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Consulta Regional Ungass 2008 - América Latina e Caribe
Por: Dênis Petuco*
Data: 30/04/2008


RESUMO

Dênis Petuco faz neste artigo um relato da Consulta Regional Ungass 2008 – América Latina e Caribe na qual esteve como um dos representantes brasileiros. Dênis narra como foi a discussão de todos os temas da consulta a partir de seu olhar de cientista social, educador popular e secretário da Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda).

Drogas. Consulta. América Latina. Caribe.

ABSTRACT

Dênis Petuco makes in this article a story of the Regional Consultation Ungass 2008 – Latin America and the Caribbean in which was present as one of the Brazilian representatives. Dênis tells how it was the quarrel of all the consultation subjects from his look of social scientist, popular educator and secretary of the Brazilian Reducing Association of Damages (ABORDA).

Drugs. Consultation. Latin America. The Caribbean.

 

Antes de qualquer coisa, creio que seja preciso apresentar-me. Sou Dênis Petuco, brasileiro de Porto Alegre, educador popular, redutor de danos e cientista social. Já há alguns anos, tenho dirigido minhas preocupações para distintos aspectos relacionados àquilo que vou chamar de “políticas de drogas”. Desde 2003, venho trabalhando em programas de Redução de Danos, e desde 2006, integro a direção nacional da Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos (ABORDA). É em função desta condição transitória de secretário de uma organização nacional de trabalhadores de saúde que atuam junto a pessoas que usam drogas, que tenho tido a oportunidade de participar de inúmeros fóruns de debates, tanto em nível nacional quanto internacional.

Em abril, eu havia participado do IV Foro Latinoamericano y Del Caribe de VIH/SIDA e ITS, na cidade de Buenos Aires. Naquele momento, eu pude contribuir para a articulação dos representantes de programas de Redução de Danos presentes ao evento, estreitando laços de parceria e colaboração com diversos camaradas de todo o continente. Como resultado disto, surgiu o convite para participar da Consulta Regional Pré UNGASS 2008, realizada na cidade de Lima, Peru, nos dias 11, 12 e 13 de novembro de 2007.

Estava bastante apreensivo. Razoavelmente tranqüilo para discutir políticas de drogas no Brasil, sentia-me inseguro quando me dava conta da importância de minha tarefa (representar o pensamento de redutoras e redutores de danos brasileiros), em uma arena de debates ainda desconhecida para mim.

1º Dia

Cheguei em Lima por volta das 22 horas. Perdi a festa de acolhida que os peruanos organizaram (a maioria das pessoas chegou ao longo do dia). Nesta mesma noite, pude sentar com Graciela Touzé, nossa parceira de longa data, integrante da Asociación Intercambios (Argentina). Graciela colocou-me a par da situação que viveríamos nos dias seguintes: os defensores de políticas de caráter descriminalizante seriam minoria absoluta no evento: dos 35 convidados, apenas 10 teriam alguma simpatia ou ligação direta com Redução de Danos e quaisquer outras estratégias de cuidado baseadas em pressupostos não normativas.

A posição de Graciela, compartilhada por mim: devíamos buscar a garantia de questões básicas, como a eqüidade entre investimentos nas áreas de prevenção, tratamento e repressão (o que poderia ser considerado uma vitória, diante do atual desequilíbrio em favor da repressão). Devíamos buscar impedir retrocessos, e pautar a mortalidade decorrente das políticas de repressão, especialmente no que diz respeito aos países em desenvolvimento. Se conseguíssemos garantir esta estratégia mais defensiva, poderíamos deixar o terreno aberto para que os companheiros da Europa avancem um pouco mais que isto.

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Iniciamos as atividades com uma breve apresentação de todos os presentes. Muita gente ligada a comunidades terapêuticas (eles são extremamente bem articulados). Estavam também presentes alguns observadores europeus e canadenses, e também o vice-coordenador do Comitê de Narcóticos da ONU, Michel Perron, do Canadian Centre on Substance Abuse. Ele presidiu à mesa em alguns momentos, sempre com intervenções conciliatórias. Houve algumas falas-padrão, como a do coordenador das políticas de drogas do Peru, e do representante da UNODC na região. Depois desta abertura, Michel Perron trouxe um histórico do período desde a última UNGASS sobre drogas (1998).

Ainda pela manhã, tiveram início os trabalho em grupo. Estávamos divididos por regiões do continente:

  1. Brasil e Cone Sul – Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai.
  2. Países Andinos – Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela.
  3. Caribe – Jamaica, Barbados, Ilhas Virgens, San Vicente y Granada, Trinindad y Tobago, República Dominicana, Santa Lucia.
  4. México e América Central – México, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Nicarágua, Panamá.

