Praticamente a totalidade das culturas conhecidas contempla o uso de alguma substância psicoativa, seja com propósitos cerimoniais, medicinais ou simplesmente lúdicos. A história também conta episódios de proibição de determinados produtos. Mas podemos situar no fim do século XIX o começo da atual fase de globalização da proibição de numerosas substâncias. É nesse período que a Inglaterra, após várias guerras vitoriosas contra a China pelo controle do comércio do ópio, aceita finalmente a sua derrota comercial na distribuição e passa a ver o tráfico deste produto como imoral. As primeiras décadas do século XX são testemunhas de várias convenções internacionais (Haia, 1914; Genebra, 1925), progressivamente mais restritivas do comércio de entorpecentes e outras substâncias. Esta normativa internacional reflete menos o surgimento de um consenso universal e mais a dominação crescente da visão ocidental, particularmente do puritanismo anglo saxão, sobre o mundo.
Como a proibição do comércio não surtiu os efeitos esperados sobre o consumo, o passo seguinte foi criminalizar o próprio consumo, e muitas legislações contemplam pena de prisão para usuários de droga. Assim, passou a ser percebido como normal que um estado autoritário e paternal decidisse proteger a saúde do cidadão colocando-o na cadeia, um lugar não particularmente saudável onde, muitas vezes, pode continuar tendo acesso às mesmas substâncias que consumia só que a um preço superior. Nada exemplifica melhor o fracasso geral do Estado em inibir o consumo de drogas do que sua impotência, constatável em numerosos países, para impedir que elas sejam vendidas dentro das prisões, instituições totais em que o Estado supostamente exerce um controle absoluto.
A lógica usada pelo movimento criminalizador é infalível. Se as proibições conseguem de fato diminuir o consumo e aumentar o preço da droga, isto provaria que as medidas foram necessárias. E se, como acontece hoje nos Estados Unidos, após gastar bilhões de dólares na repressão e mandar dezenas de milhares de pessoas para a cadeia, os níveis de prevalência do uso permanecem no mesmo patamar e o preço da cocaína e da heroína caíram em mais de 50% nos últimos 20 anos, isto só provaria, segundo eles, que é preciso endurecer ainda mais.
Ao mesmo tempo, os defensores da criminalização precisaram recorrer a malabarismos médicos e dialéticos para justificar a divisão entre drogas legais e ilegais. É evidente que o consumo imoderado de substâncias psicoativas pode representar uma ameaça à saúde, e também é óbvio que, da mesma forma que cada produto apresenta efeitos diferentes, os riscos envolvidos são também diversificados. No entanto, a linha que separa drogas legais de ilegais é, fundamentalmente, uma linha arbitrária. Pois se o número de mortes devidas ao consumo ou os estragos sociais provocados pelo mesmo forem os critérios para determinar a proscrição, o álcool e o tabaco seriam os primeiros candidatos. Porém, a recente redução no consumo desses produtos nos países industrializados foi conseguida não através da proibição, mas com campanhas públicas de informação, incremento dos impostos e controle da publicidade.
A radicalização na luta contra as substâncias psicoativas continuou na segunda metade do século XX. Passou a valer tudo nesta guerra contra as drogas. No nível internacional, o cultivo de certas plantas dentro de um país passou a ser percebido como uma ameaça à segurança nacional de outro e houve casos de países invadidos, como o de Panamá, onde a invasão norte-americana para prender o presidente Noriega, acusado de tráfico de entorpecentes, custou milhares de vidas. Enormes áreas de cultivos em países em desenvolvimento foram fumigadas com agentes químicos para erradicar plantas indesejáveis. No nível interno, o endurecimento das legislações sobre drogas, patrocinado pelas potências ocidentais, chegou ao ponto de estabelecer pena de morte para os traficantes em vários países do sudeste asiático. Todavia, aviões suspeitos de carregar droga passaram a ser abatidos no continente americano, na aplicação mais escandalosa da pena de morte sem direito a juízo nem apelação.
O entusiasmo dos guerreiros contra a droga cresceu proporcionalmente à sua frustração. Muitas pessoas discordavam dos excessos cometidos e começavam a questionar o paradigma, obviamente falido, mas a maioria delas mantinha suas opiniões no âmbito privado, com medo de serem acusadas de estarem do lado dos bandidos. Com efeito, muitos defensores do status quo reagem a propostas de descriminalização como se alguém estivesse propondo a despenalização do homicídio. Contudo, parafraseando o advogado Domingos Bernardo Sá, acusar alguém que persegue a descriminalização das drogas de defender as drogas faz tanto sentido quanto afirmar que quem propõe a descriminalização do adultério é favorável ao adultério.
Se por um lado a criminalização não conseguiu a redução no consumo que pretendia, por outro lado gerou efeitos perversos de ordem superior aos males que pretendia combater.
