A edição da Lei nº 11.343 em Agosto de 2006, e sua entrada
em vigor no dia 08 de outubro de 2006, põe fim ao conflito hermenêutico
da aplicação da legislação penal ao revogar expressamente
as duas leis anteriores. A nova lei institui o Sistema Nacional de Políticas
Públicas sobre Drogas - SISNAD; prescreve medidas para prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão
à produção não autorizada e ao tráfico ilícito
de drogas; define crimes e dá outras providências.
A regulamentação da política de combate às drogas
até agosto do presente ano, estava definida nos termos das leis n°.
6.368/76 e nº. 10.409/02 . A segunda lei objetivava dar tratamento diferenciado
aos temas disciplinados pela primeira, porém, os artigos vetados pelo
Presidente Fernando Henrique Cardoso fizeram dela letra morta, uma colcha de
retalhos de difícil aplicação . Para sanar as divergências
criadas com o último diploma penal, os Tribunais Superiores encaminharam
no sentido de considerá–las complementares, sendo a primeira de
natureza material, descrevendo os tipos penais (crimes) e a segunda processual,
criando regras para a forma de aplicação da lei.
De forma subsidiária, mantêm e aplica-se o código penal
(decreto-lei nº 2.848/40), o código de processo penal (decreto-lei
nº3.931/41), a lei de execuções penais (lei nº 7.210/84).
E ainda, a lei de crimes hediondos (lei nº 8.072/90), que define o crime
por tráfico ilícito nesta categoria .
A nova lei representa a primeira tentativa no âmbito legal de harmonizar
o desenvolvimento das políticas públicas de saúde e segurança,
uma vez que a saúde pública é o bem maior que se busca
proteger com todo o aparato do sistema repressivo da política anti-drogas
nacional.
A criação do Sisnad tem como objetivo articular, integrar, organizar
e coordenar as atividades relacionadas com: a prevenção do uso
indevido, a atenção e a reinserção social de usuários
e dependentes de drogas; e a repressão da produção não
autorizada e do tráfico ilícito de drogas, conforme determina
o artigo 3º da lei.
Assim, estabelece entre os onze princípios que orientam a sua aplicação
a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção
não autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando a garantir
a estabilidade e o bem-estar social (art.4º, inciso X).
Entretanto, os capítulos que tratariam da composição
e organização do Sisnad, bem como das atribuições
dos órgãos que o compõem, foram vetados pelo Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva que, nas suas razões, alegou que os
artigos ao disporem sobre organização e funcionamento da Administração
Pública, criavam obrigações aos entes federados, contrariando
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
no seu artigo 1º, caput, artigo 18, caput; e artigo 84, inciso VI, alínea
a.
A previsão era de que representantes do Ministério da Saúde,
da Educação, da Justiça, do Gabinete de Segurança
Institucional, da Política Social, entre outros, compusessem o Sisnad,
buscando uma abordagem integral e transversal da questão das drogas.
O fato é que, sem a definição do conjunto dos órgãos,
e das respectivas diretrizes de funcionamento, o Sisnad perdeu dinâmica
e capacidade interventora, restando apenas a execução descentralizada
da lei, no âmbito das esferas federal, distrital, estadual e municipal,
conforme o artigo 7º, único mantido.
Muitos comemoraram a edição desta lei por considerarem que o
consumo de substâncias qualificadas como ilícitas , antes punível
com detenção de seis meses a dois anos, pela aplicação
do artigo 16 da lei 6.368/76 - não é mais suscetível a
perseguição criminal do Estado. Fato que reputo como inverídico!
A começar pelo lugar de inserção da temática.
Além da nova legislação optar por não descriminalizar
a conduta, ela insere a questão do consumo justamente no capítulo
que trata da definição dos crimes e das penas atribuíveis
aos usuários e dependentes de droga. Assim, o que se observa é
a visão clássica do médico–sanitarista, que coloca
a questão das drogas como um mal que deve ser combatido pelo Estado,
continua preponderante.
