Boletim Atual
Normas para Publicação
 
 
Realização

 
 
» Artigo
Perspectiva atual da política antidrogas da Bolívia
Por: Pien Metaal é uma cientista política e colaboradora do programa das drogas de TNI.
Data: 01/05/2006


Para reparar o histórico erro que define a folha de coca como uma substância altamente perigosa, o que poderia ser melhor que um governo andino que viesse a assumir esta tarefa a partir do Estado? A conjuntura sóciopolítica boliviana, na qual pela primeira vez um candidato, Evo Morales, ganhou as eleições com uma agenda social que inclui a maioria indígena do país, propiciou esta ocasião. A Bolívia agora tem a possibilidade de rever as conseqüências da aplicação da política antidrogas e iniciar uma abertura de canais que contribuam para gerar claras iniciativas para o cultivo e o uso da folha de coca.

El cato
As demandas insurgentes das organizações de produtores de coca obtiveram resultados concretos, antes mesmo que um representante destas mesmas organizações assumisse um mandato de Presidente da República. Os protestos destes produtores propiciaram acordos sobre o cultivo e a comercialização da folha de coca. O mais importante destes acordos foi aquele celebrado entre os cocaleros do Trópico de Cochabamba (Chapare) e o governo de Carlos Mesa (outubro, 2004). Foi permitido aos cocaleros que cultivassem 0,16 hectares (o que é conhecido como um cato), até que se definisse a quantidade necessária para o consumo tradicional por meio de um estudo sobre esta demanda específica. Além disso, se tolerou, durante um ano, a existência de 18 mercados primários de compra e venda, o que viabilizava a comercialização nacional da colheita.

Aquele prazo de um ano foi alterado pelas ocorrências políticas do período. Em 2003, o presidente eleito na Bolívia, Gonzalo Sanchez de Lozada, fugiu do País após sangrenta repressão aos movimentos sociais. Em junho de 2005, seu sucessor, Carlos Mesa, renunciou ao cargo, passando a governar o Presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodríguez, que proclamou as eleições gerais para dezembro daquele ano.

O cultivo destinado a satisfazer o consumo tradicional na Bolívia foi localizado na região de Yungas de La Paz. A Lei 1008 define 12 mil hectares para cultivo tradicional, assim como define zonas de transição e zonas de cultivo ilegal. As zonas de cultivo tradicional (legal) estão quase totalmente localizadas na região dos Yungas. Para os agricultores cocaleros do Chapare esta definição sempre foi arbitrária e injusta. Para os produtores dos Yungas, que lograram estabelecer um mercado estável e uma economia sustentável, o atual sistema traz resultados. Entretanto, também nesta região dos Yungas, mais ao interior foram definidas zonas tradicionais, de transição e ilegais – o que reproduz a mesma divisão de âmbito nacional.

A interrupção da erradicação por meio do uso da força se constituiu numa mudança concreta nas políticas de drogas da Bolívia num período político turbulento. Entre fevereiro e outubro de 2004, o governo de Mesa e os dirigentes das seis federações do Trópico de Cochabamba iniciaram reuniões com o fito de atender às demandas dos produtores de coca. Entre as reivindicações dos cocaleros estavam incluídas uma pausa na erradicação da coca excedente, a desmilitarização das zonas dos produtores de coca e a participação, por meio de um consórcio de municípios, dos programas de desenvolvimento alternativo.

Foi selada por meio de um convênio em 16 de maio de 2004 a chamada pausa na erradicação, após oito semanas intensivas de negociação. Entretanto, o governo Mesa começou a aplicar o convênio apenas a partir de 3 de outubro. Nesta data o governo aceitou finalmente reduzir a quantidade de áreas cultivadas a serem erradicadas, respeitando o cato correspondente a cada produtor sindicalizado (mais de 23 mil produtores das 6 federações), muito embora inicialmente tenha se falado em um cato por família.

A obtenção do cato representou paz e prosperidade no Chapare, após anos de enfrentamentos e militarização da zona, e um alto número de mortos e feridos. Os estimados 3200 hectares do total de terras cultivadas toleradas criaram condições para acabar com uma era que se estendeu por mais de uma década. No documento conjunto do governo e dos produtores se acordou que: o processo de redução e registro será pacífico, o mesmo será executado, controlado e supervisionado pela Direção de Reconversão da Coca (Direco) e a Força Especial de Tarefa Conjunta (FETC) coordenadas com as seis federações do trópico de Cochabamba.