Em primeiro lugar, a criminalização gerou lucros fantásticos para os vendedores e organizou estruturas ilegais de comercialização que começaram a recorrer à força para controlar o mercado e se defender dos concorrentes e da repressão oficial, tal como tinha ocorrido nos EUA nos tempos da lei seca. Em alguns países periféricos em particular, como Colômbia e Brasil, as estruturas clandestinas de distribuição de drogas elevaram de forma dramática os níveis de violência e as taxas de homicídio. Por sua vez, a repressão estatal ao tráfico nestes mesmos países, centrada no varejo, tornou-se cada vez mais violenta e contribuiu para a espiral de mortes. Num exemplo perfeito do que Merton chamava “a profecia que se autocumpre”, a definição do consumo e venda de droga como crime ajudou a incrementar, de fato, a criminalidade. Ao mesmo tempo, sob uma visão reificadora e míope, a culpa pela violência e o crime foi atribuída à própria droga, em vez de ao modo como ela era socialmente etiquetada, comercializada e reprimida.
Em segundo lugar, os incríveis lucros do mercado ilegal criaram umas redes gigantescas de corrupção que distribuem milhões de dólares todo ano, no mundo inteiro, a funcionários públicos (policiais, guardas de fronteiras, militares, juízes, cargos eleitos, etc.) cuja cumplicidade é necessária para o negócio.
Em terceiro lugar, a ilegalidade do processo impediu qualquer controle de qualidade, o que resultou em mortes por adulteração da droga e por overdose provocada por partidas de pureza inusual, especialmente no caso da heroína.
Em quarto lugar, a criminalização provocou um efeito perverso sobre a prevenção, por diversas razões. A criminalização afasta e estigmatiza o usuário dependente que poderia procurar tratamento. É preciso que alguém se reconheça implicitamente ou explicitamente como criminoso, isto é usuário, para poder receber tratamento, o que diminui a probabilidade de pedir ajuda. Isto é especialmente aplicável aos funcionários públicos. Imaginemos a situação de um policial dependente de drogas que deveria ao mesmo tempo procurar tratamento e prender a si mesmo. Além disso, a ênfase na repressão absorve recursos astronômicos que poderiam ser empregados em programas de prevenção e tratamento dos dependentes que assim o desejassem. Por último, a criminalização vem acompanhada de uma estratégia de comunicação demonizadora e catastrofista que resta credibilidade às mensagens preventivas. Todo jovem sabe que a propaganda oficial sobre as drogas está carregada de excessos e inverdades, o que desqualifica as verdades que ela também possa conter.
Os dois males mais graves relacionados na atualidade às drogas são os problemas de saúde pública e a violência. O primeiro deve ser tratado com regulação, informação veraz e prevenção, como acontece com as drogas legais. O segundo não teria melhor resposta do que a descriminalização. Desprovidas do seu caráter ilegal, as drogas perderiam a margem de lucro que faz com que as organizações criminosas as distribuam. No cenário de um fornecimento de drogas controlado pelo Estado, por exemplo, não faria mais sentido o temor, hoje habitual, de que alguém tentasse difundir as drogas entre as crianças, pois ninguém ganharia nada com isso. Evidentemente, a inércia criminal provocaria que estas máfias não desaparecessem imediatamente. Elas tentariam reconduzir sua atividade criminal, mas ficariam seriamente enfraquecidas sem o motor econômico que as sustenta. A sua capacidade, por exemplo, de seduzir jovens de áreas carentes para suas fileiras ficaria seriamente comprometida. A descriminalização poderia resultar em um certo aumento no consumo de drogas, de magnitude desconhecida, provocado pela queda do preço e a maior facilidade do acesso. Este aumento dependeria da flexibilidade de demanda de cada produto, descontando a desaparição da sedução que o proibido exerce em alguns setores. Os possíveis efeitos negativos do aumento do consumo seriam, com toda probabilidade, bem inferiores aos males da criminalização.
Em última análise, existem duas opções. Ou o Estado devolve ao cidadão adulto e bem informado a decisão sobre que riscos à sua saúde está disposto a enfrentar quando ingere certas substâncias, ou continuaremos nesta guerra impossível de ganhar, com as vítimas e os custos habituais.
A descriminalização não é, no entanto, um processo simples devido a suas repercussões e impactos globais. Mas, de fato, a corrente está começando a mudar de direção. Iniciativas como as políticas de redução de danos, a autorização do uso da maconha para fins medicinais nos EUA e a despenalização na prática de algumas drogas em Portugal, Holanda ou Suíça mostram que os limites do paradigma atual já foram alcançados e estamos num processo de refluxo.
Pessoas e instituições tão pouco suspeitas de subversão como o economista neoliberal Milton Friedman e a revista “The Economist” já aderiram publicamente à campanha pela descriminalização.
Quando, daqui a algum tempo, alguém em Washington decidir que é tempo de lidar com as drogas em clima de paz e não de guerra, nós, aqui embaixo, adotaremos a despenalização com a mesma naturalidade com que um dia acolhemos a cruzada. Uma cruzada que terá deixado muitos mais cadáveres aqui do que nos países que a promulgaram.
*Ignacio Cano é Professor da UERJ.