O que existe de mudança real é o tipo de sanção
que será atribuída aos usuários, pois, a princípio,
a pena restritiva de direitos está vedada (artigo 28).
A determinação de que a droga se destinava ao consumo pessoal
será atribuída pelo juiz, que será obrigado a considerar
a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições
em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais
e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente (artigo 28, §
2º). Elementos estes que serão principalmente descritos pela autoridade
policial e irão balizar o convencimento do juiz.
Desta forma, os agentes policiais, responsáveis pelo primeiro nível
de controle da ação institucional, continuam exercendo o poder
de detenção dos indivíduos, delimitando as ações
que se enquadram ou não na conduta prevista no artigo 28. E, considerando
que estes são formados pela visão tradicionalista e esteriotipada,
acabam por reproduzir o sistema de descriminação dos usuários.
Caso entendam que a ação se enquadra na categoria do consumo,
será lavrado termo circunstanciado de ocorrência e encaminhado
para os exames periciais necessários, sendo julgado no âmbito dos
Juizados Especiais Criminais (art.48). Entretanto, caso as autoridades policiais
imputem a prática como concorrente, ou seja, caracterizada em mais de
um crime, como a figura do usuário-traficante, o tratamento legal será
diferenciado.
As penas por consumo, isolada ou cumulativamente, consistem em: advertência,
prestação de serviços à comunidade e medida educativa
de comparecimento a programa ou curso educativo. Sendo certo que, para garantir
o cumprimento da sentença, o juiz poderá submeter àqueles
que se opõem à obediência, admoestação verbal
e multa, que será balizada em quantidade nunca inferior a 40 (quarenta)
nem superior a 100 (cem), segundo a capacidade econômica do agente, o
valor de um trinta avos até 03 (três) vezes o valor do maior salário
mínimo (art.29).
Nesse sentido, a questão que se coloca é perceber se as medidas
previstas contribuem ou não para a reinserção social do
usuário, compreendida no modelo tradicional, como a superação
do uso das drogas, grande vilão da saúde pública! Assim,
parece haver uma relativização do fundamento, de fato, de todo
o desenvolvimento da política anti-drogas, na medida em que se questiona,
no conjunto da lei, especialmente no título II, que trata das medidas
preventivas do uso indevido das drogas, se os instrumentos para a defesa da
saúde pública poderão adquirir alguma eficácia.
Na definição do definir o crime de tráfico podemos observar
algumas alterações: a primeira é a severidade das penas.
Embora a definição do caput do artigo 33, reproduza os verbos
da legislação anterior, a pena de reclusão, que antes era
de três a 15 anos e pagamento de cinqüenta a 360 dias-multa, agora
passa a ser de cinco a 15 anos e pagamento de 500 a 1500 dias-multa.
Nas mesmas penas incorre quem: I - importa, exporta, remete, produz, fabrica,
adqüire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito,
transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima,
insumo ou produto químico destinado à preparação
de drogas; II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas
que se constituam em matéria-prima para a preparação de
drogas; III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade,
posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente
que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o
tráfico ilícito de drogas.
O parágrafo segundo do artigo 33 refere-se ao tratamento dado a quem
induz, instiga ou auxilia alguém ao uso indevido de droga, estipulando
como pena, a detenção, de 01 (um) a 03 (três) anos, e multa
de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa. O que antes era punido com a mesma
pena do caput (03 a 15 anos).
Já o parágrafo terceiro cria ainda mais uma penalidade diferenciada
para quem oferece droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de
seu relacionamento, para juntos a consumirem, atribuindo pena de detenção,
de seis meses a um ano, e pagamento de setecentos a mil e quinhentos dias-multa,
sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
Portanto, aqui reside uma novidade importante, pois, ao excluir a conduta
enquadrada nos parágrafos 2º e 3º do benefício da redução
da pena de um sexto a dois terços, acaba punindo-os com mais rigor do
que àqueles que são enquadrados no caput (que com a redução
máxima podem pegar pena definitiva de um ano e oito meses de reclusão).