Creio que vale destacar quem eram algumas das pessoas presentes: dentre os parceiros, havia Maria Elena Ramos, do Programas Compañeros, do México; Fabian Chiosso, da Federação Argentina de ONG’s; Graciela Touzé, argentina da Intercambios; Javier Schmidt, chileno da Caleta Sur; Graciela Cartesio, do Uruguai; Roberto Gallinal, uruguaio da direção da Rede Ibero-americana de ONG’s que trabalham com dependência de drogas (RIOD); Jacques Mabit, franco-peruano e Marcus Day, de Santa Lucia.

Dentre os adversários, posso destacar poucos, pois tive um contato mais próximo com o grupo do Cone Sul, onde éramos maioria. Mesmo assim, vale falar em Mina Seinfeld, dos Brasileiros Humanitários em Ação (BRAHA), uma organização ligada à comunidade judaica. Mas muito mais importante que a BRAHA, é a própria Mina: foi secretária de políticas de drogas do governo Garotinho, no Rio de Janeiro. Além de Mina, outro adversário importante é José Árias, do Paraguai, dirigente de um importante centro de pesquisas que praticamente decide as políticas paraguaias. Roberto Gallinal conta que ele tentou impedir uma palestra de Franco Basaglia, lá no Paraguai, nos anos 80. Mas a liderança mais importante é, sem dúvida, a do Padre Conrado Reyes, da Guatemala. Dominicano, Padre Conrado articula toda uma imensa rede de comunidades terapêuticas de orientação católica, em toda a América Latina e Caribe.

A maior parte das atividades foi realizada nos grupos anteriormente descritos, de modo que os relatos à seguir têm esta limitação: vão cobrir tão somente o conteúdo dos debates realizados no grupo Brasil e Cone Sul.

Tema 1: Avanços e conquistas das ONG’s em cada país

O debate forte no grupo, já de saída, esteve relacionado aos processos de captura das ONG’s por meio das políticas de financiamento. Discutiu-se muito que diante destas dinâmicas, as ONG’s perdem sua autonomia, e deixam de cumprir seu real papel, qual seja: pressionar o Estado por mais e melhores políticas públicas. Não foi sem surpresa que percebi isto, já nas três primeiras intervenções. A ABORDA tem discutido isto, quando aponta o problema da precarização do trabalho dos redutores de danos. Aliás, esta não é uma realidade exclusiva da Redução de Danos: as pessoas que trabalham em Comunidades Terapêuticas também vivem realidade muito semelhante. Ou seja: é preciso discutir qual o papel das ONG’s, e para que tipos de trabalho vão receber financiamentos. Este tema voltaria no próximo tema de debates em grupo.

Havia ali um grupo com uma leitura crítica da relação Estado/ONG’s. Apenas Mina destoava, pois a atuação da BRAHA é assumidamente filantrópica. Sua expressão, em meio a discursos de orientação crítica, era de estranhamento completo.

Tema 2: Mecanismos de colaboração

Neste ponto, as críticas emergentes no ponto anterior fluíram com total naturalidade. O grupo disse que a melhor colaboração que as ONG’s têm a oferecer não está em atuar em substituir ao vazio do Estado, mas em exigir e fiscalizar a execução de políticas públicas. Neste sentido, recomenda-se à ONU e UNODC uma dupla reversão no destino dos recursos desta instituição: inicialmente, no sentido de desprivilegiar a repressão em benefício da prevenção e tratamento, e num segundo momento, ao invés de financiar às ONG’s para que estas ocupem o papel do Estado, executando projetos de promoção de saúde, que a ONU passe a financiar nossas ações de pressão e fiscalização.

Além disto, também houve muitas denúncias de que, em vários dos países, conferências são transformadas em meros mecanismos de legitimação (no caso brasileiro, tampouco existem conferências por meio das quais se possam discutir as políticas de drogas). Além disto, também é comum, segundo relatos de alguns dos presentes, que os convidados para integrar as comitivas para conferências internacionais sejam representantes de ONG’s “chapa branca” (ONG’s constituídas de cima para baixo, e que têm a tarefa de legitimar os discursos oficiais). Por vezes, estas vagas são destinadas para pessoas que buscam o mero turismo, ocupando a vaga de legítimos representantes da sociedade civil.

O grupo recomenda que a ONU, no que tange às políticas de drogas, adote mecanismos como a solicitação de “relatórios sombra” à sociedade civil.

Tema 3: Princípios superiores

Neste ponto, havia um conjunto de perguntas que guiavam nosso trabalho. Convém salientar que este foi o ponto mais polêmico, no qual as diferenças do grupo finalmente vieram à tona.

