Cocaína zero; Causachún coca: o ministério boliviano da Coca
Por: Manoela Vianna Data: 01/08/2006
Menos de uma semana após ser empossado, o presidente da Bolívia, Evo Morales, visitou a localidade de Shinahota, na região de Chapare, e afirmou diante de milhares de cocaleiros que o governo dele racionalizaria a produção de coca como forma de luta contra o narconegócio, e iniciaria uma campanha internacional para descriminalização do cultivo tradicional da coca. Morales aproveitou a oportunidade para anunciar a criação do Ministério da Coca e do Desenvolvimento Integral (Viceministerio de la Coca y Desarrollo Integral), pasta que substitui o Viceministerio de Defensa Social. O discurso de 50 minutos de Evo Morales foi concluído com a expressão "Causachún coca", que significa "Viva a coca" em quétchua; a palavra "erradicação", núcleo das políticas dos governos anteriores não foi sequer mencionada.
As medidas anunciadas pelo presidente em Shinahota mostram que o governo da Bolívia iniciado em 22 de janeiro deste ano está traçando uma política de drogas diferente da escolhida pelo governo anterior, que se aliou à política militarizada dos EUA contra o tráfico de drogas sem levar em conta os direitos dos plantadores de coca. De acordo com a coordenação do movimento, na Bolívia existem 45.000 cocaleiros, incluindo apenas os filiados aos sindicatos de cultivadores da folha.
Apesar da inovação do governo Morales, a criação de um ministério da coca não foi explorada pela imprensa mundial e ainda não é tema de estudos de especialistas em políticas de drogas. Por outro lado, mesmo sem estudos sobre os impactos do surgimento desse ministério, o fato de um governo criá-lo já é ponto de partida para diversas análises.
O primeiro a assumir o novo ministério, pasta subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Rural, foi Felipe Cáceres, um líder cocaleiro da região do Trópico de Cochabamba. A nomeação de Cáceres foi outra inovação de Evo Morales, pois foi a primeira vez na história da Bolívia que o presidente nomeou uma liderança de movimentos sociais para chefiar um ministério, prática que tem sido uma tendência desse governo. Uma das tarefas principais do ministério, que hoje é chefiado por Felix Barra, também ex-líder de movimentos sociais, é dar inicio a uma campanha internacional de descriminalização da folha de coca. A Convenção das Nações Unidas sobre Narcóticos, de 1961, reconheceu os usos tradicionais da coca, mas estabeleceu um prazo de 25 anos para que os países produtores e consumidores eliminassem a prática. Além disso, incluiu a folha de coca na lista da ONU de venenos ilícitos. A Bolívia não participou dessa convenção, mas aderiu às suas resoluções em 1976. Além disso, durante o mandato de Víctor Paz Estensoro, em 1988, foi aprovado na Bolívia a lei contra as drogas nº 1008, que criminaliza a produção da folha de coca em 149 artigos. Essa lei impôs a erradicação das plantações de coca na região de Cochabamba, mas permitiu o cultivo tradicional na região dos Yungas. O governo boliviano quer descriminalizar a folha de coca até 2008, ano que será realizada a próxima Convenção da ONU sobre narcóticos.
Coca: benefícios e tradição para o povo andino Muito tempo antes da folha de coca ser equiparada à cocaína o cultivo da folha para usos tradicionais já era uma prática cultural da região andina. Segundo Walter Maierovich – ex-secretário nacional anti-Drogas do governo Fernando Henrique (1999-2000) e presidente do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone - entre os índios e mestiços o hábito da mastigação da folha de coca perde-se no tempo. Durante a dominação espanhola, de acordo com o Maierovich, o rei Felipe II baixou, em 1569, um decreto incentivando a mascagem. A explicação para a ordem do rei é que a coca seria um alimento natural com força estimulante. Assim, o consumo de sua folha possibilitaria ao nativo produzir mais, suportar melhor as adversidades derivadas da altitude, da falta de alimentos e da insalubridade das minas. Para o psiquiatra boliviano especializado no tema, Mario Argandoña, a folha de coca tem inúmeras vitaminas e oligoelementos de alto valor nutritivo, além das substâncias de efeito psicoativo. O psiquiatra também acredita que a coca é um medicamento eficaz para doenças cotidianas, combate ao estresse, a fadiga e as depressões, prevenindo a evolução para doenças mentais graves. Além disso, acredita-se que a coca pode ser usada como analgésico e como energizante, facilitando a concentração mental e o esforço físico. A Organização Mundial da Saúde declarou que não existem evidências que provem que o consumo da folha da coca possa prejudicar a saúde humana. A folha de coca também tem grande importância religiosa para os povos andinos, estando presente em muitos rituais indígenas e sendo divinizada pelos nativos. Fonte: Adital, Estado de São Paulo e Terra
A criação de uma campanha para descriminalizar a coca deixa bem claro que o governo de Evo pretende separar as práticas de cultivo tradicional da folha de coca e o tráfico de cocaína, o que significa um rompimento com as diretrizes do governo anterior. No discurso de lançamento do ministério da coca, o presidente declarou que sua política se baseia no principio de cocaína zero e não coca zero, como pretendiam seus antecessores:
"Queremos aportar en la lucha contra el narcotráfico racionalizando la producción de hoja de coca. Sí queremos lucha contra el narcotráfico, pero que de verdad la lucha contra el narcotráfico sea contra el narcotraficante y no (contra) el cocalero como ha sido hasta el momento", afirmou Morales.