Assim, a lei induz a pena concluir que está sendo mais benevolente
com o usuário-traficante, mas na prática, está promovendo
uma reação enérgica contra o mesmo, uma vez que sujeita
o usuário-possuidor, que compartilha o uso com outras pessoas, ao trâmite
da justiça comum, e, portanto, ao risco de ter penas mais severas, como
a pena privativa de liberdade.
Aquilo que Zaffaroni definiu por multiplicação dos verbos ,
também se encontra na nova lei. O verbo novo é identificado nos
artigos 36 e 39. Financiar ou custear a prática de qualquer dos crimes
previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 desta lei, terá pena
de reclusão, de oito a vinte anos, e pagamento de mil e quinhentos a
quatro mil dias-multa.
Nesse sentido, embora com a mesma punição, a doutrina entende
haver uma diferenciação entre os verbos-núcleo do artigo.
Financiar ganha o sentido de iniciação da atividade, referente
ao capital inicial para estruturar a atividade, enquanto custear refere-se à
manutenção da atividade ilícita.
Também inova a lei, ao atribuir sanções específicas
a quem conduz embarcação após o consumo de drogas, agravando
a pena, se o transporte for coletivo (art. 39 e § único).
Entre as causas que agravam as penas previstas nos artigos 33 a 37, de um
sexto a dois terços, estão: a caracterização da
transnacionalidade do tráfico de drogas; se o crime for praticado por
agente no exercício de função pública; se a infração
for cometida em recintos públicos, estabelecimentos prisionais, escola,
universidade, hospital, casas de espetáculos, etc.; se o crime for praticado
com violência e uso de arma de fogo; se envolver crianças ou adolescentes.
A nova lei surge num momento em que a tendência internacional apela por
discursos de lei e ordem, exigindo sanções mais rigorosas ao tráfico
internacional de substâncias qualificadas como ilícitas. Ao manter
o consumo como crime, ela abre brechas para a imposição de penas
severas para usuários, usuários-traficantes e traficantes.
Com a reprodução das leis internacionais pelos estados nacionais,
a política proibicionista, desde o século XX, tem sido pautada
pelo uso da repressão penal radicalizada/severa, a ampliação
constante da lista de substâncias qualificadas como ilícitas e
a adoção de medidas de controle, como a regulamentação
particular de remédios e pesquisas experimentais e a vigilância
das operações de produção, comércio e uso
dos serviços administrativos especializados.
Para além do efeito da multiplicação dos verbos a que
se referia Zaffaroni, agora temos a expansão dos verbos hifenizados,
como os narco-terroristas, os usuários-traficantes; que, com efeito,
não permitem que os efeitos da cadeia produtiva das drogas, e da repressão
sobre ela, efetivamente sejam discutidos.
Ao longo da história, percebemos como a questão das drogas se
relaciona com a militarização. Em meados de 1830 a China, buscando
construir mecanismos para o controle do consumo interno do ópio, atinge
os comerciantes Ingleses, especialmente com a apreensão de grandes quantidades
de ópio. Com isso, o governo inglês – que recebia um quinhão
com o monopólio de produção e comercialização
na Índia – sente que seus interesses econômicos estão
sendo prejudicados e inicia uma guerra contra a China. Militarmente superior,
a Inglaterra recebe indenizações e concessões de terras
para a produção. Segundo Rico , el opio se convierte, en el marco
de las relaciones “triangulares” entre Inglaterra, Índia
y China, en moneda de cambio para las exportaciones de este último país,
cada vez más solicitadas en Europa.
Agora vejam que ironia: num primeiro momento da história da política
internacional anti-drogas, a militarização foi utilizada para
manter a produção e a comercialização, enquanto
nos dias de hoje, é o principal instrumento para coibir.
