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Drogas, criminalização e estigma
Por: Maria Lúcia Karam
Data: 05/11/2006


Somos levados a falar em crime como se esta expressão traduzisse um conceito natural que tivesse um denominador comum e estivesse presente em todos os tempos ou em todos os lugares. Crimes, porém não passam de meras criações da lei penal. Não existe um conceito natural que os possa genericamente definir.

As condutas criminalizadas não são naturalmente diferentes de outros fatos socialmente negativos ou de situações conflituosas ou desagradáveis não alcançadas pelas leis penais. A enganosa publicidade que sustenta o sistema penal oculta a realidade do caráter puramente político e historicamente eventual da seleção de condutas chamadas de crimes. O que é crime em um determinado lugar pode não ser em outro; o que ontem foi crime, hoje pode não ser; e o que hoje é crime, amanhã poderá deixar de ser.

Pense-se na mais sistemática, organizada e danosa manifestação do proibicionismo criminalizador hoje subsistente em todo o mundo: pense-se no que chamamos de drogas.

O proibicionismo leva à criação de leis penais que definem como crimes condutas relacionadas à produção, à distribuição (aí incluído não só o comércio, mas qualquer forma de entrega a terceiros) e ao consumo de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção.

As substâncias psicoativas e matérias primas, que, assim selecionadas, são chamadas de drogas ilícitas (como a maconha, a cocaína, a heroína, a folha de coca, etc.), não têm natureza diferente de outras substâncias igualmente psicoativas (como a cafeína, o álcool, o tabaco, etc.), destas só se diferenciando em virtude da artificial definição como criminosas de condutas realizadas por seus produtores, distribuidores e consumidores.

Todas as substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, provocam alterações no organismo e dependendo da forma como forem usadas podem eventualmente conter riscos e causar danos, não estando aí, portanto, o motivo da diferenciação entre umas e outras.

Tampouco as substâncias, hoje qualificadas de drogas ilícitas, foram sempre tratadas desta forma. Vale lembrar, por exemplo, que até os anos 50 do século XX a França e a Inglaterra, valendo-se de permissão prevista na Convenção de Genebra de 1925, produziam e comercializavam ópio, sob regime de monopólio estatal, em suas colônias indianas e indochinesas. Por outro lado, substâncias, hoje lícitas, já foram ilícitas, bastando lembrar da proibição do álcool, nos EUA, no período de 1920 a 1932, quando em vigor, naquele país, a chamada “Lei Seca”.

Aquela artificial diferenciação permite apresentar as drogas tornadas ilícitas como se fossem diferentes das demais substâncias psicoativas, assim permitindo que as substâncias e matérias primas proibidas e as condutas criminalizadas a elas relacionadas sejam identificadas como um “perigo econômico e social para a humanidade”, como no preâmbulo da Convenção Única da ONU de 1961, ou como um “perigo de incalculável gravidade”, como no preâmbulo da Convenção da ONU de 1988, ou ainda como um “flagelo”, ou um “mal universal”.

Essa linguagem emocional, assustadora, demonizadora é uma característica do sistema penal, funcionando como um instrumento particularmente importante para o exercício do poder punitivo.

Pense-se, por exemplo, na expressão “criminalidade organizada”. Jamais se conseguiu estabelecer – até porque não há como fazê-lo – qualquer definição, com um mínimo de cientificidade, que traduza o conteúdo desta expressão. Na realidade, toda conduta, criminalizada ou não, que não se limite a ser uma reação instantânea ou instintiva a determinada situação, tem um componente de organização, que se manifesta, ainda mais especialmente, quando se têm condutas que reúnem mais de uma pessoa, com uma finalidade comum, o que ordinariamente acontece, seja no campo das condutas lícitas, como no das ilícitas. A expressão “criminalidade organizada” não tem nenhum significado particular, apenas servindo para assustar e permitir a criação de leis de exceção ou de emergência, violadoras de direitos fundamentais, aplicáveis ao que quer que se queira convencionar como sendo uma suposta manifestação de um tal imaginário fenômeno.