Por outro lado, o governo Evo manteve um acordo feito pelo ex-presidente Carlos Mesa com os EUA que estipulou o “cato de coca”. O cato representa o limite de uma área de 1.600 metros quadrados permitido para cultivo da folha de coca para cada filiado dos sindicatos de cocaleiros. Aqueles que cultivam a folha em uma área maior que o cato devem erradicar o excedente. De acordo com Morales, uma rigorosa fiscalização do cato é um dos meios que se pretende utilizar para racionalizar a produção de coca. O presidente pediu aos cocaleiros em seu discurso em Shinahota que respeitem as restrições do cato até que seja concluído um estudo sobre a quantidade de coca demandada para o cultivo tradicional na Bolívia. Essa pesquisa está sendo realizada com financiamento europeu e seus resultados determinarão a redução ou o aumento das áreas de cultivo.
De acordo com informações americanas, publicadas no jornal Lá Razón em junho, existem 27.700 hectares de plantações de coca na Bolívia, dos quais 10.100 estão localizadas no trópico de Cochabamba, 17.300 na região dos Yungas de La Paz e 300 em Apolo. A Lei 1008 só permite o cultivo de 12.000 hectares destinados ao uso tradicional. Em relação à produção de cocaína a ONU indica que a Bolívia é considerada a terceira produtora mundial de cocaína, depois da Colômbia e do Peru.
Combate ao narco-negócio e descriminalização da coca
Segundo Silvia Rivera, a assessora do Vice-Ministério da Coca, o plano de Cocaína Zero e Descriminalização da Coca baseia-se na idéia de controle social. Isso quer dizer que o governo boliviano acredita que os cocaleiros podem garantir que a produção de folha de coca não será desviada para o tráfico. O Vice-Ministério irá incentivar os agricultores a denunciar qualquer atividade ilícita que se desenvolva em suas regiões. Além do controle social, o governo pretende lutar contra o tráfico de cocaína reprimindo a corrupção e a lavagem de dinheiro. “Esa es la mejor garantía que la coca no va a llegar al narcotráfico”, afirmou Rivera, segundo o Jornal La Razón.
Um outro plano de Evo para o vice-ministério da coca é industrializar a produção da folha de coca, assegurando que iniciativas voltadas para essa finalidade terão incentivos estatais. O presidente quer executar projetos de industrialização da coca com fins benéficos para a humanidade nas regiões de Chapare de Cochabamba e Sul e Norte de Yungas de La Paz. Em junho Morales inaugurou uma processadora de mate de coca em Chulumani, sul da região de Yungas de La Paz. Até dezembro de 2006 o governo pretende inaugurar mais duas processadoras nas localidades de Coripata e no trópico de Cochabamba, que produzirão respectivamente licor e farinha de coca. Os recursos para esses investimentos chegam, de acordo com o jornal la Razón, a um milhão de dólares provenientes da Venezuela e de Cuba. A partir de janeiro de 2007 o governo boliviano iniciará a elaboração de projetos de fábricas de cosméticos, alimentos e produtos medicinais também com base na folha da coca.