A imbricada relação estabelecida entre o proibicionismo e o sistema
punitivo alimenta um sentimento de insegurança social. Seja no campo
ou na cidade, os conflitos e seus efeitos se fazem presentes. Atualmente, muitas
organizações sociais, juntamente com entidades de defesa dos Direitos
Humanos, em âmbito nacional e internacional, vêm denunciando os
efeitos da militarização na política anti-drogas .
Entretanto, não podemos nos esquecer dos ensinamento da Maria Lúcia
Karan de que a “definição do que é e o que não
é crime, está diretamente ligada ao contexto histórico
em que ora determinadas condutas são criminalizadas. A construção
de atos reprovavéis e maléficos à sociabilidade é
um produto ideológico, para a manutenção e a reprodução
de interesses específicos” . Trata-se de uma decisão política
exercida pelo Poder do Estado.
A política internacional de combate às drogas, conduzida pelo
paradigma proibicionista norte americano, gera os mais variados graus de conflito
diante das especificidades latino americanas. Com efeito, o fracasso norte-americano
em controlar o consumo em seu país e os fluxos de capitais gerados pelas
drogas, sobretudo a cocaína, tornou estratégico controlar esse
modelo econômico transnacional. Assim, ao contrário de estar desenvolvendo
políticas de controle do consumo dentro do seu país, que inclusive
é um dos maiores consumidores de cocaína, externaliza sua política
proibicionista, utilizando-a como meio para a militarização da
América Latina.
O fato é que para resguardar a saúde pública, o governo
desenvolve poucas políticas públicas de saúde, como campanhas
educativas e muitas ações voltadas para a repressão, a
militarização e a erradicação, como ocorre no sertão
do nordeste brasileiro. Portanto, o fundamento legal para sua proibição
é a saúde pública, mas o principal meio de enfrentamento
é a polícia.
Nesse panorama, a saúde pública é utilizada como instrumento
de manobra do estado, já que a sua real afetação passaria
pela geração de dano a uma coletividade.
A política proibicionista, em especial a de combate ao narcotráfico,
é utilizada como instrumento necessário à ampliação
do poder de punir do Estado. Sob a égide da saúde pública
e a espada da segurança nacional, “o Estado manipula as informações
levadas à sociedade, cria um alarde social e criminaliza os excluídos.
Épocas em que se faz mais necessária a demonstração
do terror oficial, para que, sob o pretexto da repressão ao crime, possam
ser contidos os movimentos transformadores e libertadores”.
Para Bauman o sentimento de insegurança introgetado na sociedade torna
as pessoas suscetíveis a apoiar qualquer solução que, ao
menos na aparência, vá livrá-las de seus temores.
Os meios de comunicação, sobretudo a televisão promovem
a manipulação do processo comunicativo na formação
da opinião pública . As campanhas produzidas pela grande mídia
alimentam o pânico social . Sua leitura estigmatizante da realidade não
foge aos olhos. De um jeito ou de outro aparece o usuário e/ou dependente
alimentando o “narcotráfico”, grande inimigo da Humanidade,
que institui o caos e a violência . A mídia se utiliza de sensações
e sentimentos, “concretizando” subjetividades; permitindo ao Estado
formar uma oficiosa legitimidade na ampliação de seu poder punitivo.
Para Loïc Wacquant esta ampliação do poder punitivo do
estado está diretamente relacionada com o projeto neoliberal e a política
de hegemonia do estado penal norte-americano, expandido pelo governo Reagan
(e hoje reafirmado pelo governo Bush). O estado mínimo social/ estado
máximo penal, amplia o rol de categorias criminalizadas, substituindo
as políticas sociais. Conforme Fernanda Vieira, “retira-se da responsabilidade
do Estado uma massa de excluídos que não tem utilidade para o
capital ”.