Efetivamente, a erradicação foi implementada a partir desta data no Chapare, alcançando se a meta de erradicar 8 mil hectares em um ano. Tanto o governo como os produtores de coca do trópico de Cochabamba ratificaram a decisão de respeitar e coadjuvar em todas as ações orientadas à interdição e luta contra o narcotráfico. Deste modo estava semeada a política de drogas do governo Morales.

Estudo da demanda do consumo legal da folha de coca

A Lei 1008, o marco legal do cultivo da coca no País, estabelece no art. 29: o poder Executivo determinará periodicamente a quantidade de coca necessária para cobrir a demanda de consumo tradicional e a estabelecida no art. 5o, a mesma não poderá exceder a uma área equivalente a 12.000 hectares de cultivo de coca, considerando o rendimento da zona tradicional. Nunca houve tal determinação desde a vigência desta lei em 1987.

Na ocasião, a possibilidade de um estudo sobre a demanda para o consumo legal da folha de coca teve uma importância estratégica como instrumento para a definição da nova política para a coca na Bolívia. O estudo seria realizado com o apoio do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC), organismo para o qual se solicitou a implementação do estudo, e da União Européia, a quem foi solicitado o financiamento. Em julho de 2005 o governo e os cocaleros iniciaram negociações com vistas à definição do estudo, que permaneceu durante meses no limbo. A preparação do processo eleitoral dificultou a elaboração dos termos de referência do estudo, que já havia sofrido com o panorama político mais amplo.

As propostas metodológicas da equipe governamental continham diferenças substanciais em comparação às dos representantes dos cocaleros. Entre as duas delegações houve uma série de encontros e desencontros, até mesmo com a alteração dos participantes da discussão. Um ponto de discórdia foi relativo a definição de quem deveria realizar o estudo. Não houve propriamente um consenso entre as partes interessadas sobre a decisão do estudo ficar ao encargo do Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Havia sido sinalizado que o estudo deveria ser feito por meio de licitação internacional, e não seria entregue apenas a uma organização, mas há um conjunto de instituições independentes. Outra divergência foi relativa aos Termos de Referência, que pretendiam utilizar uma amostragem nacional para aplicar a lares camponeses e operários, por fim uma pesquisa incompleta e repleta de vieses, na opinião de vários observadores.

Durante o acalorado processo eleitoral, e não se alcançava que as partes interessadas chegassem a um acordo sobre tal estudo, ficou evidente que este seria postergado ao final do pleito. Todos os prognósticos ofereciam uma alta probabilidade de vitória a Evo Morales. Houve, além disso, outros problemas com o estudo e a importância que ele teria para definir a política de drogas do País. Um deles era relativo a quantidade de hectares que seriam definidos como legais para o plantio de coca.

Os termos de referência para o estudo partem do suposto implícito de que o resultado a que se chegue ditará automaticamente a área de autorização legal para o cultivo de coca no país. Porém, e a título de exemplo, estudos que calculam o rendimento métrico de folha de coca oscilam entre 2,7 e 0,9 toneladas de coca métrica por hectares (operação Breakthrough) . A demanda é calculada em toneladas de folhas, porém a área necessária para a produção de uma determinada quantidade de toneladas métricas é uma questão aberta. Com a atual informação é impossível chegar se ao cálculo desta área.

Após as eleições houve um consenso entre as partes envolvidas sobre os termos de referência para a implementação do estudo de caso. Os resultados – que não definirão o assunto do cultivo – deverão estar prontos ao final de 2006. O estudo terá relevância na medida em que detalhadamente cumpra sua função e alcance, isto é, indique os diferentes tipos de cultivo em nível nacional. Porém, as condições atuais não são de todo favorável a este fim, visto que ainda é vigente a Lei 1008, permanecem as políticas de repressão ao tráfico de drogas e o atrelamento aos esquemas das convenções e da cooperação internacionais.

O governo de Evo Morales ampliou a visão da racionalização da produção. Por meio desta racionalização considera se a possibilidade de um mercado local e, até mesmo, internacional (regional) que absorva muito mais coca legal que atualmente . Uma possibilidade final seria assegurar a continuidade do estudo de modo a serem consideradas todas as faces da questão da demanda, incluindo o potencial, negociando tais termos com a cooperação. Caso tal resultado não fosse possível, deveria se buscar realizar o estudo de forma paralela e autônoma com o apoio da comunidade internacional.

