Para que este povo acorde
Por: Revista do Terceiro Setor Data: 24/04/2006
O texto abaixo é a apresentação da publicação Conflitos do Campo Brasil 2005,
editada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). As informações estatísticas
do relatório estão disponíveis no link:
http://arruda.rits.org.br/notitia1/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=9&dataDoJornal=1145567003000
Para que este povo acorde
Cada ano, a CPT lança à opinião pública seu relatório sobre os conflitos do
campo brasileiro. Uma espécie de Pnud [sigla do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento] da problemática agrária no Brasil, que é esperado e
acolhido, até por meios de comunicação nada propícios para a denúncia da
injustiça rural e para a reforma agrária verdadeira. A seriedade e a
precisão do Relatório se impuseram, no Brasil e no exterior.
Infelizmente, o elenco é de "conflitos". O nosso Brasil no campo é um campo
de batalha! Bem que gostaria a CPT de poder apresentar só números e feitos
positivos, realizações concretas de reforma agrária e de reforma agrícola,
um panorama idílico de paz rural. Quem acusa a CPT de morbidez pessimista
não conhece o nosso campo de perto. Há muito suor e muito pranto e muito
sangue derramados em toda a infinita extensão do Brasil rural; em todos os
Estados do País. Sangue, suor e pranto impotentes, frustrados, se contarmos
somente com a política oficial do legislativo, do judiciário e do executivo.
O relatório da CPMI da terra, "voto vencido", afirma em sua "Apresentação":
"A responsabilidade pela grave situação em que se encontra o campo
brasileiro deve ser compartilhada pelos três poderes da República". E
explicita a responsabilidade concreta que cabe a cada um dos três poderes,
atendida a situação real do nosso campo. E acrescenta, se referindo
precisamente aos "conflitos": "A violência no campo está enraizada em um
conflito distributivo de terra, que só pode ser solucionado por uma reforma
agrária ampla e massiva, que democratize o acesso à terra e possibilite o
desenvolvimento do campo brasileiro".
A reivindicação e a luta do povo camponês, sofridas e conflitantes, vêm
sendo satanizadas pelos "poderes deste mundo", através dos grandes meios de
comunicação (que são os meios dos grandes) e, nesse ano de 2005, até pelo
"voto vencedor" da CPMI da terra, apresentado pelo deputado Abelardo Lupion.
A política agrário-agrícola e a política indigenista estão sistematicamente
pervertidas no Brasil. Há uma iniqüidade crônica, secular, no tratamento da
terra, em nosso País; no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e
de todo o povo camponês; na definição do direito de propriedade e suas
funções e seus limites; diante das exigências ecológicas da sustentabilidade
e da harmonia que a Terra-Mãe reivindica como saúde da Criação e como
segurança e bem-estar de todos em nossa casa comum.
Depois de quase 40 anos de vivência, entre revoltada e esperançada, dessa
realidade do nosso campo, me confirmo sempre mais em três convicções:
- O latifúndio é iníquo, um mal maior, crime de lesa justiça e de lesa
fraternidade. E o Brasil haverá de criar a lei dos limites da propriedade da
terra no campo (e na cidade também, onde grassa "o latifúndio urbano
improdutivo"). Contestando o relator da CPMI "vitoriosa", é preciso gritar
que "crime hediondo" e "ação terrorista" não é a ocupação de terras pelo
povo, mas o latifúndio, pelo qual o povo é excluído da terra.
- Toda agricultura deve ser ecológica, sustentável, humanizadora.
- A reforma agrária há de ser integral, abrangendo a vida toda do povo
camponês, as infra-estruturas de uma existência verdadeiramente humana,
realizadora; com especial ênfase para os anseios da juventude.
Enquanto for preciso publicar um relatório anual de conflitos no campo, não
haverá paz nem no campo nem na cidade. A política oficial agrário-agrícola,
por ora, é com muita freqüência uma política de guerra na execução, na
omissão e na repressão violenta, e também, com freqüência, uma política de
mentira pela tergiversação dos dados que se entregam ao público. O atual
governo anunciou ter assentado, em 2005, 127,5 mil famílias; quando apenas
45,7% o foram em áreas destinadas à reforma agrária; o restante, de acordo
com o banco de dados da Luta Pela Terra, está em assentamentos temporários
ou em assentamentos reordenados em terras públicas.
"Mais um ano sem reforma agrária" gritava na manchete de primeira página um
jornal alternativo. "Os camponeses, concluía uma nota da CPT sobre o campo
paraense, e poderia se referir a todo o campo brasileiro, continuam na sina
da resistência, da força de construírem com as suas próprias mãos e também
com o seu sangue (em dezenas de casos) a reforma agrária, justa e
necessária". O trabalho escravo continua a ser notícia, infelizmente, até no
exterior, inclusive vinculando-o com certos produtos de exportação...
Este relatório da CPT de 2005 destaca feitos emblemáticos de sofrimento e
luta e simultaneamente de heroísmo e exemplaridade. A irmã Dorothy, com um
límpido testemunho evangélico de fidelidade ao povo e de perdão aos
inimigos; o mártir compulsivo da ecologia, Francisco Anselmo Gomes de
Barros, que foi até a oblação total da sua vida. "Já que não temos voto para
salvar o Pantanal, dizia Francelmo, vamos dar a vida para salvá-lo". Dom
Luiz Flávio Cappio, profeta peregrino do Rio São Francisco, denunciando o
hidronegócio e acenando para as soluções viáveis em favor do semi-árido e de
todo o povo nordestino. O MST na Marcha Nacional, sendo mais uma prova de
capacidade organizativa e da continuidade histórica do movimento camponês no
propósito de conquistar a terra para o povo. Destaques luminosos de uma
imensa luta diária, muitas vezes anônima, que faz do campo brasileiro uma
contenda entre a morte e a vida, entre a injustiça e a libertação.
Francelmo entrega sua vida "para que este povo acorde". Este povo somos
todos nós: a população brasileira do campo e da cidade, as autoridades
responsáveis (ou irresponsáveis), o movimento popular, a intelectualidade
comprometida com a verdade, as Igrejas de Jesus Cristo libertador, as
Religiões do Deus da vida, a juventude que aspire a ter futuro...
Acordemos, então!
Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia, MT
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