Embora a lei pretenda proteger a saúde pública, ela não
impõe limites aos meios de comunicação, que através
de campanhas das bebidas alcoólicas e dos cigarros, incitam a população
consumir drogas, consideradas lícitas, fazendo analogias ao prazer.
Para Gilberta Acserald a criminalização de determinadas substâncias
escamoteia os interesses farmacêuticos, “pois nem sempre o que é
lícito se baseia na qualidade do produto, sendo tão prejudicial
quanto o que é ilícito”.
Assim, pretende-se demonstrar que, o tratamento ilegal, bélico e estigmatizador
atribuído pelo sistema penal acaba por gerar mais danos à população.
Além das vítimas fatais e da migração da violência
de uma forma geral, o modelo adotado inviabiliza o controle de qualidade das
substâncias que são consumidas por milhões de pessoas (e
não dá para ignorar este número), a higienização
do processo produtivo, as reais condições de trabalho, a desinformação
generalizada. Enfim, a criminalização acaba por impedir que políticas
voltadas para as necessidades da população, como saúde
e educação, sejam efetivamente desenvolvidas.
Para falar sobre o proibicionismo e suas relações com o sistema
punitivo, é preciso compreender que na estrutura social, o direito, em
especial o direito penal, a partir da criação e aplicação
de normas, cumpre o papel de mantenedor da “paz social”, correspondente
aos interesses da ideologia dominante.
Portanto, conforme nos alerta Rosa del Olmo, a ideologia punitiva de uma sociedade
responde à ideologia dominante em um momento histórico determinado,
subordinando-se às leis do mercado de trabalho, que implica a constatação
de importantes transformações dessa ideologia em diferentes instâncias
hisóticas e de acordo com as necessidades de cada sociedade .
Estudos da criminologia vêm indicando que as os altos índices
relacionam-se com a divulgação e a perseguição policial
de determinados crimes em detrimento de outros. Os crimes que adquirem maior
visibilidade, e criam sentimento de pânico social, normalmente são
alimentados pela grande mídia e justificam o aumento da força
repressiva (leia-se militarização) do Estado. Para Yale kamisar,
em ‘When wasn’t there a crime crisis? ’, as crises de criminalidade
são aparentes e se devem, fundamentalmente, a uma conduta manipuladora
dos meios de comunicação.
Maria Cristina Giannini , propõe classificar os custos do delito em
três níveis: Público, Econômico e de Transferência.
O primeiro estaria relacionado às despesas de bens e serviços
na execução da lei, na administração da justiça
e no tratamento. O segundo se refere a danos sobre a pessoa ou coisa, e pode
ser direto ou indireto. Sendo o último, uma decorrência do segundo,
refere-se aos casos em que o objeto furtado se transfere para outra pessoa.
Desta forma, a autora, através de uma equação econômica
para valorar o custo do delito e de sua repressão, sugere uma análise
comparada entre o lucro, objeto da ação delitiva e as despesas
na luta contra esses crimes.
Nesse sentido, indica que os crimes de colarinho branco são muito mais
impactantes para a esfera coletiva, “posto que segundo a sua espécie,
não só podem incidir sobre a saúde coletiva e sobre a marcha
global da economia, mas altera a qualidade de vida, obriga a freqüentes
gastos com reparações, limita as entradas de impostos, traz em
si a ruína de pequenas empresas, aumenta o custo moral, tomando-se em
conta que os autores desses fatos, geralmente são líderes da comunidade”.
(Castro, 1983:48)
Com isso, as pesquisas em criminologia indicam que os crimes que causam maior
impacto na estrutura da sociedade não são prioridade da ação
estatal, na medida em que recebem poucos investimentos para o seu combate. Ao
contrário, os múltiplos crimes de baixo potencial ofensivo (leia-se
danos a propriedade privada) - que não totalizam metade das estimativas
dos lucros dos crimes de colarinho branco – é que se tornam o foco
privilegiado da atividade persecutória. Com efeito, parece existir algo
de anacrônico nesta opção do Estado em direcionar prioritariamente
as ações do aparato repressivo para a repressão aos crimes
de baixo escalão.
