialmente negativos ou de situações conflituosas
ou desagradáveis não alcançadas pelas leis penais. A enganosa
publicidade que sustenta o sistema penal oculta a realidade do caráter
puramente político e historicamente eventual da seleção
de condutas chamadas de crimes. O que é crime em um determinado lugar
pode não ser em outro; o que ontem foi crime, hoje pode não ser;
e o que hoje é crime, amanhã poderá deixar de ser.
Pense-se na mais sistemática, organizada e danosa manifestação
do proibicionismo criminalizador hoje subsistente em todo o mundo: pense-se
no que chamamos de drogas.
O proibicionismo leva à criação de leis penais que definem
como crimes condutas relacionadas à produção, à
distribuição (aí incluído não só o
comércio, mas qualquer forma de entrega a terceiros) e ao consumo de
algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas e matérias
primas para sua produção.
As substâncias psicoativas e matérias primas, que, assim selecionadas,
são chamadas de drogas ilícitas (como a maconha, a cocaína,
a heroína, a folha de coca, etc.), não têm natureza diferente
de outras substâncias igualmente psicoativas (como a cafeína, o
álcool, o tabaco, etc.), destas só se diferenciando em virtude
da artificial definição como criminosas de condutas realizadas
por seus produtores, distribuidores e consumidores.
Todas as substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas,
provocam alterações no organismo e dependendo da forma como forem
usadas podem eventualmente conter riscos e causar danos, não estando
aí, portanto, o motivo da diferenciação entre umas e outras.
Tampouco as substâncias, hoje qualificadas de drogas ilícitas,
foram sempre tratadas desta forma. Vale lembrar, por exemplo, que até
os anos 50 do século XX a França e a Inglaterra, valendo-se de
permissão prevista na Convenção de Genebra de 1925, produziam
e comercializavam ópio, sob regime de monopólio estatal, em suas
colônias indianas e indochinesas. Por outro lado, substâncias, hoje
lícitas, já foram ilícitas, bastando lembrar da proibição
do álcool, nos EUA, no período de 1920 a 1932, quando em vigor,
naquele país, a chamada “Lei Seca”.
Aquela artificial diferenciação permite apresentar as drogas
tornadas ilícitas como se fossem diferentes das demais substâncias
psicoativas, assim permitindo que as substâncias e matérias primas
proibidas e as condutas criminalizadas a elas relacionadas sejam identificadas
como um “perigo econômico e social para a humanidade”, como
no preâmbulo da Convenção Única da ONU de 1961, ou
como um “perigo de incalculável gravidade”, como no preâmbulo
da Convenção da ONU de 1988, ou ainda como um “flagelo”,
ou um “mal universal”.
Essa linguagem emocional, assustadora, demonizadora é uma característica
do sistema penal, funcionando como um instrumento particularmente importante
para o exercício do poder punitivo.
Pense-se, por exemplo, na expressão “criminalidade organizada”.
Jamais se conseguiu estabelecer – até porque não há
como fazê-lo – qualquer definição, com um mínimo
de cientificidade, que traduza o conteúdo desta expressão. Na
realidade, toda conduta, criminalizada ou não, que não se limite
a ser uma reação instantânea ou instintiva a determinada
situação, tem um componente de organização, que
se manifesta, ainda mais especialmente, quando se têm condutas que reúnem
mais de uma pessoa, com uma finalidade comum, o que ordinariamente acontece,
seja no campo das condutas lícitas, como no das ilícitas. A expressão
“criminalidade organizada” não tem nenhum significado particular,
apenas servindo para assustar e permitir a criação de leis de
exceção ou de emergência, violadoras de direitos fundamentais,
aplicáveis ao que quer que se queira convencionar como sendo uma suposta
manifestação de um tal imaginário fenômeno.
Pense-se ainda na expressão “narcotráfico”. A expressão
“tráfico” já contém a forte carga emocional
que costuma ser transmitida pela linguagem característica do sistema
penal. “Tráfico” significa negócio, ou mais propriamente
comércio ilegal. Falar em negócio ou em comércio ilegal
não tem a mesma força que falar em “tráfico”.