Pense-se ainda na expressão “narcotráfico”. A expressão “tráfico” já contém a forte carga emocional que costuma ser transmitida pela linguagem característica do sistema penal. “Tráfico” significa negócio, ou mais propriamente comércio ilegal. Falar em negócio ou em comércio ilegal não tem a mesma força que falar em “tráfico”. Mas, nem isso bastou. As atividades relacionadas à produção e à distribuição das drogas qualificadas de ilícitas passaram a ser referidas como “narcotráfico”. A carga emocional é ainda maior, dando a idéia de algo mais poderoso. E esta expressão é repetida sem que se perceba – ou se queira perceber – seu claro descompromisso com a realidade e com a ciência. Para criar o útil e exacerbado clima emocional, passa-se, tranqüilamente, por cima do fato de que um dos alvos principais do proibicionismo é a cocaína, que, como não se pode ignorar, não é um narcótico, mas, ao contrário, um estimulante.

Ocultando-se os riscos e os danos causados pelo proibicionismo criminalizador, as atividades econômicas de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas são, enganosamente, apresentadas, através dessa linguagem emocional, assustadora, demonizadora, como algo extremamente poderoso e incontrolável por meios regulares, a ameaçar a segurança e a tranqüilidade de todos.

Com isso se cria um clima de alarme social em torno daquelas substâncias artificialmente diferenciadas e se abre espaço para a ampliação do poder punitivo, que cada vez mais incorpora ao controle social exercido através do sistema penal estratégias e práticas que identificam o anunciado enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra tornada preventiva ou ao combate a dissidentes nos remanescentes Estados totalitários. A figura do "inimigo", ou de quem tenha comportamentos vistos como diferentes, “anormais” ou estranhos à moral dominante, se confunde nos perfis do “criminoso”, do “terrorista” ou do “dissidente”.

A expressão “guerra contra as drogas” é bem ilustrativa desse fenômeno.

A “guerra contra as drogas” não é apenas contra as drogas. Como quaisquer guerras, ela se dirige contra pessoas. Aqui a guerra é contra as pessoas dos produtores, distribuidores e consumidores das substâncias e matérias primas proibidas.

O estigma trazido pela idéia comum de crime é acentuado por aquelas idéias do “flagelo”, do “mal universal”, da “criminalidade organizada”, do “narcotráfico”. Os preconceitos, que se formam a partir daí, fortalecem a crença em falsas informações e propiciam a criação da figura de convenientes “bodes expiatórios”, cuja funcionalidade política se manifesta em diversos níveis.

No plano internacional, a “guerra contra as drogas” inverte as leis da economia, para responsabilizar os países produtores e exportadores das drogas tornadas ilícitas pela demanda que, naturalmente, se forma de maneira mais acentuada nos países mais desenvolvidos. Assim foi criado o que Rosa Del Olmo apropriadamente chamou de “o estereótipo delitivo latino-americano”.

Internamente, em cada país, os empresários e os trabalhadores das empresas produtoras e distribuidoras de drogas qualificadas de ilícitas, estigmatizados como “traficantes”, ou ainda mais demonizados como “narcotraficantes”, recebem toda a carga negativa transferida para os que, como eles, cumprem o papel de “bodes expiatórios” de todos os males.

No Brasil, essa carga negativa atinge ainda mais especialmente os pequenos empresários e trabalhadores que, vivendo nas favelas ou periferias dos grandes centros urbanos, fazem do comércio das drogas qualificadas de ilícitas a fonte de sua subsistência, encontrando nessa atividade a única possibilidade de viver com dignidade, embora pagando o preço de vidas que se extinguem prematuramente.

A figura do “inimigo” recai sobre esses pequenos empresários e trabalhadores, estendendo-se a quem a se assemelha à sua imagem. Basta lembrar das intervenções das Forças Armadas no Rio de Janeiro, que, desviando-se das funções que a Constituição Federal brasileira lhes atribui, ocuparam favelas como se todos que ali habitam vivessem em um território inimigo.

Esses “inimigos”, esses “traficantes”, esses “narcotraficantes” são, em sua grande maioria, jovens ou mesmo crianças, muitos deles empunhando metralhadoras ou fuzis, que, quase do seu tamanho, substituem os brinquedos que não têm ou não tiveram em sua infância. Matam e morrem, envolvidos na violência causada pela ilegalidade imposta pelo proibicionismo ao mercado das drogas tornadas ilícitas. Sempre se deve lembrar que não são as drogas que causam violência. A violência só se faz presente nas atividades de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas porque seu mercado é ilegal.