Na realidade, quando descemos aos meandros da relação entre
o legal e o ilegal, percebemos como o crime se torna funcional para o sistema
. Funcionalidade esta que se manifesta não no sentido proposto por Durkheim,
de que o delito ativaria a consciência coletiva, esclarecendo o sentido
das regras. Ao contrário, os atos desviantes seriam úteis, na
medida em que corresponderiam as finalidades últimas da produtividade
do sistema capitalista. Assim, mesmo as ações negativas se converteriam
em mercadoria.
Nesse sentido, Santos apresenta um quadro sobre a cadeia produtiva - desde
os preparativos à produção, como a compra de insumos e
maquinário, até a comercialização - dos objetos
da atividade lícita e a atividade criminosa, sugerindo uma retro-alimentação.
Dessa forma, empresas tidas como ilícitas, quer seja pelo produto vendido
ou pela forma aparente como operam as transações comerciais, se
prestam, na verdade, para encobrir as atividades criminosas de outras empresas
inseridas no crime organizado e globalizado. As ditas empresas lícitas
passam a ser queridas e respeitadas pelo Estado, que vê em suas atividades
a grande fonte de impostos e a geração de empregos. Essas empresas,
por sua vez, na defesa de seus interesses ‘lícitos’ e ilícitos,
passam a intervir diretamente no Estado e nas políticas públicas,
por meio de seus representantes que, cada vez mais, ocupam cadeiras no parlamento,
no Poder Executivo e até no Poder Judiciário e no Ministério
Público.
Portanto, os estudos da criminologia nos permitem questionar as bases legítimas
da ação estatal, uma vez que vêm indicando que os delitos
que realmente causam impacto negativo ao Estado, como no caso da Política
de Drogas, referem-se especialmente aos esquemas de lavagem de dinheiro e a
corrupção daqueles que exercem cargos públicos.
Assim, mantida a opção pela criminalização das
substâncias, a opção deveria ser não pela criminalização
das pessoas pobres e dos territórios que recriam os sentidos do trabalho
e cometem infrações legais de baixo impacto à estrutura
social; mas pelo investimento nos serviços de inteligência e no
mapeamento dos esquemas de enriquecimento ilícito.
* Erika Macedo é mestranda do PPGSD/Universidade Federal Fluminense
(erika_adv@ig.com.br)
NOTAS
Dispunha sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico
ilícito de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência
física ou psíquica, e dá outras providências.
Dispunha sobre medidas de prevenção, o tratamento, a fiscalização,
o controle e a repressão à produção, ao uso e ao
tráfico ilícito de produtos, substâncias ou drogas ilícitas
que causem dependência física ou psíquica, assim elencados
pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências.
Entre outras supressões, o capítulo III, que tratava do direito
material, ou seja da definição dos crimes também foi vetado,
gerando dúvidas sobre a eficácia do capítulo IV, que define
os procedimentos penais.
Importante destacar que recentemente o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou
inconstitucional a previsão do artigo que vedava a progressão
de regimes da referida lei. Assim, mesmo enquadrado na lei de crimes hediondos,
o agente punido poderá iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado
e depois, atendendo aos requisitos da progressão, cumprir o restante
da pena em regime semi-aberto e aberto.
Nesse sentido, diz-se que os tipos penais previstos na lei anti-drogas são
considerados como normas penais em branco, uma vez que a definição
incriminadora depende de norma complementar. No caso, o artigo 66 da nova lei
determina que a lista das substâncias entorpecentes que devem ser combatidas
está definida na Portaria SVS/MS nº344 de 12 de maio de 1998 e é
editada pela Agência Nacional de Controle Sanitário - Anvisa, seguindo
a Convenção Internacional da ONU.