Mas, nem isso bastou. As atividades relacionadas à produção
e à distribuição das drogas qualificadas de ilícitas
passaram a ser referidas como “narcotráfico”. A carga emocional
é ainda maior, dando a idéia de algo mais poderoso. E esta expressão
é repetida sem que se perceba – ou se queira perceber – seu
claro descompromisso com a realidade e com a ciência. Para criar o útil
e exacerbado clima emocional, passa-se, tranqüilamente, por cima do fato
de que um dos alvos principais do proibicionismo é a cocaína,
que, como não se pode ignorar, não é um narcótico,
mas, ao contrário, um estimulante.
Ocultando-se os riscos e os danos causados pelo proibicionismo criminalizador,
as atividades econômicas de produção e distribuição
das drogas qualificadas de ilícitas são, enganosamente, apresentadas,
através dessa linguagem emocional, assustadora, demonizadora, como algo
extremamente poderoso e incontrolável por meios regulares, a ameaçar
a segurança e a tranqüilidade de todos.
Com isso se cria um clima de alarme social em torno daquelas substâncias
artificialmente diferenciadas e se abre espaço para a ampliação
do poder punitivo, que cada vez mais incorpora ao controle social exercido através
do sistema penal estratégias e práticas que identificam o anunciado
enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra tornada preventiva
ou ao combate a dissidentes nos remanescentes Estados totalitários. A
figura do "inimigo", ou de quem tenha comportamentos vistos como diferentes,
“anormais” ou estranhos à moral dominante, se confunde nos
perfis do “criminoso”, do “terrorista” ou do “dissidente”.
A expressão “guerra contra as drogas” é bem ilustrativa
desse fenômeno.
A “guerra contra as drogas” não é apenas contra as
drogas. Como quaisquer guerras, ela se dirige contra pessoas. Aqui a guerra
é contra as pessoas dos produtores, distribuidores e consumidores das
substâncias e matérias primas proibidas.
O estigma trazido pela idéia comum de crime é acentuado por
aquelas idéias do “flagelo”, do “mal universal”,
da “criminalidade organizada”, do “narcotráfico”.
Os preconceitos, que se formam a partir daí, fortalecem a crença
em falsas informações e propiciam a criação da figura
de convenientes “bodes expiatórios”, cuja funcionalidade
política se manifesta em diversos níveis.
No plano internacional, a “guerra contra as drogas” inverte as
leis da economia, para responsabilizar os países produtores e exportadores
das drogas tornadas ilícitas pela demanda que, naturalmente, se forma
de maneira mais acentuada nos países mais desenvolvidos. Assim foi criado
o que Rosa Del Olmo apropriadamente chamou de “o estereótipo delitivo
latino-americano”.
Internamente, em cada país, os empresários e os trabalhadores
das empresas produtoras e distribuidoras de drogas qualificadas de ilícitas,
estigmatizados como “traficantes”, ou ainda mais demonizados como
“narcotraficantes”, recebem toda a carga negativa transferida para
os que, como eles, cumprem o papel de “bodes expiatórios”
de todos os males.
No Brasil, essa carga negativa atinge ainda mais especialmente os pequenos
empresários e trabalhadores que, vivendo nas favelas ou periferias dos
grandes centros urbanos, fazem do comércio das drogas qualificadas de
ilícitas a fonte de sua subsistência, encontrando nessa atividade
a única possibilidade de viver com dignidade, embora pagando o preço
de vidas que se extinguem prematuramente.
A figura do “inimigo” recai sobre esses pequenos empresários
e trabalhadores, estendendo-se a quem a se assemelha à sua imagem. Basta
lembrar das intervenções das Forças Armadas no Rio de Janeiro,
que, desviando-se das funções que a Constituição
Federal brasileira lhes atribui, ocuparam favelas como se todos que ali habitam
vivessem em um território inimigo.
Esses “inimigos”, esses “traficantes”, esses “narcotraficantes”
são, em sua grande maioria, jovens ou mesmo crianças, muitos deles
empunhando metralhadoras ou fuzis, que, quase do seu tamanho, substituem os
brinquedos que não têm ou não tiveram em sua infância.
Matam e morrem, envolvidos na violência causada pela ilegalidade imposta
pelo proibicionismo ao mercado das drogas tornadas ilícitas. Sempre se
deve lembrar que não são as drogas que causam violência.
A violência só se faz presente nas atividades de produção
e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas porque
seu mercado é ilegal.