Em contrapartida ao plano de industrialização da coca, os cocaleiros da zona de Chapare fizeram um acordo com o governo boliviano comprometendo-se a erradicar uma média de 25 hectares de plantação de coca por dia. O objetivo é que até o fim do ano de 2006 as plantações de coca se limitem aos 5.000 hectares permitidos na região pela lei 1008. Sobre a erradicação, o governo boliviano comemorou as conclusões do relatório mundial de drogas do Escritório Contra as Drogas e Delitos da ONU que anunciou a redução de 18% do cultivo de folha de coca na Bolívia.
Além da implantação de fábricas para industrialização da coca, Morales afirmou em alguns de seus discursos que existem possibilidades da Bolívia firmar acordos com a Argentina para exportar a folha de coca para a região de fronteira dos países. Hoje na Argentina o consumo tradicional da coca é permitido na zona de fronteira com a Bolívia, mas a exportação da folha é proibida.
EUA e Morales
Desde a criação do Vice-Ministério da Coca e do Desenvolvimento Integral os EUA vêm demonstrando insatisfação com as modificações na política antidrogas na Bolívia. Na ocasião do lançamento desse ministério e do anúncio das novas medidas para combater o narconegócio, o embaixador dos EUA na Bolívia, David Greenlee afirmou que o governo americano não concorda com a política antidrogas adotada por Morales. Segundo Greenlee, existe um ambiente de diálogo entre os governos, mas com pontos de vista diferentes sobre a erradicação dos cultivos da folha de coca.
Há anos a Bolívia e os EUA selam acordos de apoio econômico desde que haja o comprometimento do governo boliviano com a política americana de combate ao tráfico de drogas. Mas em 2006 a assistência americana contra o narcotráfico na Bolívia diminuiu, segundo a agência de notícias IPS, de 103 para 80 milhões de dólares. E em 2007 fontes da mesma agência indicam que esse investimento será de 67 milhões de dólares. A Fundação Seguridad e Democracia publicou no relatório do Observatorio de Seguridad Suramericano, referente ao primeiro semestre de 2006, dados que mostram algumas divergências dos EUA e da Bolívia em relação ao combate ao narconegócio. Segundo o relatório o chamado czar antidrogas dos EUA, John Walters, afirmou que os esforços da Bolívia para combater o narcotráfico são insuficientes e que a cooperação do país em relação ao tema havia diminuído consideravelmente, levando em conta os esforços realizados pelos governos anteriores. Sobre esses questionamentos o relatório indica que o vice-ministro da coca Félix Barra afirmou que é impossível apresentar melhores resultados com os investimentos que a Bolívia recebe para combater o narconegócio. Segundo Barra, o governo americano congelou, desde final de 2005, 35 milhões de dólares para apoiar os programas de erradicação da folha de coca. A embaixada dos EUA negou as denúncias, assegurando que as agências de cooperação americanas têm enviado os recursos para a Bolívia normalmente.
Com esse cenário de divergências constituído, o governo boliviano começou a colocar em prática ações para mostrar à comunidade internacional que pretende lutar contra o narconegócio sem repressão e respeitando o cultivo tradicional da folha de coca. Em maio deste ano o presidente Evo Morales lançou um plano de erradicação da folha de coca na região de Caranavi. No mesmo dia desse anúncio, o ministro do desenvolvimento rural, Hugo Salvatierra, entregou aos dirigentes dos quatro comitês regionais de cocaleiros de Caranavi uma permissão para o funcionamento de um mercado de folha de coca, o terceiro existente no país. O Vice-Ministério da Coca é um dos responsáveis pela administração do novo mercado.
Abertura de novos caminhos
O Vice-Ministério da Coca e do Desenvolvimento Integral ainda não provocou mudanças significativas na vida dos cocaleiros da Bolívia, mas tem realizado algumas ações que indicam o interesse de melhorar as condições de vida dos trabalhadores rurais da Bolívia. Além de iniciar o processo de industrialização da folha da coca, o vice-ministério criou o programa Obras de Impacto Ambiental com o objetivo de atender demandas de caráter urgente. A partir desse programa o vice-ministro Félix Barra entregou em abril computadores e material de construção para moradores da região dos Yungas.
Fontes:
- Agencia boliviana de información
- Agencia de Noticias Inter Press Service
- Bol Press
- Coca e Soberania
- El Diario
- La Fogata Digital
- La Patria
- La Prensa
- La Razón
- Ministerio de Desarrollo Rural, Agropecuario y Medio Ambiente
- Opinión
- Prefeitura do Rio de Janeiro
- Viceministerio de Desarrollo Alternativo
* Manoela Vianna é jornalista, assistente de comunicação de KOINONIA.
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