Apud BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue.. In
Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade. Ano 3, números
5 e 6, 1º e 2º semestres de 1998. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora:
Instituto Carioca de Criminologia, 1998.
Cf. RICO, José Ma. Las legislaciones sobre drogas: origem, evolucion,
significado y replanteamiento. mimeo. Montreal, mayo de 1984, p.10.
Nesse sentido, ver os artigos: Representantes de entidades de oito países
vão percorrer o território paraguaio para apurar denúncias
sobre abusos cometidos por tropas estadunidenses, in http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/internacional/news_item.2006-07-18.6575764608,
página visitada em 19/07/06; Guerra contra o terrorismo estaria perpetuando
a violência, in http://wm60.ig.com.br/inmail/inmail.pl?acao=ler&msgnum=12&UIDL=2130619200523344,
mensagem recebida pela lista do Jornal Digital do www.wwiuma.org.br, em 20/08/2006.
Cf. KARAM, Maria Lúcia. “Redução de Danos, Ética
e Lei: os danos da política proibicionista e as alternativas compromissadas
com a dignidade do indivíduo” In (Org) Christiane Moema Alves Sampaio,
Marcelo Araújo Campos. Drogas, Dignidade & Inclusão Social.
A lei e a prática de redução de danos. Rio de Janeiro:
Aborda, 2003.
As primeiras operações de localização e erradicação
no Polígono da maconha foram desenvolvidas pelo exército brasileiro.
Num movimento gradativo de participação, elas foram foram incorporando
outros setores como membros da polícia civil e até de cidadãos.
Karam: 2003, p.61
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Trad. Marcus Penchel. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2000.
Não é à toa que o ‘carioquês’ é
um sotaque de abrangência nacional.
Segundo o Prof° Miguel Baldez, durante participação na mesa
‘Direito à Resistência’, a mídia é a
responsável pela tipificação do que é o crime, in
Seminário Transdisciplinar em Sociologia e Direito. Niterói: PPGSD,
2003.
Não pretendo com isso negar os efeitos desastrosos dessa economia ilícita,
mas tão só questionar quem será o real responsável
pelo caos social.
WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa, in Discursos
Sediciosos: Crime, Direito & Sociedade. Ano 7, nº 11, 1º semestre
de 2000. Rio de Janeiro: ed. Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 1998.
VIEIRA, Fernanda. Participação na mesa Direito à Resistência,
abordando a transformação explícita da pena em capital,
com a privatização dos sistemas penais, ocorrido em quase todos
os Estados Norte Americanos e se expandindo para a Europa, in Seminário
Transdisciplinar em Sociologia e Direito. Niterói: PPGSD, 2003.
ACSERALD, Gilberta, MOREIRA, Erika Macedo e outros. Drogas, Violência,
Direitos e Democracia. Relatório Comitê Brasil. Belo Horizonte:
Fórum Social Brasileiro- FSB: 2003.
Cf. OLMO, Rosa del. A América Latina e sua Criminologia. Coleção
Pensamento Criminológico. RJ: ICC/Revan, 2004.
CF. KAMISAR, Yale. When wasn’t there a crime crisis? In DINITZ, S. e outros.
Deviance. N.Y. Oxford University Press. London- Toronto, 1969, p. 574; Apud
Castro, Lola Anyar de. A criminología da reação social.
RJ: Forense, 1983, p.31.
In Economia Y Criminalidad, Apud Castro, p.46
Cf. BERSMAN, Joseph e GERVER, Israel. Crime anda punishment in the factory:
the function of deviance in maintaining the social system, em WORSLEY, Peter.
Problems os Moderm Society. Peguin Books, 1972, Apud Castro, p.50
Cf. SANTOS, Pedro Sérgio dos. Direito Processual Penal & A Insuficiência
Metodológica. A Alternativa da Mecânica Quântica. Curitiba:
Juruá Editora, 2004, p. 92.
Id. ibid., p. 93.