Esses “inimigos”, esses “traficantes”, esses “narcotraficantes”, esses jovens e crianças das favelas e periferias brasileiras têm de enfrentar a polícia em conflitos regulares ou na repressão informal, têm de enfrentar os delatores, os concorrentes que vêm tomar seus negócios ou quando vão tomar os deles. Têm de se mostrar valentes, precisam garantir seus efêmeros ganhos, seus pequenos poderes, sua vida. Sem a oportunidade de realizar seus sonhos, sem esperança de ter uma vida digna, só conseguem se sentir importantes e respeitáveis através da arma que empunham, das roupas da moda ou dos tênis de marca que assim conseguem comprar, através da única maneira de que dispõem para serem reconhecidos – ainda que como temíveis ou perigosos – em uma sociedade que não os vê como pessoas.

Os que escapam das mortes prematuras vão aumentar a superpopulação carcerária. Seguindo a tendência global, as condenações impostas por “tráfico” de drogas são a maior causa do aumento do número de presos, nos últimos anos, no Brasil.

A demonização dos estigmatizados produtores e distribuidores das drogas qualificadas de ilícitas – os “traficantes”, os “narcotraficantes”, os “inimigos” – é, freqüentemente, incentivada até mesmo por consumidores dessas mesmas substâncias ou por defensores de seus direitos, que pretendem se diferenciar e se distanciar daqueles, de modo a aparecerem como “bons” em contraponto aos “maus”, para, assim, aderir e tentar se incluir na maioria hostilizadora e excludente.

A hostilidade e o medo despertado em relação aos escolhidos para o papel de “bodes expiatórios” facilitam a intensificação do controle social, a ampliação do poder punitivo, a produção de leis de exceção ou de emergência, violadoras de direitos fundamentais, e o simultâneo enfraquecimento do Estado de direito democrático.
Mas, os consumidores das drogas qualificadas de ilícitas, não obstante suas tentativas de diferenciação e inclusão na maioria hostilizadora, acabam sendo também estigmatizados como “criminosos”, “infratores”, ou “doentes”, que devem sofrer uma pena explícita ou disfarçada em sanção administrativa, ou obrigatoriamente se submeterem a tratamento médico. A alternativa é aquela apontada por Alessandro Baratta: se é enfermo, não é livre; se é livre, é mau.

Condicionada pelos estigmas, mergulhada nos preconceitos, fiando-se nas falsas informações, não percebe a maioria que os maiores riscos e danos relacionados às drogas qualificadas de ilícitas não provêm delas mesmas. Os maiores riscos e danos provêm sim do proibicionismo criminalizador.

Em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo e suprimindo direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários.

Já é hora de romper com o danoso proibicionismo criminalizador. Já é hora de promover uma mobilização global que conduza a uma ampla reformulação das convenções internacionais e das legislações internas, para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas e matérias primas para sua produção, regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a saúde pública, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.
*Juíza de direito aposentada

Rosa Del Olmo, “La Cara Oculta de la Droga” (Bogotá: Temis, 1988).

Conforme dados do Ministério da Justiça, em dezembro de 2003, o número total de presos no Brasil alcançava 308.304 pessoas, número que aumentou para 361.402 presos em dezembro de 2005. Em dezembro de 2003, a proporção já era de 182 presos por cem mil habitantes, enquanto em 2001 esta proporção era de 134,9 e em 1995 de 95,47 presos por cem mil habitantes. Em dezembro de 2005, os presos condenados por “tráfico” eram o segundo maior contingente de presos no Brasil, inferior apenas ao número dos presos condenados por roubo. E nos dados fornecidos não constam os correspondentes ao Rio de Janeiro, onde a mera observação da atuação da justiça criminal revela que o maior número de condenações se dá pelo crime de “tráfico”.

Alessandro Baratta, “Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas”, in “Só Socialmente...” (org. Odair Dias Gonçalves e Francisco Inácio Bastos, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, páginas 35 a 49).