  1. Controles e leis estabelecidas para o cumprimento das convenções têm facilitado os objetivos?

O grupo, depois de muita polêmica, definiu que há dificuldade em determinar os efeitos das leis e convenções sobre o consumo, o comércio e a fiscalização de drogas. Há uma grande carência de estudos que investiguem estes pontos. Porém, o grupo foi unânime em dizer que há uma percepção de que não se avançou na diminuição do consumo, circulação e produção de drogas (era este o objetivo da UNGASS 1998). O grupo reafirma a necessidade destas regulações, mas afirma que é preciso diferenciar critérios entre regulações penais, sanitárias e sociais. Também foram abordados os efeitos negativos das legislações vigentes, que são embasadas nas convenções de 1998: criminalização de populações vulneráveis, das pessoas que usam drogas e dos microtraficantes (houve ênfase no fenômeno das mulheres traficantes). Também se criticou o tratamento coercitivo (Justiça Terapêutica). Roberto ainda salientou o caso uruguaio, no qual o sistema bancário é coberto por uma legislação que impede a investigação dos mecanismos de lavagem de dinheiro.

  1. Flexibilidade das convenções e suas interpretações.

Em geral, o grupo aponta que não existe esta flexibilidade. As leis costumam se adequar estritamente às determinações dos tratados internacionais. Alguns países começaram a discutir caminhos diferenciados para a implementação de legislações mais brandas, mas trata-se de iniciativas ainda incipientes.

  1. Importância destinada à oferta e à demanda

Há uma precariedade generalizada no que tange aos recursos destinados. Estes parcos recursos são distribuídos, de modo geral, da seguinte maneira: 1. Controle da oferta; 2. Tratamento e assistência; 3. Prevenção; 4. Redução de danos. Além disto, o grupo ainda destaca a falta de balanceamento no tratamento das drogas lícitas e ilícitas.

  1. Conseqüências não buscadas

Os controles existentes são seletivos (atingem algumas populações com mais severidade que outras), abusivos (investem contra os direitos humanos de determinadas populações) e não eqüitativos (na conseguem atender àqueles que precisam mais de modo a diminuir sua vulnerabilidade). Importante salientar que houve muito debate para que se chegasse a esta definição, pois queríamos muito o consenso nesta crítica. Além disto, também houve consenso quanto ao fato de que este modelo facilita a constituição de redes de corrupção e de abuso, e que o desrespeito aos direitos humanos é mais intenso nas polícias mais corruptas. Por fim, também ficou registrada a ausência de mecanismos de proteção a pessoas que desejam denunciar, seja ao tráfico, seja à polícia. Não foi possível consenso quanto à denúncia de que as leis de drogas têm servido ao extermínio de jovens pobres (indígenas ou negros, dependendo de cada realidade), ligados ao pequeno comércio de drogas ou ao plantio de plantas tornadas ilícitas

  1. Princípios orientadores de futuras legislações

Neste ponto, o grupo afirmou a necessidade de coerência entre os sistemas de regulação e os mecanismos de proteção consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos: equidade, respeito e garantia de acesso aos mecanismos de proteção. Também se exige o equilíbrio entre políticas repressivas e de saúde, além de uma abordagem integral e balanceada, com enfoque compreensivo, aproximando drogas ilegais e legais. Por fim, o mais importante: as Nações Unidas devem mudar sua visão quanto às ONG’s que trabalham com drogas, passando a vê-las não como instituições que substituem o Estado, mas como parceiras nos processos de fiscalização de políticas públicas.

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Na plenária final, os grupos trouxeram as contribuições construídas ao longo dos dois dias de trabalho. Não houve grandes polêmicas. Jacques Mabit, médico franco-peruano que dirige uma Comunidade Terapêutica adepta de práticas xamânicas e do uso do ayahwasca, trouxe um debate bastante interessante, mas complexo demais para ser feito naquele ambiente: segundo ele, não se podem discutir políticas de drogas sem definir, antes, questões de base epistemológica. Não discutimos o conceito de droga, ou a própria definição do que vem a ser, no fim das contas, dependência química, toxicomania e outras categorias. A resposta de Michel Perron, que coordenava à mesa naquele momento, foi desnecessária: disse que operávamos conceitos da OMS, instância que em última análise define tais pressupostos. Mas, talvez mais importante que o conteúdo da resposta, tenha sido o tom de deboche, o sorriso irônico que emoldurou as palavras do vice-coordenador do Comitê de Narcóticos da ONU.

Sinto que os questionamentos trazidos por Jacques são interessantes para que possamos pensar um pouco no modo como estamos nos colocando nos debates, de alguns anos para cá. Lá se foi o tempo em que nós, da Redução de Danos, aparecíamos como os loucos ousados que propunham alternativas por demais distantes dos debates produzidos em ambiente acadêmico. Lá se foi o tempo em que nossas idéias eram recebidas com a mesma ironia e desrespeito com que as questões de Jacques foram tratadas. Já estamos inseridos nos debates, ainda que de modo contra-hegemônico. Ao que tudo indica, a Redução de Danos apresenta-se como uma importante porta de entrada para que as idéias de orientação descriminalizante insiram-se nos debates sobre políticas de droga.

* Dênis Petuco, cientista social, educador popular, redutor de danos e secretário da Associação Brasileira de Redutores de Danos (Aborda)