O governo boliviano pode trabalhar sob o critério de que os países deveriam poder determinar certas políticas e condições próprias que respondam às condições internas e ao ordenamento jurídico interno. Para isto, a Assembléia Constituinte abre a possibilidade de reconhecer no nível estatal o cultivo e o consumo da folha de coca como valor ancestral ou patrimônio cultural. Este reconhecimento consolidará e formalizará a posição do atual governo e da sociedade civil ao redor da folha de coca, o que também suporia o reconhecimento de usos alternativos. Muito embora já exista o reconhecimento do valor da folha de coca desde a Lei 1008 de 1988, o valor do reconhecimento está em que este representará o reconhecimento do novo Estado, no mais alto nível constitucional. O que implica que a Bolívia se submeteria às limitações impostas pelas convenções internacionais de droga sempre que estas se adaptem ao que estabelece a constituição nacional. Um novo marco legal permitiria que o estudo pudesse demarcar um mercado mais legítimo e veraz para a folha de coca, incluindo sua potencial expansão.

Coca/Cocaína
A distinção entre coca e cocaína, entre o cultivo da coca e o negócio da cocaína, é importante. Este tem sido um mote de uma legítima luta reivindicativa há anos. Porém os problemas que a aplicação de políticas de drogas equivocadas aplicadas na Bolívia, assim como em toda a América Latina e no Caribe, não se limitam à criminalização da folha de coca, nem à repressão seletiva aos seus cultivadores.

A proposta do novo governo boliviano em enfocar a luta contra as drogas na cocaína obedece a claras e lógicas motivações. Em sua viagem a Europa, logo após a vitória, Evo Morales foi confrontado por advertências a este respeito. Elas não deixam dúvida sobre a atitude de escrutínio dos países europeus sobre a Bolívia, considerada como aliada na luta contra as drogas. Apesar destas estratégias antidrogas terem demonstrado sua ineficiência e seus efeitos perversos, até agora o governo de Morales não as questionou.

A distinção entre a folha de coca e a cocaína é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. Sem a folha de coca não haveria cocaína, e a folha de coca sem um de seus múltiplos ingredientes não poderia cumprir o seu uso tradicional do mesmo modo. O uso do conceito droga pelo governo da Bolívia não se distingue do discurso amplamente difundido no mundo, inspirado na “tolerância zero” dirigida ao consumo de plantas como a cannabis e a papoula, as quais também têm usos tradicionais.

Os camponeses que cultivam folha de coca, a qual terá como destino final seu processamento como cloridrato de cocaína, ou os que cultivam para usos distintos daqueles qualificados como tradicionais (as formas de usos antigos, ou seus usos mais recentes), e/ou usos medicinais, semeiam e colhem a mesma planta, fazem parte da mesma população camponesa, empobrecida e excluída, há décadas. Nos países em que o cultivo tradicional é ínfimo, como na Colômbia, seria acaso legítimo propor a erradicação deste meio de sobrevivência camponesa? A separação do ato do cultivo como mera atividade agrícola, desconsiderando o destino final do produto, seria o mínimo que se requereria para que se produzisse a mudança necessária nas políticas dirigidas ao controle da oferta.

Além disso, as penitenciárias bolivianas, como quase todas no mundo, estão repletas de pessoas detidas por atos vinculados ao narcotráfico, pertencentes em geral às classes subalternas. A população carcerária boliviana consiste majoritariamente de pessoas detidas sob a Lei 1008, acusados de participar da produção e/ou comercialização das drogas qualificadas como ilícitas. Quase sem exceção todos estes são pequenos traficantes, quase nunca os peixes gordos. Isto mudaria com uma política de drogas coca si, cocaína no?

Ainda que não se produza cocaína sem a folha de coca, não existem garantias suficientes de que não venha ocorrer extração de cocaína, uma vez que a folha de coca seja desclassificada e industrializada, e a discussão não pode deter-se neste ponto indefinidamente. O ideal seria que as formas e políticas permitissem uma convivência com esta planta e seus derivados, sem que isso necessariamente significasse um aumento do consumo prejudicial.

O Comitê de experts em fármacodepência da Organização Mundial de Saúde discutiu o tema na sua reunião de 1992. Naquela ocasião a folha de Coca foi incluída em uma lista de dez substancias apresentadas pela mesma OMS ao Comitê para conhecer a necessidade de uma revisão crítica. Uma das importantes conclusão foi que “a classificação da folha de Coca sob os esquemas da convenção única foi apropriada, por ser facilmente extraível a Cocaína da folha”6. O Comitê não encontrou evidência que justificassem uma nova avaliação distinta das consideradas de 1950. O tema da conversão, recuperação ou extração é fundamental na discussão que procura separar a folha de coca de um dos seus derivados. Uma vez resolvida a questão da legitimidade do uso tradicional da folha de coca permanece aberta da temática de como tratar especificamente a Cocaína.

Link: www.tni.org/reports/drugs/debate13s.pdf

Tradução de Jorge Atílio Silva Iualinelli; coordenador do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA - Presença Ecumênica e Serviço