Esses “inimigos”, esses “traficantes”, esses “narcotraficantes”,
esses jovens e crianças das favelas e periferias brasileiras têm
de enfrentar a polícia em conflitos regulares ou na repressão
informal, têm de enfrentar os delatores, os concorrentes que vêm
tomar seus negócios ou quando vão tomar os deles. Têm de
se mostrar valentes, precisam garantir seus efêmeros ganhos, seus pequenos
poderes, sua vida. Sem a oportunidade de realizar seus sonhos, sem esperança
de ter uma vida digna, só conseguem se sentir importantes e respeitáveis
através da arma que empunham, das roupas da moda ou dos tênis de
marca que assim conseguem comprar, através da única maneira de
que dispõem para serem reconhecidos – ainda que como temíveis
ou perigosos – em uma sociedade que não os vê como pessoas.
Os que escapam das mortes prematuras vão aumentar a superpopulação
carcerária. Seguindo a tendência global, as condenações
impostas por “tráfico” de drogas são a maior causa
do aumento do número de presos, nos últimos anos, no Brasil.
A demonização dos estigmatizados produtores e distribuidores
das drogas qualificadas de ilícitas – os “traficantes”,
os “narcotraficantes”, os “inimigos” – é,
freqüentemente, incentivada até mesmo por consumidores dessas mesmas
substâncias ou por defensores de seus direitos, que pretendem se diferenciar
e se distanciar daqueles, de modo a aparecerem como “bons” em contraponto
aos “maus”, para, assim, aderir e tentar se incluir na maioria hostilizadora
e excludente.
A hostilidade e o medo despertado em relação aos escolhidos para
o papel de “bodes expiatórios” facilitam a intensificação
do controle social, a ampliação do poder punitivo, a produção
de leis de exceção ou de emergência, violadoras de direitos
fundamentais, e o simultâneo enfraquecimento do Estado de direito democrático.
Mas, os consumidores das drogas qualificadas de ilícitas, não
obstante suas tentativas de diferenciação e inclusão na
maioria hostilizadora, acabam sendo também estigmatizados como “criminosos”,
“infratores”, ou “doentes”, que devem sofrer uma pena
explícita ou disfarçada em sanção administrativa,
ou obrigatoriamente se submeterem a tratamento médico. A alternativa
é aquela apontada por Alessandro Baratta: se é enfermo, não
é livre; se é livre, é mau.
Condicionada pelos estigmas, mergulhada nos preconceitos, fiando-se nas falsas
informações, não percebe a maioria que os maiores riscos
e danos relacionados às drogas qualificadas de ilícitas não
provêm delas mesmas. Os maiores riscos e danos provêm sim do proibicionismo
criminalizador.
Em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação,
mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo e suprimindo
direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários.
Já é hora de romper com o danoso proibicionismo criminalizador.
Já é hora de promover uma mobilização global que
conduza a uma ampla reformulação das convenções
internacionais e das legislações internas, para legalizar a produção,
a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas
e matérias primas para sua produção, regulando-se tais
atividades com a instituição de formas racionais de controle,
verdadeiramente comprometidas com a saúde pública, respeitosas
da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa
intervenção do sistema penal.
*Juíza de direito aposentada
Rosa Del Olmo, “La Cara Oculta de la Droga” (Bogotá: Temis,
1988).
Conforme dados do Ministério da Justiça, em dezembro de 2003,
o número total de presos no Brasil alcançava 308.304 pessoas,
número que aumentou para 361.402 presos em dezembro de 2005. Em dezembro
de 2003, a proporção já era de 182 presos por cem mil habitantes,
enquanto em 2001 esta proporção era de 134,9 e em 1995 de 95,47
presos por cem mil habitantes. Em dezembro de 2005, os presos condenados por
“tráfico” eram o segundo maior contingente de presos no Brasil,
inferior apenas ao número dos presos condenados por roubo. E nos dados
fornecidos não constam os correspondentes ao Rio de Janeiro, onde a mera
observação da atuação da justiça criminal
revela que o maior número de condenações se dá pelo
crime de “tráfico”.
Alessandro Baratta, “Fundamentos ideológicos da atual política
criminal sobre drogas”, in “Só Socialmente...” (org.
Odair Dias Gonçalves e Francisco Inácio Bastos, Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1992, páginas 35 a 49).